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O gênero profissional docente e o currículo

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 36-43)

Falar sobre “ser professor” em nossa sociedade é algo bastante curioso. No imaginário social, ainda persiste a ideia de que para ser professor basta saber o conteúdo a ser ensinado, representação que aparenta colaborar para a desvalorização da formação específica do professor, como se a formação universitária fosse um adicional ao exercício profissional. Em se tratando especificamente do ensino de língua, seja materna ou estrangeira, o quadro é mais grave ainda. Nesse sentido, Dias-da-Silva et al. (2008, p.17) afirmam que nunca houve uma preocupação central na formação de professores em universidades brasileiras:

[...] grande parte dos cientistas acredita(va) que ensinar é uma espécie de “descoberta pessoal”, possibilitada por um “dom” ou uma capacidade individual que cada um desenvolve naturalmente, a partir do aprofundamento no domínio teórico dos conhecimentos acadêmico- científicos. Outra parte dos acadêmicos partilha(va) a concepção de que formar professores se reduz a treinar ou doutrinar um técnico que executará a tarefa de aplicar em aula e/ou uma técnica de ensino elaborada por especialistas.

Afinal, para que um diploma se para lecionar basta apenas saber a língua e ter vocação para a sala de aula? Significa que, após cumprir certos créditos da licenciatura, o professor estaria pronto para a docência? A docência seria, então, um tipo de sacerdócio?

Para a discussão que aqui faremos, tomaremos emprestados alguns fundamentos da Clínica da Atividade10 (CLOT, 1999; FAÏTA, 2004), combinados

com outros conceitos da Ergonomia da Atividade11 (AMIGUES, 2004q) e do

Interacionismo Sociodiscursivo (ISD)12 (BRONCKART, 1999, 2004, 2005). No

Brasil, as ideias do ISD são difundidas sobretudo por pesquisadores da Linguística Aplicada. Nesse sentido, Martiny (2012) destaca que pesquisas

10O grupo da Clínica da Atividade (Clinique de l’Activité) é um grupo localizado no Conservatoire National des Arts et Métiers, Chaire de Psychologie du Travail de Paris e desenvolvido por alguns

pesquisadores, dentre eles, Yves Clot. A Clínica da Atividade desenvolve uma proposta teórico- metodológica baseada na ergonomia do trabalho, a fim de compreender e analisar o trabalho.

11 O grupo Ergonomia da Atividade dos Profissionais da Educação (Ergonomie de l’Activité des Professionnels de l’Education) se situa no Institut de Formation de Maîtres, na cidade de

Marselha, e desenvolve pesquisas que dialogam bastante com a clínica da atividade, mas há um foco mais específico no trabalho da formação docente. A pesquisadora René Amigues tem um grande destaque devido as suas importantes colaborações teóricas na abordagem ergonômica da atividade do professor.

12 O ISD é uma orientação epistemológica e social que defende o papel da linguagem e do

discurso no desenvolvimento humano. O ISD se sustenta principalmente nas ideias de Spinoza, Marx e Vygotsky.

sobre a formação docente têm se consolidado cada vez mais no âmbito da Linguística Aplicada e que as contribuições da ISD e da Clínica da Atividade têm sido relevantes para investigar a noção do ensino como trabalho.

É válido salientar que tanto a Clínica da Atividade como o ISD se baseiam na ideia vygotskyana (REGO, 2013) de que o homem tem uma relação mediada com o mundo que o circunda, isto é, a evolução do conhecimento do homem está na troca com outros sujeitos e consigo próprio. É a partir das relações intra e interpessoais que o homem vai agir num determinado contexto e, assim, internalizar conhecimentos, funções e papéis sociais.

Para esse autor, então, tudo é oriundo da interação com o outro. Para Vygotsky, o ser humano é interdisciplinar em sua essência e deve ser compreendido no contexto sócio-histórico em que está inserido: “[...] segundo ele, a complexidade da estrutura humana deriva do processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas relações entre história individual e social” (REGO, 2013, p.26). O homem se constrói, portanto, através de relações dialéticas em contextos socioculturais diversos.

Acreditamos que as correntes teóricas citadas podem nos dar respaldo para defendermos a nossa crença de que o ofício do professor deve ser encarado como outro qualquer, o ensino deve, pois, ser visto como um trabalho. Para se compreender o conceito de gênero profissional ou gênero da atividade (FAÏTA, 2004), é preciso antes entender o que é gênero. Para Bakhtin (2000), gêneros são tipos relativamente estáveis de discursos que permitem que a comunicação ocorra entre as pessoas. Se não existissem os gêneros, a comunicação seria impossível. Essas formas típicas de enunciados nos servem de referência para que sejamos compreendidos pelos outros.

De forma análoga aos discursos, o agir profissional também pode ser compreendido como um gênero, visto que há tipos relativamente estáveis de ações sócio-historicamente previstas para o agir/fazer de cada profissão. É o que afirma Faïta (2004, p.66):

O fato de se dar a essas formas de fazer compartilhadas um aspecto específico, correspondente a preocupações particulares no quadro de uma atividade comum ao conjunto de uma categoria sócio-profissional, permite, sem dúvida alguma, falar de gênero, de um modo homólogo ao que Bakhtin define como gêneros de discurso ou gêneros de linguagem.

Para Clot (1999), ao ressignificarmos o conceito de gênero de Bakhtin para compreendê-lo como uma história partilhada por certo grupo de trabalhadores que dividem regras implícitas e explícitas, modos de dizer e fazer, expectativas e anseios, teremos a noção, assim, do gênero profissional. Segundo esse autor, o gênero é

[...] o sistema aberto de regras impessoais não escritas que definem, num meio dado, o uso dos objetos e o intercâmbio entre as pessoas: uma forma de rascunho social que esboça as relações dos homens entre si para agir sobre o mundo. Pode-se defini-lo como um sistema flexível de variantes normativas e de descrições que comportam vários cenários e um jogo de indeterminação que nos diz de que modo agem aqueles com quem trabalhamos, como agir ou deixar de agir em situações precisas; como vem realizar as transições entre colegas de trabalho requeridas pela vida em comum organizada em torno de objetivos de ação (CLOT, 1999, p.50).

É possível que pessoas que nunca deram aula saibam algumas ações previstas para lecionar; há elementos que unem professores num determinado grupo “professoral”. O gênero profissional é “[...] a parte subentendida da atividade, aquilo que os trabalhadores de um dado meio conhecem, esperam, reconhecem, apreciam; o que lhes é comum [...]; o que eles sabem dever fazer sem que seja necessário reespecificar a tarefa cada vez que ela se apresenta” (SOUZA-E-SILVA, 2004, p. 97).

Essa noção de gênero profissional dá força para a categoria, pois organiza os profissionais numa coletividade. Faïta (2004) chama a atenção para o fato de que é apenas através da ação que poderemos saber se uma determinada atividade está inserida num certo gênero ou não; é apenas a compreensão da atividade pelo outro que vai poder trazer tal constatação. Eis o que ele afirma:

É a atividade — e só a atividade —, particularmente a compreensão do outro, que vai validar ou invalidar a seleção efetuada dentre as formas de fazer e dizer: se essa oposição às outras escolhas possíveis não é validada, o gênero não pode ser identificado. (FAÏTA, 2004, p.69)

De acordo com tal autor, o gênero profissional só existe numa coletividade, pois as normas se originam na multiplicação das atividades similares que agregam os membros a um determinado grupo. Sobre isso, Clot (1999) afirma que as transformações permanentes para as situações de trabalho só são possíveis através da ideia e da defesa do coletivo no trabalho. Mas quem

define as atividades que devem ser executadas para que o professor se encaixe no gênero profissional docente?

Segundo Amigues (2004), as condições e objetivos de ações de determinada profissão não são definidos pelos próprios sujeitos que executam as ações. Na verdade, eles são prescritos pelos planejadores, pela hierarquia – há, assim, normalmente, uma distância entre o trabalho prescrito e o de fato realizado. Os conceitos de trabalho prescrito e de trabalho realizado são fundamentais para a Ergonomia da Atividade, que se preocupa com as regras/leis do trabalho, como remete a etimologia da palavra ergonomia. Trata- se então de um “[...] conjunto de conhecimentos sobre o ser humano no trabalho e uma prática de ação que relaciona intimamente a compreensão do trabalho e sua transformação” (SOUZA-E-SILVA, 2004, p.84). No âmbito educacional, o trabalho prescrito pode ser entendido como a tarefa que é determinada para os professores, ou seja, pode abranger desde as instruções normativas para o trabalho do professor (podemos pensar no CECRL, no caso do ensino de línguas estrangeiras) até as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores13, que servem de guia se pensarmos no trabalho do professor

universitário formador de novos professores. No entanto, sabemos que há um abismo entre o que é idealizado e o que é executado. O trabalho realizado seria o desenvolver real e “visível” das atividades em sala de aula. Para Lousada (2013, p.62-63), é natural que haja tal distanciamento entre a atividade prescrita e a realizada, visto que “embora elaboradas para um coletivo de trabalhadores, não dizem respeito à situação particular de cada um deles”.

Inclusive, as próprias prescrições são organizadas de maneira hierárquica. Para Souza-e-Silva (2004), assim como outras profissões, o trabalho do professor é baseado na utilização de procedimentos que foram concebidos por outros, advindos de uma “cascata hierárquica”. Os projetos político-pedagógicos de cursos de licenciatura, por exemplo, se encontram abaixo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores; tais projetos devem, assim, contemplar as diretrizes trazidas pelo Ministério da Educação do Brasil. A figura abaixo exemplifica uma escala hierárquica das prescrições no contexto educacional:

(Figura 1: Escala hierárquica das prescrições no contexto educacional.)

Ainda sobre hierarquia, é compreensível o fato que a atividade docente não se dirige unicamente aos discentes, mas aos pais dos alunos, à diretoria da escola, a outros profissionais. Nas palavras de Amigues (2004, p.41-42),

a atividade do professor dirige-se não apenas aos alunos, mas também à instituição que o emprega, aos pais, a outros profissionais. Ela também busca seus meios de agir nas técnicas profissionais que se constituíram no decorrer da história da escola e do ofício do professor. [...] a atividade não é a de um indivíduo destituído de ferramentas, socialmente isolado e dissociado da história [...]

Daí as prescrições terem tanta importância para a compreensão da ação do professor; visto que elas constituem, definem e demarcam tais ações, as prescrições são organizadoras e reguladoras das atividades docentes. É nesse sentido que Sousa-e-Silva (2004), baseando-se na abordagem ergonômica, afirma que as prescrições estão intimamente ligadas ao trabalho e às inquietações do professor, já que elas “[...] não são somente um meio mais ou menos eficaz de influenciar as práticas do trabalhador; elas são consubstanciais ao seu próprio trabalho e às suas preocupações profissionais” (Ibidem, p.89). Portanto, o professor deve ser crítico para poder remodelar as prescrições de acordo com os seus objetivos individuais de trabalho:

[...] o trabalho do professor inscreve-se em uma organização com prescrições vagas, que levam os professores a redefinir para si mesmos as tarefas que lhes são prescritas, de modo a definir as tarefas que eles vão, por sua vez, prescrever aos alunos. Assim, a relação entre a prescrição inicial e sua realização junto aos alunos não é direta,

mas mediada por um trabalho de concepção e de organização de um meio que geralmente apresenta formas coletivas. (AMIGUES, 2004, p.42)

Assim, é importante compreendermos que as adaptações das prescrições para a realização do trabalho em diferentes contextos fazem parte do trabalho de um professor autônomo. Reconceber e redefinir as prescrições para os diversos contextos de ensino não deve ser visto de forma pejorativa; não se trata de ignorar as prescrições, mas, sim, de achar soluções individuais e contextualizadas para elas, que são impessoais. Essa “reconcepção” deveria ser vista, então, como um caminho favorável para a aprendizagem (AMIGUES, 2002). Nesse sentido, Souza-e-Silva (2004, p.90) alega que “a mobilização do coletivo dos professores não é somente uma resposta a uma injunção administrativa (trabalhar em equipe), mas é, sobretudo, uma iniciativa coletiva, mobilizada de modo a dar uma resposta comum às prescrições”. O trabalho que o professor de fato realiza se trata, pois, de uma resposta a tais prescrições.

Os documentos prescritivos, isto é, os textos que dão sentido às práticas profissionais são

[...] textos que antecedem o agir no trabalho do professor, são compreendidos como as produções que visam estabelecer as tarefas que os trabalhadores (neste caso especificamente os professores) precisam desempenhar, e no caso das ementas especificamente, os conteúdos a serem trabalhados (RIOS-REGISTRO, 2010, p.19).

Sant’anna (2012) considera que nesses textos prescritivos há traços enunciativos que nos permitem buscar possíveis respostas sobre o que é o trabalho do professor de ensino básico, visto que em nosso país há uma legislação que norteia os fundamentos para a formação e exercício profissional do professor — apesar de, ironicamente, ser ainda bastante desconhecida tanto pelos formadores de professores como pelos próprios licenciandos/futuros docentes. A mesma autora destaca algumas características do gênero de discurso em que se enquadram os textos prescritivos. Afirma, por exemplo, que o objetivo de uma prescrição é levantar um ponto de vista técnico sobre algum tema e que os leitores partem da premissa de que tal texto traz uma verdade, visto que o enunciador é reconhecido como capacitado naquele tema técnico.

No entanto, qual “verdade” é essa que o texto prescritivo prega? Na tentativa de provocar reflexões sobre essa pergunta, vamos agora partir para uma discussão sobre a teoria do currículo, com o objetivo de entender um pouco

da influência do currículo na formação do sujeito professor, focando também no papel exercido por ele na formação específica do professor de língua.

Silva (2014) começa o seu livro explanando o que vem a ser a teoria do currículo. A teoria representa uma realidade e, ao descrever um determinado objeto, acaba criando/inventando tal objeto. Traçar um discurso sobre o currículo é traçar uma noção específica de currículo. A descrição teórica do que um currículo de fato é se trata, na verdade, de uma criação. Inclusive, tal autor exemplifica essa visão de forma bastante nítida, afirmando que, provavelmente, a primeira vez que o currículo aparece como objeto de estudo e pesquisa foi nos Estados Unidos, em 1918, em um livro chamado The curriculum, de John Franklin Bobbitt. Nesta obra, o currículo é baseado no taylorismo e entendido como o conjunto de objetivos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que possam ser medidos. Bobbitt criou, então, uma noção particular de “currículo”. O que ele definiu como sendo “currículo” passou a ser, assim, uma realidade.

Diante dessa perspectiva de Silva (2014, p.14), fica mais fácil entendermos que

[...] para mostrar que aquilo que o currículo é depende precisamente da forma como ele é definido pelos diferentes autores e teorias. Uma definição não nos revela o que é, essencialmente, o currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é. A abordagem aqui é muito menos ontológica (qual é o verdadeiro “ser” do currículo?) e muito mais histórica (como, em diferentes momentos, em diferentes teorias, o currículo tem sido definido?).

O teórico afirma que a palavra “currículo” vem do latim curriculum, a qual significa “pista de corrida”, e que é justamente ao longo da “corrida” que se dá através do currículo que vamos nos tornar o que somos. Saber qual conhecimento vai ser ensinado, qual verdade vai ser escolhida para ser ensinada e quais vão ser excluídas, o que vai ser de fato ensinado é que vai definir aquilo que nos tornaremos. Selecionar um conhecimento em detrimento de outro acaba se revelando uma questão de poder. Currículo é, assim, uma questão de identidade, visto que ele vai, sim, definir o que nos tornaremos.

Ao longo da sua obra, Silva (2014) nos apresenta uma síntese das principais teorias do currículo. As tradicionais estão mais preocupadas com as questões organizacionais do ensino, enquanto as críticas estão mais atentas aos

conceitos de ideologia e poder e as pós-críticas, associadas ao discurso. De forma resumida, o autor elenca os principais conceitos que as teorias enfatizam. É o que apresentamos no quadro abaixo:

TEORIAS

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 36-43)