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O conceito de riqueza e bem-estar intertemporal

3. INDICADORES DE QUALIDADE DE VIDA

4.8 O conceito de riqueza e bem-estar intertemporal

Ao longo do primeiro capítulo discutimos as características do indivíduo que permeia a teoria neoclássica. Sendo um maximizador de utilidade, seu bem-estar não depende apenas do que ele consome ou goza agora, mas também depende daquilo do que ele espera consumir ou desfrutar no futuro. Dentro desta ideia, o indivíduo pode estar satisfeito com um nível mais baixo de recursos imediatos, se esta situação proporcionar um aumento destes ao longo do tempo. Do mesmo modo, seu nível de satisfação não será tão elevado se experimentar um alto padrão de vida atual que ele sabe que não irá durar por muito tempo. A teoria neoclássica assume que o bem-estar global de um indivíduo é a soma das utilidades de cada período trazidas a valor presente por meio de uma determinada taxa. Esta ideia é chamada de bem-estar intertemporal (STIGLITZ, SEN e FITOUSSI, 2009).

Este é basicamente o mecanismo de valorização de um ativo (riqueza) na mesma teoria. Seu valor é baseado no fluxo descontado de dividendos gerados em todos os períodos futuros. No caso de um indivíduo, esta riqueza inclui não apenas os ativos financeiros, mas também elementos como alto nível de escolaridade, boa saúde e grandes redes sociais, pois todos eles aumentam as possibilidades de consumir mais e /ou desfrutar da vida em períodos posteriores (STIGLITZ, SEN e FITOUSSI, 2009).

Se adotarmos este princípio para a sociedade, podemos incorrer no erro de concluir que o bem-estar intertemporal desta é a soma dos bem-estares intertemporais

de cada um dos indivíduos vivos. O problema é que o princípio ético da sustentabilidade faz com que tenhamos que considerar também o bem-estar dos indivíduos de gerações de todas as datas futuras, o que resulta num peso considerável destes no cálculo do bem- estar social, em relação aos indivíduos hoje vivos. Isto faz com que o conceito dificilmente possa ser operacionalizado na prática (STIGLITZ, SEN e FITOUSSI, 2009, HOWARTH, 2007). Mesmo para os fatores geradores de bem-estar que possuem mercados, é irreal aceitar que os valores são baseados nos montantes líquidos de serviços esperados para todas as datas futuras, em interação com todos os outros ativos. De fato, a Comissão Stiglitz lembra que “a ausência de mercados para apenas um subconjunto de bens leva a preços enviesados para todas as mercadorias, não só para aqueles que não podem ser negociados” (STIGLITZ, SEN e FITOUSSI, 2009, p.254).

Além disso, para evitar somas infinitas, é necessário estabelecer uma taxa de desconto positiva e constante, que representaria a preferência temporal (MUELLER, 2008), o que tem um efeito ético bastante questionável, qual seja, tratar de forma diferente as preferências de indivíduos de gerações diferentes. Foram estas dificuldades que fizeram com que a Comissão Stiglitz desconsiderasse esta perspectiva de bem-estar intertemporal.

De qualquer forma, existem duas tradições deste tipo de avaliação de sustentabilidade. A primeira, que visa calcular o nível máximo constante de bem-estar que pode ser garantido indefinidamente tendo como base os níveis atuais de recursos, está diretamente relacionada com o PIB verde que, conforme vimos, não indica realmente se a trajetória que estamos percorrendo é sustentável ou não. A segunda consiste em comparar o nível de utilização de recursos atual com o que seria possível dentro de uma trajetória sustentável, e é o que os cálculos de poupança líquida ajustada se propõem a fazer. Ambas não levam em conta as incertezas implícitas que um conceito de bem-estar intertemporal possui, e que veremos com maior detalhe a seguir:

4.8.1. Incertezas comportamentais e técnicas

Para a Comissão Stiglitz, a medição de sustentabilidade não é nada menos que um exercício de projeção completa. Dada a incerteza do futuro, não é surpresa tratar-se de uma questão difícil. Mais precisamente, o que torna esse exercício de projeção

complexo são os elementos que se busca projetar: comportamentos, preferências e interações eco-ambientais.

É necessário também criar diversos cenários, uma vez que “existem tantas avaliações de sustentabilidade quanto há caminhos possíveis para futuras políticas” (STIGLITZ, SEN e FITOUSSI, 2009, p.258). Isso sem contar com análises de estresse calcadas em choques externos e na apresentação de avaliações alternativas nos piores cenários, de acordo com o princípio da precaução. Mesmo se considerássemos os comportamentos e políticas atuais imutáveis numa projeção, as fontes de incertezas ainda seriam relevantes, pois haveria dúvidas sobre a parametrização do modelo de interação eco-ambiental, dúvidas sobre variáveis que ainda não foram descobertas e que podem se revelar de importância crucial amanhã (como foi o caso da biodiversidade e das mudanças climáticas - devemos então por questão ética, pelo menos nos concentrar nos problemas que conhecemos), para não falar da incerteza sobre um componente fundamental do índice que é a escolha do indicador de bem-estar que usamos para avaliar futuros estados da natureza e da economia (STIGLITZ, SEN e FITOUSSI, 2009).

Sobre as grandes diferenças hoje existentes entre os modelos de interação da economia com o meio ambiente, o relatório da Comissão Stiglitz afirma que “a maioria dos debates sobre as mudanças ambientais de longo prazo não é necessariamente ideológico, mas reflete crenças diferentes sobre as distribuições de probabilidade dos cenários eco-ambientais futuros” (STIGLITZ, SEN e FITOUSSI, 2009, p.259); trata-se de uma referência sobre os chamados otimistas, que apostam na capacidade humana futura de resolver problemas de escassez, e dos pessimistas, que acreditam que grandes problemas ambientais podem ser irreversíveis e que o dano está sendo ampliado neste exato momento (em geral, o primeiro grupo é associado àqueles que acreditam na sustentabilidade fraca, enquanto que o último geralmente adota a visão de sustentabilidade forte). As evidências científicas mais recentes25 e o princípio ético da precaução acabam por dar suporte ao último grupo. De qualquer forma, essa heterogeneidade de crenças é mais um elemento de complexidade, que acaba por fazer a Comissão Stiglitz sugerir o acompanhamento em separado de itens naturais com uma probabilidade significativa de gerar grandes efeitos na interação com a esfera

      

25 Um livro que sintetiza várias evidências científicas relacionadas aos problemas ambientais (além de

elaborar recomendações para solucioná-los) é o Plano B 4.0: Mobilização para Salvar a Civilização (2009), de Lester Brown.

econômica. Isso evitaria que o estatístico faça alguma escolha normativa, algo que é sempre fonte de resistência.

4.8.2. Incertezas normativas: sustentabilidade de quem e do que?

Uma vez que os preços não refletem indiretamente as preferências dos indivíduos, como entender os impactos dos fatores ambientais no bem-estar? Para a Comissão Stiglitz, “as boas propriedades do índice dependem da capacidade da função de bem-estar de capturar a valorização relativa dos bens ambientais e não ambientais em toda a gama de variação das suas quantidades relativas.” (STIGLITZ, SEN e FITOUSSI, 2009, p.260). Já vimos que a proposta vinda da teoria neoclássica de simplesmente perguntar aos indivíduos sobre a sua disposição a pagar para cada fator é altamente duvidosa. Dificilmente escapamos deste desafio sem cair numa posição normativa e, como esperado, há visões bastante diferentes sobre este assunto. Por exemplo, aqueles que dão mais valor aos aspectos ambientais podem afirmar que as gerações futuras vão se tornar muito sensíveis à escassez relativa destes fatores que hoje não recebem a devida atenção porque ainda são relativamente abundantes, o que exigiria, seguindo o princípio da precaução, que aplicássemos um valor elevado nestes elementos, com base no que os nossos descendentes podem querer fazer. Por outro lado, os que dão pouco valor para os bens ambientais podem argumentar que as gerações futuras, pelo processo de adaptação, podem ser indiferentes ao desaparecimento de algumas amenidades ambientais que hoje são valorizadas apenas porque estamos acostumados a elas. Como coloca Howarth:

[...] as preferências das gerações futuras não podem ser totalmente conhecidas a partir da perspectiva dos tomadores de decisão no presente. É claro que os valores e preferências mudam ao longo do tempo com a evolução das tecnologias, instituições e culturas (Pezzey, 1992). Isto implica que a previsão o bem-estar das gerações futuras é um compromisso incerto e potencialmente especulativo (HOWARTH, 2007, p.659).

O que o relatório da Comissão Stiglitz enfatiza é que o desenvolvimento de indicadores de sustentabilidade deve refletir os resultados dos indicadores de bem-estar

e bem-estar econômico. Como vimos que há uma certa heterogeneidade de indicadores de bem-estar, pode-se argumentar a favor da criação de múltiplos indicadores de sustentabilidade. De qualquer forma, o conceito de “riqueza ampliada” (a visão dos estoques) está apto a responder à demanda dos diversos conceitos de bem-estar, mesmo considerando o clamor de autores para que a ponderação dos diferentes estoques seja feita por meio de um debate democrático. O que muda neste caso é que os preços não serão a base de avaliação, e que seria necessário entrar num consenso de quais referências seriam utilizadas.

A própria Comissão aceita que a escolha de uma ou outra visão de bem-estar é delicada, principalmente porque pode ser “path dependent”, ou seja, as alterações que vão ocorrendo ao longo do tempo dependem do caminho que foi seguido. Para Norton e Noonan (2007), uma proposta para resolver este desafio é a avaliação de alternativas de desenvolvimento em conjunto com os impactos sobre escalas múltiplas de tempo e espaço. Diferentemente dos cenários totalmente descritíveis da teoria neoclássica, Norton e Noonan acreditam que esta avaliação permite “escolher caminhos de desenvolvimento (development paths) para proteger um punhado de valores humanos, reconhecendo as múltiplas formas com que os humanos valorizam a natureza” (NORTON e NOONAN, 2007, p.672). Para isso, estes caminhos de desenvolvimento devem se utilizar de cenários criados de forma criativa e reflexiva, de forma a abarcar critérios múltiplos e resultar num processo diferente da modelagem econômica que visa capturar mudanças no bem-estar. Assim, “as metas podem ser definidas, não como princípios abstratos que demandam a maximização de um único valor de índice (por exemplo, bem-estar econômico), mas como descrições dos caminhos de desenvolvimento favorecidos” (NORTON e NOONAN, 2007, p.672).