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ERGONOMIA: COMPREENDENDO A COMPLEXIDADE DAS SITUAÇÕES DO TRABALHO DOCENTE

3.6. O docente, a atividade e a constituição de seu trabalho

A partir da leitura de Lessard (2009), apontamos algumas proposições teóricas que podem contribuir para uma análise do trabalho. Salientamos que essas proposições têm um caráter geral e podem ser utilizadas para qualquer contexto de ação profissional. Entretanto, este autor busca, em algumas delas, fazer um refinamento de seu uso para a análise das atividades em contextos de sala de aula.

Em nosso trabalho, ampliaremos esse contexto para o trabalho realizado pelo docente na escola.

Em primeiro lugar, quanto às proposições teóricas, procuramos ressaltar seu caráter mais geral, para, depois, buscarmos suas relações intrínsecas com a escola e o trabalho docente:

1) Na ação profissional, a atividade desempenha um papel fundamental, pois é ela que “dá vida a uma profissão e lhe permite evoluir”. É nela que se processa a vontade do sujeito e é por meio dela que toda a ação pode ser eficaz e apropriada à situação. Nunca uma atividade se reduz à execução da tarefa ou das prescrições. Por ela ser construída por um sujeito, possui uma dimensão criativa, é líquida e se adéqua às mais diversas situações. É possível saber muito mais sobre o trabalho e os profissionais por meio da análise do trabalho real e da atividade, do que pelas prescrições;

2) A atividade se organiza sob a forma de uma ligação entre o sujeito cognitivo e a situação que lhe fornece recursos e restrições. A atividade tem, portanto, uma forte componente cognitiva. De acordo com a situação e as condições contextuais, o sujeito cognoscitivo constrói e desenvolve sua atividade. Distintas entre si, situação e atividade são, contudo, condicionantes uma da outra. Ao mesmo tempo em que a situação real influi no curso da atividade, esta modifica aquela;

3) A ação, a cognição e a emoção são indissociáveis. O sujeito que trabalha é um ser uno, e na ação coloca em jogo suas emoções. O trabalho, assim como pode ser fonte de prazer e de realização, também tem um caráter problemático e pode representar fonte de mal-estar e sofrimento;

4) O sujeito raramente atua sozinho, pois os contextos de trabalho são constituídos, na sua maioria, por relações de interdependência entre os pares. Em conjunto, os sujeitos estão comprometidos na construção de um mundo próprio, significativo para eles. A atividade acontece mediante um processo de construção ou de atribuição de significações negociadas e objeto de acordos provisórios entre os pares. A construção dessas significações é um ato de conhecimento, já que este é adaptação ao mundo, isto é, uma ação sobre o mundo;

5) Uma vez, entendendo os espaços de trabalho como construídos na coletividade, cabe afirmar que a interação entre eles resulta em uma atividade coletiva que se organiza por meio da comunicação e do estabelecimento de acordos, contratos, negociações, de forma explicita ou implícita;

6) A comunicação tem fundamental importância à análise das atividades e ao entendimento do trabalho por esta via, uma vez que, é por intermédio da verbalização que os atores dão significado às suas ações. Dessa forma, compreender a atividade significa compreender o sentido que ela tem para os atores. A ação pode ser dita. Todavia, os enunciados que compõem este discurso não são observáveis. “Só há enunciados mais ou menos sinceros, mais ou menos conformes à experiência vivida pelo ator. Esse ator é o único juiz dessa conformidade” (LESSARD, 2009, p. 122). Isso impõe como limites da investigação o próprio sujeito da ação e sua subjetividade.

Para Amigues (2004, p.42), o “professor deve estabelecer e coordenar relações, na forma de compromisso, entre vários objetos constitutivos de sua atividade”, como por exemplo:

1) As prescrições desempenham papel decisivo do ponto de vista da atividade, pois além de desencadeadoras da ação docente são parte integrante de sua atividade. A atividade é a mediação entre a prescrição e a ação efetivada. Em outras palavras, entre as prescrições iniciais - que estão explicitadas na forma de legislação, nas orientações oficiais, nos currículos escolares e nos tempos e espaços escolares - e a sua realização, existe um espaço que depende da atuação do docente, que as redefine com base em suas concepções de trabalho, em seus saberes e em suas experiências vividas na docência;

2) Os coletivos são inerentes ao trabalho escolar e educativo, pois, ainda que se considere o trabalho do professor como individualizado, ele depende de uma decisão tomada no coletivo. Portanto, é uma atividade que se origina fora da aula, mas que lhe é determinante. Os professores organizam seu espaço de trabalho, seu material, suas metodologias e conteúdos com base em acordos coletivos (os espaços e tempos escolares, a forma de agrupamento dos alunos, os conteúdos, os métodos, o sistema de

avaliação) que atendam às prescrições externas. “Assim, a partir das prescrições iniciais, os professores coletivamente se autoprescrevem tarefas, às quais cada professor vai retornar a redefinir em sua classe ou classes” (AMIGUES, 2004, p.43);

3) As regras do ofício são concepções, ferramentas e técnicas que dão unidade ao trabalho dos professores, aquilo que há de comum entre eles;

4) As ferramentas são todas as técnicas, materiais, métodos, modelos e teorias. Essas ferramentas são transformadas (gênese instrumental) pelos professores e adequadas aos seus saberes, espaços, alunos, conteúdos de ensino, realidade escolar, como forma de melhorar a eficácia de sua ação. As ferramentas se inserem como canal à interação entre um sujeito e uma tarefa que ele tem a realizar “não somente para aumentar a eficiência dos gestos; mas também, como meios de reorganizar a sua própria atividade. Contudo, “o professor utiliza mais ferramentas concebidas por outros do que por ele mesmo” (AMIGUES, 2004, p. 44).

Nesse sentido, a atividade pode ser vista como lugar comum de múltiplas histórias da escola, do sistema, do indivíduo, etc. É na atividade de trabalho que o “professor vai estabelecer relações com as prescrições, com as ferramentas, com a tarefa a ser realizada, com os outros, com os seus valores e consigo mesmo” (AMIGUES, 2004, p. 45).

Logo, pensando na atividade como um momento no qual o professor mobiliza toda a sua experiência e seus conhecimentos para o enfrentamento das situações de ação no trabalho, podemos dizer que, a renovação desses conhecimentos é indispensável para que o professor passe a construir outras formas de ação.

A ação do professor está condicionada pelas relações que mantém com as tarefas e as ferramentas utilizadas à sua realização, sendo que aquelas estão condicionadas às concepções de quem as prescrevem. Logo, criar novas formas de ação e inovar nas práticas educativas representa para os professores um desafio que, primeiro, deve romper com as tradições e, depois, com os limites postos pela forma de organização e desenvolvimento do sistema.

Do ponto de vista da ergonomia, o trabalho docente é concebido como uma “situação situada”. Uma atividade complexa, cujo objetivo é conseguir se adaptar a uma situação reais que necessita a tomada de múltiplas decisões e atitudes.

Consequentemente, não se pode descrever, analisar e compreender esta atividade sem descrever, analisar e compreender a situação real. (THERRIEN, 2001, p. 148).

A ergonomia tem o mérito de possibilitar a constituição de um quadro geral a partir da análise das múltiplas ações criadas e controladas pelo professor na organização e desenvolvimento de seu trabalho, bem como a partir da análise das prescrições presentes no contexto escolar, as quais acabam por dar forma e características ao trabalho docente.

CAPÍTULO IV