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O que pode a literatura numa aula de FLE?

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 62-69)

PARTE 2: O LUGAR DO TEXTO LITERÁRIO (TL) NA AULA DE FLE

2.2 O que pode a literatura numa aula de FLE?

A pergunta acima, que intitula a presente seção, pode ser pensada de forma mais ampla: o que pode a literatura na formação de um sujeito ativo e crítico? Para iniciarmos tal discussão, gostaríamos de trazer um trecho de uma crônica de Hilda Hilst, que defende a salvação através da poesia. Eis o texto abaixo:

“[...] É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. Se pelo menos um amante da poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, escreve, apenas isso: fui atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: o ofício de poeta” (HILST, p.90, 2002).

Seria uma contradição explicarmos tal passagem. Contamos com a sensibilidade de cada um que lê, esperando que possam frequentemente ser acordados com os socos benéficos da poesia.

Diante do que vimos discutindo, após termos traçado uma perspectiva histórica sobre as metodologias de ensino de FLE, dando uma ênfase, ao final da discussão, para o espaço destinado à literatura em diversos modos de ensino, gostaríamos, nesta seção, de propor algumas reflexões sobre a importância de se usarem textos literários no atual contexto de ensino de FLE. Nesta pesquisa, também objetivamos ampliar a discussão sobre o uso da literatura em aula de FLE, pois acreditamos que um dos caminhos possíveis é mostrar como esse trabalho pode ser importante para a formação do aluno. Para tal, vamos nos apoiar em alguns teóricos.

Para começar a discussão, gostaríamos de citar o CECRL, o qual estabelece que um dos principais objetivos do ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira deve ser tornar o aluno versado e hábil para se comunicar no estrangeiro. Isso significa dizer que, atualmente, a intenção é preparar o estudante para compreender efetivamente e saber se expressar efetivamente na LE. Por isso, há o incentivo do uso de documentos autênticos, e não mais de documentos fabricados especificamente para o ensino de línguas, visto que estes últimos podem soar muito artificiais, distanciando-se da comunicação real que acontece entre os falantes. Para Tagliante (p. 26, 2006)

La finalité de l’enseignement des langues, aujourd’hui déclarée, est de faire de l’apprenant un individu plurilingue, au minimum capable de se débrouiller à l’étranger dans les situations les plus courantes de la

vie quotidienne, et, ainsi, de permettre une meilleure compréhension et communication entre les peuples31.

Tendo em vista tal propósito de ensino — isto é, ter como ideia central a formação de um aluno capaz de se comunicar em situações reais no país da língua estrangeira —, defendemos que o trabalho com textos literários em sala de aula pode ser muito pertinente, dado que a literatura consiste num documento autêntico que traz aspectos cotidianos da comunicação real dos falantes do país estrangeiro.

Se pensarmos que em algum ponto a literatura é uma arte que imita a vida32, como afirma Ricardo Reis, ela pode, então, ajudar os alunos a

compreenderem os modos de funcionamento da vida estrangeira, além de possibilitar aos alunos aprenderem alguns aspectos linguísticos através da leitura. Assim, é com base em alguns autores, como Tagliante (2006), que podemos, desde já, afirmar que a literatura é um concentrado de língua e de civilização, e o seu ensino se associa à formação intelectual, moral, cívica e linguística do aluno. Vemos que se trata, também, de um instrumento possível para o estudo intercultural.

É importante observar que separamos os conteúdos linguísticos dos literários, seja no âmbito escolar – em que, frequentemente, temos disciplinas de literatura e disciplinas de língua – seja no âmbito universitário – em que cursamos disciplinas de língua e de literatura separadamente. No entanto, tal separação nos traz a falsa impressão de que se trata de duas áreas de estudo completamente distintas e independentes, quando, na realidade, estão intrinsecamente ligadas, e uma poderia fornecer subsídios para aprendizagem da outra. É nessa direção que Brait (2003) assegura que a interface entre os estudos linguísticos e os estudos literários pode contribuir bastante para melhor entender cada uma dessas áreas, sem que uma oculte a identidade da outra.

A literatura, naturalmente, é uma das possibilidades de exploração e utilização da língua, das palavras, para uma diversidade de fins, de

31 Tradução nossa: “A finalidade do ensino das línguas, hoje declarada, é fazer do aprendiz um

indivíduo plurilíngue, capaz, no mínimo, de lidar, no exterior, com as situações mais comuns da vida cotidiana e, assim, permitir uma melhor compreensão e comunicação entre os povos”.

32“A arte baseia-se na vida, porém não como matéria, mas como forma. Sendo a arte um produto

directo do pensamento, é do pensamento que se serve como matéria; a forma vai buscá-la à vida. A obra de arte é um pensamento tornado vida: um desejo realizado de si-mesmo. Como realizado tem que usar a forma da vida, que é essencialmente a realização; como realizado em si-mesmo tem que tirar de si a matéria em que realiza. [...]” (PESSOA, Fernando. In Ricardo Reis - Prosa).

propósitos os quais as teorias literárias e as teorias linguísticas, bem como outras vertentes dos estudos das línguas e das literaturas, têm contribuído decisivamente para caracterizar, pontuando as mudanças de acordo com os diferentes momentos históricos, com os diferentes povos, com as diferentes línguas, mas sempre, apesar de todas as diferenças de gêneros e conteúdos, apontando para essa marca da natureza humana que é o fazer literário, o fazer poético, fazer em que a língua, em sua modalidade escrita ou oral, é utilizada para expressar e justificar a existência humana. (BRAIT, 2003, p.19-20)

Tal citação reforça a nossa defesa do uso do texto literário como suporte de ensino da língua estrangeira, visto que a autora defende que a literatura é uma das formas possíveis de se usar e, consequentemente, de se aprender uma língua e de se aprender sobre a sua respectiva cultura, visto que nos textos costuma haver referências acerca dos aspectos históricos, sociais e culturais dos países cuja língua é estudada.

Um importante trabalho sobre o uso e a didática do texto literário em aula de FLE é o da estudiosa Mariz (2007), que, em sua tese de doutorado, após relatar toda a trajetória histórica do ensino de língua e de literatura em oito diferentes metodologias, conclui que em nenhuma delas o TL se apresenta como algo que, de fato, propicie a aprendizagem da língua. Ela afirma que, desde meados da década de 1980, o foco da aprendizagem de língua estrangeira está voltado para a comunicação, o que acarreta na valorização da oralidade em detrimento da competência escrita.

Atividades de leitura parecem, assim, ainda ausentes no ensino de FLE. Percebe-se que a compreensão da língua fica incompleta, dado o negligenciamento do trabalho com a língua escrita. Nessa mesma pesquisa, a autora também realizou um levantamento da presença da literatura em alguns manuais de ensino de FLE, datados do período entre 1975 e 2006. Ela chega à conclusão de que, em geral, a literatura aparece apenas como pretexto para o trabalho de questões lexicais e sintáticas, não há uma preocupação com as especificidades do gênero, como a sua literariedade, ou possíveis discussões mais subjetivas sobre temáticas trazidas pelos textos. Aparentemente, também não é dada atenção aos aspectos socioculturais que poderiam ser trabalhados a partir dos excertos trazidos pelos manuais. Caberia, pois, ao professor se preocupar com essa defasagem metodológica para poder superá-la.

À vista disso, também, é que os professores não devem limitar sua prática ao livro didático. Mais uma vez, reforçamos a importância de os

professores serem autônomos e autores de suas próprias práticas pedagógicas. Compreendemos que é uma séria formação profissional que trará segurança para o profissional poder atuar livremente, sem amarras, sem se limitar ao manual didático. Acreditamos, dessa maneira, que uma formação mais integral possa atentar para o poder que a literatura tem na formação do sujeito, afinal

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo. (TODOROV, 2009, p.76-

77)

Como já vimos afirmando, há diversas vantagens em se trabalhar com TL na aula de língua. Fiévet (2013) aponta algumas delas: o texto literário é um documento autêntico, e não um texto fabricado com fins ilustrativos; o texto literário está imerso numa visão estética da língua, e não focado apenas na função referencial; a civilização de determinado país pode ser explorada a partir da literatura; é possível ir a outros universos diferentes daquele já conhecido através da leitura, etc.

Além dessas razões, a mesma autora justifica que o texto literário é uma base privilegiada para colocar em prática as competências listadas pelo Quadro Europeu Comum de Referência e dá os seguintes exemplos: a compreensão oral pode ser trabalhada através da escuta de poemas musicados; a compreensão escrita, a partir da simples leitura e interpretação do texto; a produção oral, por meio de debates suscitados pela leitura; e a produção escrita de um texto argumentativo, tendo como tema algo que foi abordado no texto literário, por exemplo. Assim, por se tratar de um documento autêntico, podemos compreender “[...] le texte littéraire comme un véritable laboratoire de langue et

comme un espace privilégié où se déploie l’interculturalité”33 (CUQ e GRUCA,

2009, p.413).

Sobre o trabalho com a leitura, Kleiman (2009) afirma que o conhecimento linguístico possui importância fundamental no processamento do texto, pois sem o domínio desse conhecimento prévio sobre a língua e sobre o seu funcionamento, a compreensão de qualquer texto se torna impossível. Outros conhecimentos também estão em jogo na hora da leitura, visto que “o texto é lugar de interação de sujeitos sociais, os quais, dialogicamente, nele se constituem e são constituídos” (KOCH e ELIAS, 2010, p.7). O leitor vai construindo o sentido do texto a partir das pistas fornecidas pelo escritor. Koch e Elias (2010) afirmam, ainda, que a leitura é, então, um exercício de construção de sentidos a partir da ativação de algumas estratégias sociocognitivas, tais como os conhecimentos linguístico, enciclopédico e interacional.

Para se compreender um texto em LE, deve-se, primeiramente, ter algum conhecimento da língua em si. Como o conhecimento de mundo, ou enciclopédico, é adquirido sobretudo através de vivências culturais, ler textos literários pode ser também uma ótima maneira de se ampliar tal conhecimento. A aprendizagem de uma língua estrangeira deve levar em consideração também o aspecto cultural, e os textos literários, nesse sentido, imersos na cultura estrangeira, servem de prerrogativa para essa aprendizagem. O texto literário ajuda os aprendizes a redigir, a criar e a liberar a imaginação na LE.

Destacamos aqui que, apesar de algumas metodologias de ensino pregarem que o trabalho com a literatura só é possível quando o aluno já atingiu um grande domínio do idioma estrangeiro, acreditamos ser possível trabalhar com o gênero literário desde o nível iniciante. Tudo vai depender do texto escolhido pelo professor e da forma como ele vai abordar tal texto. Essa escolha nos parece, então, um dos aspectos fundamentais para o sucesso do uso da literatura em aula de FLE.

Como resultado, Bahrambeiguy (2013) alega que os alunos que têm a oportunidade de estudar tal tipo de texto demonstram mais confiança em si próprios e se familiarizam com a cultura do país cuja língua é estudada. Em consenso com tal visão, Roxel (2013) afirma que é justamente a leitura sensível

33“[...] o texto literário como um verdadeiro laboratório de língua e como um espaço privilegiado

que pode ser feita através da literatura que leva o leitor a se construir e construir a sua própria humanidade. Para esta autora, a finalidade do ensino de literatura

É a formação de um sujeito leitor livre, responsável e crítico ─ capaz de construir o sentido de modo autônomo e de argumentar sua recepção ─ que é prevista aqui. É também, obviamente, a formação de uma personalidade sensível e inteligente, aberta aos outros e ao mundo que esse ensino da literatura vislumbra (ROXEL, p.20, 2013)

O aprimoramento dos conhecimentos linguísticos e a aquisição do conhecimento enciclopédico poderão ser consolidados, então, através do estudo da literatura francófona. Seguindo essa direção, Fresnay (2013) defende que

par l’étude d’écrits francophones, les étudiants seront amenés à se confronter à d’autres systèmes de valeurs, de manière de penser et de faire, ce qui les amènera à se questionner sur leur propre culture et à se construire en tant qu’individu, à repenser leur rapport à celle-ci, et à s’ouvrir à la culture étrangère.34 (p.38)

Enfim, os motivos para se trabalhar com TL em aula de FLE são inúmeros, e poderíamos continuar aqui discorrendo incansavelmente sobre eles. Vamos trazer apenas a visão de mais uma estudiosa da área, para depois seguirmos para outro importante ponto de nosso trabalho.

Serrani (2005), no terceiro capítulo de seu livro, relata que, devido à valorização do ensino funcional da língua — isto é, o ensino para fins práticos — , o uso de textos literários parece ter pouca aplicação real para os contextos de vida cotidiana. No entanto, de acordo com a perspectiva dialógica de ensino, quanto mais gêneros forem estudados, mais amplo será o desenvolvimento da capacidade textual-discursiva do aluno. Assim, a ideia é, cada vez mais, inserir textos literários nas aulas de línguas, seja a língua materna ou a estrangeira, através de “[...] um trabalho discursivo-contrastivo intra e interlinguístico, em que as diversas práticas verbais (leitura, escrita, produção oral, escuta e, quando souber, tradução) estejam inter-relacionadas” (SERRANI, 2005, p.47).

A autora também ressalta que a literatura pode proporcionar prazer e experiências singulares com a linguagem, estas não ligadas obrigatoriamente apenas a objetivos funcionais. Por fim, salienta que na formação dos licenciandos em Letras, as relações intersemióticas não parecem receber uma atenção adequada, havendo várias contradições. A começar pelo seguinte

34 “pelo estudo de escritos francófonos, os estudantes serão levados a se confrontar com outros

sistemas de valores, de maneira de pensar e de fazer, o que os levará a se questionar sobre a sua própria cultura e a se construir como indivíduo, a repensar sua relação com esta [a cultura], e a se abrir à cultura estrangeira.” (Tradução nossa).

paradoxo: apesar de nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de línguas ser enfatizada a importância da literatura para a aprendizagem da língua, os projetos pedagógicos universitários não parecem se preocupar em unir esses dois campos de conhecimento.

Foi o que pudemos perceber na análise dos projetos que fizemos na terceira parte desta dissertação. Ao analisar as grades curriculares, também percebemos a apartação desses dois eixos do saber. Embora diversos teóricos e pesquisas, como mencionamos acima, mostrem como as áreas da linguística e da literatura podem se unir em prol de uma formação mais completa, não vemos, nas diretrizes que guiam a formação profissional do professor, a consolidação, de fato, dessa união. A seguir, faremos a análise do corpus desta pesquisa.

PARTE 3:

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 62-69)