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O Diagnóstico e a Agressão no Cão

2. Revisão da Literatura Bibliográfica

2.5. O Diagnóstico e a Agressão no Cão

O diagnóstico das desordens comportamentais pressupõe, numa primeira fase, a destrinça entre causas de ordem médica e não médica na origem do comportamento. A distinção entre alterações comportamentais e alterações de ordem médica poderá configurar um desafio. (Ettinger et al, 2016). Os distúrbios comportamentais em cães podem ser subdivididos em: comportamentos normais mas indesejáveis (condutas próprias da espécie mas que desagradam o humano) ou comportamentos anormais indesejáveis (perturbação com origem comportamental ou com origem médica) (Ettinger et al, 2016). Um transtorno de cariz puramente comportamental (ex. doença mental), geralmente, caracteriza-se da seguinte forma: a conduta é inapropriada para o contexto (não justificável face a um cenário em concreto), a sequência comportamental está alterada, a frequência é excessiva para o contexto designado, a duração e/ou severidade são inadequadas ao contexto e o animal exibe sinais compatíveis com ansiedade em um ou vários contextos (Ettinger et al, 2016). As condições de ordem médica são: inapropriadas para o contexto, apresentam progressão inadequada ou possuem aumento da frequência e/ou duração (Ettinger et al, 2016). Alterações comportamentais apresentando uma origem médica e uma base comportamental associada podem incluir: surgimento de uma nova conduta (ex. o animal esconde-se), desaparecimento de uma conduta (ex. o animal deixa de brincar) e comportamento impróprio (ex. agressão súbita) (Ettinger et al, 2016). As alterações comportamentais são frequentemente observadas em animais jovens. No entanto, há exceções: a agressão redirecionada, a agressão direcionada a outros cães e a agressão impulsiva (formalmente designada de agressão por dominância) ocorrem no início ou durante a fase de maturidade social (Ettinger e al, 2016). A agressão pode corresponder a um comportamento natural influenciado por uma base genética, pela aprendizagem, pelo condicionamento, condições de saúde pré-existentes – durante o período pré-natal, neonatal e fases precoces do desenvolvimento –, socialização inapropriada, stress crónico e situações que resultem em medo, ansiedade, conflito ou frustração (Landsberg et al, 2013). As formas de agressão subjacentes a alterações fisiológicas ou físicas tendem a ser anormais (Landsberg et al, 2013).

As condições médicas podem afetar o comportamento de variadas formas, mormente: alterações na motivação, resposta generalizada a doença ou afeção direta da função cerebral (Horwitz & Mills, 2009). Assim, em 15% dos cães agressivos, a agressão resulta de uma condição orgânica (Fatjó et al, 1999), nomeadamente: patologia intracraniana (ex. encefalite, hidrocefalia, neoplasias, epilepsia, hipóxia, lisencefalia, traumatismos), condições endócrinas e/ou metabólicas (ex. encefalopatia urémica, hiperadrenocorticismo, diabetes, shunt porto-

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sistémico, desequilíbrios hormonais ou de neurotransmissores), patologia que curse com dor ou prurido (ex. alterações musculoesqueléticas (ex. osteoartrite hérnia discal, displasia da anca), problemas dermatológicos, doenças sistémicas, otite, patologia dentária, hiperestesia), patologia infecciosa e/ou parasitária (ex. raiva, esgana, leishmaniose, erliquiose) e intoxicações (ex. metais pesados, orgnofosforados, psicofármacos) (Fatjó et al, 1999; Jacobs et al, 2006 (a); Jacobs et al, 2006 (b); Jacobs et al, 2007; Horwitz & Mills, 2009; Landsberg et al, 2013; Boden & Andrews, 2015; Ledger, 2012; Bueno, 2016 (a)). A dor pode condicionar significativamente a tolerância de um cão à aproximação, toque e manipulação. Um animal que experiencie uma situação dolorosa poderá empreender uma tentativa de mordedura com o pressuposto de evitar um maior desconforto (Ledger, 2012; Morey et al, 2016). A osteoartrite é uma causa comum de dor crónica e de qualidade de vida reduzida. Está descrita como estando na origem de um caso de agressão direcionada a outros cães cuja reversão foi possível após controle da dor associada (Lane, 2016). Uma lesão craniana com comprometimento cerebral ou do sistema límbico pode fundamentar a origem de um comportamento agressivo (Dodman & Shuster, 1998). A encefalopatia hepática consiste numa síndrome neurológica complexa, associada a doença hepática adquirida ou congénita, e que pode cursar com agressão (Morgan, 2008). O hipotiroidismo é uma condição que consiste, clinicamente, na circulação de níveis insuficientes da hormona tiroidea podendo concorrer com comportamento agressivo (Fatjó et al, 2002; Fatjó et al, 2003; Morgan, 2008; Carter et al, 2009; Radosta et al, 2012; Bertalan et al, 2013; Dodman et al, 2013). Apesar de ainda não ter sido asseverada uma relação direta entre a agressão e o hipotiroidismo, é útil a avaliação da função tiróidea em cães que apresentem sintoma de agressão (Sueda & Malamed, 2014). Uma investigação sugere que níveis inferiores de colesterol, triglicerídeos e de lipoproteína de elevada densidade, possam estar correlacionados com agressão relacionada com comportamento de dominância, possivelmente pelo fato de interferirem na recaptação cerebral de serotonina (Pentürk & Yalçin, 2003). A pseudociese é um fenómeno que decorre em cadelas não gestantes no final do diestro e é acompanhado de desenvolvimento mamário, lactação e manifestações de comportamento maternal típico tais como nidificação e proteção de objetos inanimados, incluindo a eventual exibição de agressão (Morgan, 2008; Rijnberk & Kooistra, 2010). A agressão por dominância e a agressão patológica secundária a um tumor cerebral, mais especificamente um meningeoma, foram documentadas num cão de raça Boxer, com 8 anos de idade, permitindo constatar a associação da manifestação de agressão com o diagnóstico de um tumor localizado no sistema nervoso central (Fatjó et al, 1999). Uma lesão produzida na amígdala, porção do sistema límbico envolvida na regulação de estados emocionais como o medo e a raiva, poderá favorecer a agressão (Horwitz & Mills, 2009). A cegueira súbita é uma das motivações que se encontram reportadas como estando na base

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do comportamento agressivo (Hill et al, 2011). A infeção pelo vírus da raiva está descrita como podendo ocorrer concomitantemente com sinais de agressão, nos casos em que a forma furiosa da infeção está patente (Morgan, 2008). O recurso a androgénios, instituídos designadamente na terapia da galactorreia, pode, também, concorrer com manifestação de agressão canina (Morgan, 2008). A administração de N - (2mercaptopropionil) - glicina (2 - MPG), no tratamento da urolitíase, está reportada com eventual associação a exibição de comportamento agressivo (Morgan, 2008). A administração de metergolina, instituída na terapêutica da pseudociese, pode resultar num aumento da exibição da agressão (Rijnberk & Kooistra, 2010). Os comportamentos orais repetitivos, dos quais se destaca auto-mutilação, possuem uma eventual origem médica – ou concomitante com condições comportamentais – podendo associar-se a desordens abdominais ou do trato gastrointestinal (Ettinger et al, 2016).

As deficiências nutricionais (ex. tiamina) poderão também contribuir para a manifestação da conduta agressiva. A carência alimentar, relativa ou absoluta, pode manifestar-se através de problemas comportamentais, nomeadamente a agressão: níveis reduzidos de glucose sanguínea podem suscitar nervosismo, aumentando a probabilidade de agressão devido a irritabilidade ou frustração; a proteção de recursos alimentares, por questões de sobrevivência, é apreciável em animais ávidos, sob a forma de agressão possessiva; estudos revelaram que cães alimentados com dietas de reduzido teor proteico ou dietas enriquecidas com triptofano e elevados teores de hidratos de carbono manifestaram atenuação dos comportamentos de agressão territorial e de agressão por dominância, no entanto, o uso de triptofano, isoladamente, no controlo da agressão canina permanece ainda inconclusivo (Dipace, 2015); a niacina e a piridoxina são vitaminas que intervêm na síntese cerebral de serotonina, pelo que dietas com níveis insuficientes destes cofatores poderão justificar o comportamento agressivo; situações de stress inibem a produção de serotonina uma vez que o cortisol é passível de degradar a enzima essencial para a sua biogénese (Schroll, 2010).

A intoxicação por levotiroxina (tirotoxicose), fármaco instituído na terapêutica do hipotiroidismo canino, apesar de rara, pode cursar com agressão (Hill et al, 2011). Outras situações de toxicidade poderão estar na origem da exibição de sinais de agressão: doses elevadas de anti-histamínicos, toma de drogas estimulantes (ex. cocaína) e alucinogénicas (ex. anfetaminas (ex. 3,4-metilenodioximetanfetamina)), neurotoxicidade por toma crónica de fipronil, ingestão crónica de plantas do género Astragalus e Oxytropis, ingestão acidental de plantas do género Datura, ingestão de cogumelos alucinogénicos contendo psilocibina (géneros Psilocybe, Panaeolus, Conocybe e Gymnopilus) e ingestão de inseticidas organoclorados (ex. Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT)) (Morgan, 2008; Gupta, 2012).

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O exame clínico relativo a alterações somáticas inclui a história clínica e o exame geral. A gestão de alterações comportamentais requer uma abordagem singular no que respeita ao exame clínico do animal consultado. Os objetivos decorrentes da avaliação do animal são: averiguar a correspondência entre as observações e as interpretações do tutor, encorajar o tutor a realizar um relato sistemático, evitar depreciar o carácter ou comportamento do animal e assegurar a segurança das pessoas e outros animais (Horwitz & Mills, 2009). Em alguns estudos, relativos a distúrbios comportamentais em cães, foram aplicados questionários especificamente dirigidos aos tutores. No entanto, estes nem sempre apresentam habilidade na observação do comportamento do animal e, portanto, o recurso aos seus relatos poderá conduzir a resultados tendenciosos (Van den Berg et al, 2003). De forma a evitar que o tratamento dependa essencialmente da perceção e descrição do tutor, a consulta deverá contemplar um registo, em vídeo, do animal. A agressão, quando apreciada de forma isolada, não tem qualquer significado, pelo que poderá ser útil a observação da sequência comportamental para que se possa identificar o tipo de agressão exibido pelo animal. Uma visão integrada de todos os sinais evidenciados permite orientar para um diagnóstico preciso e funcional (Beata, 2001). São realizados testes comportamentais durante a consulta, quando conveniente. Estes, em conjunto com o vídeo realizado e os comportamentos exibidos pelo tutor e pelo animal durante a anamnese, proporcionam informação relativa à alteração comportamental, aos sinais de comunicação entre o tutor e o animal e as características que particularizam a ligação entre ambos (Schilder & Knol, 2009).

Os tutores de cães que padecem de distúrbios comportamentais demonstram habitualmente uma vertente emocional bem demarcada. Tal poderá dever-se à duração do problema comportamental e ao perigo que este poderá representar. Um profissional étologo competente é aquele capaz de integrar o conhecimento técnico e as habilidades interpessoais na relação profissional-paciente (Horwitz & Mills, 2009; Brocal, 2017). Assim, é crucial que, em detrimento de se tentar eliminar o carácter emocional manifestado pelo tutor, seja dada primazia à técnica de debate implementada. A mesma deverá seguir algumas diretrizes (Horwitz & Mills, 2009), designadamente: é importante que se evitem questões que indiciem a culpabilização do tutor pois estas poderão orientar para uma conduta defensiva, impossibilitando a recolha de informação pertinente; o relato do tutor não deverá ser sujeito a interrupções – numa fase mais tardia, é válida a repetição das questões numa ordem distinta, com o objetivo de se confirmar a informação já prestada, no entanto, questões de ordem sugestiva devem ser reprimidas; quando o tutor utilizar termos específicos tais como ‘agressivo’ ou ‘medroso’, ao mesmo será solicitada a elucidação de tais vocábulos; é crucial privilegiar-se tanto a comunicação verbal como a comunicação não verbal, motivo pelo qual o contacto frontal, concomitante com uma postura atenta e relaxada por parte do médico

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veterinário, é essencial durante o relato; a liberdade do animal deverá ser promovida durante a anamnese, com o propósito de apreciar a sua personalidade e a interação deste com o tutor e, desta forma, perceber se a pessoa terá contribuído para a alteração comportamental do seu cão. As questões efetuadas deverão suceder-se sob uma lógica particular e deverão reportar-se: ao problema iatrotrópico (natureza do problema, duração do problema – com o decorrer do tempo o comportamento sofre, tendencialmente, condicionamento e modelação, condições que contextualizam o comportamento, medidas que poderão ter reforçado o comportamento – ex. punição ou outras), ao comportamento presente (questões referentes a obediência – o tutor é indagado , agressão, ansiedade ou outro comportamento), às condições e modo de vida e à história de vida do animal (Schilder & Knol, 2009). De um modo geral, o estabelecimento de um diagnóstico conciso pressupõe a recolha de elementos relativos a: experiência e comportamento na fase de cachorro, idade com que iniciou o comportamento, a sinalização, o estado geral de saúde, problemas médicos concorrentes, temperamento, a linguagem corporal desde a fase inicial de exibição, a vocalização, o estímulo ou elemento desencadeador, as situações e contexto em que a agressão é despoletada, o alvo, o relato do tutor, a motivação e, por último, a progressão comportamental (Landsberg et al, 2013).