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1 Marco Teórico

1.3 O Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento

Embora a atual assistência ao parto e nascimento em muitos países seja ainda fortemente orientada pelo modelo de atendimento ao parto hospitalar/medicalizado, cresce em muitos países uma tendência no sentido de propor mudanças a esse modelo. Conforme aponta Diniz (2005), uma vez que o uso irracional de tecnologia demonstrou causar mais danos à mulher e ao bebê do que benefícios, “há cerca de 25 anos inicia-se um movimento internacional por priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade da interação entre parturiente e seus cuidadores e a desincorporação da tecnologia danosa.” (p.629). Esse movimento recebeu nomes diversos em diferentes países, tendo como base consensual as propostas da Organização Mundial de Saúde difundidas a partir de 1985. No Brasil, em geral, é chamado de Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento (MHPN).

Tornquist (2002) vê no MHPN o desdobramento das idéias difundidas na década de 1950 por Dick e Lamaze, obstetras que estavam preocupados em minimizar as dores do parto e transformá-lo em um evento mais prazeroso, por meio de técnicas comportamentalistas. Posteriormente, conforme aponta a autora, outros obstetras, como Fredérick Leboyer, Michel Odent e Moisés Paciornik, tendo em vista a mesma preocupação, desenvolveram experiências concretas de preparação para o parto. Essas experiências incorporavam novos ideais, entre os quais se destacam a compreensão do

parto como dimensão da sexualidade da mulher, a participação do pai no processo de parto, a valorização do feto e do recém-nascido como sujeito dotado de individualidade, a valorização da natureza, a crítica à medicalização da saúde, a inspiração em métodos e técnicas não ocidentais de cuidados com o corpo e a saúde e a incorporação de outras categorias profissionais na assistência.

Conforme demonstra Diniz (2001), a sistematização da reflexão crítica sobre o modelo hegemônico de assistência ao parto teve início no contexto do Ano Internacional da Criança, em 1979, quando foi criado, na Europa, um comitê regional para estudar os limites das intervenções propostas para reduzir as taxas de morbidade12 e de mortalidade perinatal e materna naquele continente. Esse estudo identificou, entre outros problemas, a falta de consenso sobre os melhores procedimentos e a extrema variabilidade de opiniões. A partir de então, vários grupos de profissionais passaram a se organizar visando sistematizar os estudos de eficácia e segurança na assistência à gravidez, ao parto e pós-parto.

Esse processo envolveu, além de especialistas, representantes de grupos de mulheres e de organizações de consumidores dos serviços de saúde. Um dos seus resultados mais importantes foi a publicação da revisão sistemática de cerca de 40.000 estudos sobre 275 práticas de assistência perinatal, que foram classificados quanto á sua efetividade e segurança. Esse trabalho foi coordenado por obstetras e teve a colaboração de pediatras, enfermeiras, estatísticos, epidemiologistas, cientistas sociais, parteiras etc., e durou quase uma década, recebendo o nome de “Iniciativa Cochrane” em homenagem ao epidemiologista clínico britânico Archie Cochrane que teve uma forte influência no movimento que ficou conhecido como Medicina Baseada na Evidência Científica (MBEC). Assinala a autora:

Assim, com base nestes estudos, já na metade da década de 80, a avaliação científica das práticas de assistência vem evidenciando a efetividade e a segurança de uma atenção ao parto com um mínimo de, se alguma, intervenção sobre a fisiologia, e de muitos procedimentos centrados nas necessidades das parturientes – ao invés de organizados em função das necessidades das instituições de assistência (Diniz, 2001, p. 3).

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Taxa de morbidade: número de casos de uma doença específica em determinado período de tempo por unidade populacional ou de pessoas vivas (Taber, 2000).

Assim, além de ser tributário dessa história das vanguardas obstétricas, conforme demonstra Tornquist (2002), o MHPN hoje tem incorporado as lições da MBEC, concepção que critica a medicina convencional na medida em que esta se utiliza e abusa de crenças e valores que não têm respaldo científico, mas estão, na verdade, apoiados em concepções culturais. Nesse sentido, tem sido amplamente criticada dentro do MHPN a utilização rotineira de práticas de assistência como o enema, a tricotomia e a episiotomia, entre outras, por não haver base científica que as justifique, sendo essas críticas respaldadas por recomendações técnicas da OMS (OMS, 1996).

Conforme demonstra Diniz (2005), o termo “humanizar” é utilizado atualmente com os sentidos mais diversos, mas nas suas muitas versões, a humanização da assistência “expressa uma mudança na compreensão do parto como experiência humana e, para quem o assiste, uma mudança no ‘que fazer’ diante do sofrimento de outro humano” (p. 628).

A autora, a partir de uma pesquisa realizada em duas maternidades públicas de São Paulo identificadas com a proposta de humanização, constatou serem vários os sentidos atribuídos à humanização do parto pelos sujeitos envolvidos na assistência e que permitem compreender as muitas facetas dessa mudança na maneira de concebê-la: a) humanização como legitimidade científica da medicina, ou da assistência baseada na evidência, que consiste em defender uma prática orientada por revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomizados, em oposição à prática orientada pela opinião e tradição; b) humanização como legitimidade política de reivindicação e defesa dos direitos das mulheres (e crianças e famílias) na assistência ao nascimento. Esse sentido atribuído à humanização implica defender uma assistência baseada nos direitos, de modo a promover um parto seguro e não-violento e que dá às usuárias inclusive o direito de conhecer os procedimentos e decidir quais deverão ser utilizados no parto sem intercorrências. Além desse direito, as mães ainda têm o direito à integridade corporal (não sofrer dano evitável), à condição de pessoa (o direito à escolha informada de procedimentos), a estar livre de tratamento cruel, desumano e degradante (prevenção de procedimentos física, emocional ou moralmente penosos), à equidade, tal como definida pelo SUS, entre outros. Essa abordagem baseada nos direitos busca combinar direitos sociais em geral e direitos reprodutivos sexuais em especial;

c) humanização relativa ao resultado da tecnologia adequada na saúde da população, o que está relacionado à reivindicação de políticas públicas no sentido de uma legitimidade epidemiológica, ou de saúde pública, visando alcançar os melhores

resultados com menos agravos iatrogênicos13 maternos e perinatais. Conforme destaca a autora, esse sentido ganha maior importância à proporção que crescem as evidências de que o excesso de intervenção leva a um aumento da morbi-mortalidade14 materna e neonatal, e se preconiza uma redução das intervenções iatrogênicas como forma de promoção da saúde;

d) humanização como legitimidade profissional e corporativa de um redimensionamento dos papéis e poderes na assistência ao parto. Esse sentido atribuído à humanização inclui o deslocamento da função principal, ou pelo menos exclusiva, no parto normal, do cirurgião obstetra para a enfermeira obstetriz, o que foi legitimado pelo pagamento desse procedimento pelo Ministério da Saúde. Segundo a autora, essa abordagem desloca também o local privilegiado do parto do centro cirúrgico para a sala de parto ou casa de parto;

e) humanização considerada como legitimidade financeira dos modelos de assistência, visando à racionalidade no uso dos recursos. Essa racionalidade é apontada tanto como desvantagem, na medida em que é vista como economia de recursos e sonegação do cuidado apropriado para as populações carentes, quanto uma vantagem, na medida em que é percebida como economia de recursos escassos, propiciando um maior alcance das ações e menos gastos com procedimentos desnecessários e suas complicações; f) humanização referida à legitimidade da participação da parturiente nas decisões sobre sua saúde, à melhoria na relação médico-paciente ou enfermeira-paciente. Nesse sentido atribuído à humanização é dada ênfase à importância do diálogo com a paciente, à inclusão do pai no parto, à presença de doulas15, em alguma negociação nos procedimentos de rotina, à necessidade da gentileza e da “boa educação” na relação entre instituições e seus consumidores. Essa forma de ver a humanização inclui a defesa da mudança arquitetônica de vários serviços particulares, de modo a promover maior privacidade e conforto para as pacientes, com a instalação de salas do tipo “PPP”16 (pré- parto, parto e pós parto), entre outras inovações;

g) humanização como direito ao alívio da dor, que defende a inclusão para pacientes do SUS no consumo de procedimentos tidos como humanitários, antes só disponíveis às

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Iatrogênico: qualquer condição mental ou física adversa induzida num paciente por efeitos de tratamento por um médico ou cirurgião (Taber, 2000).

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Taxa de morbidade acrescida à taxa de mortalidade (Diniz, 2004). 15

Doula: mulher que acompanha outra mulher durante o trabalho de parto, oferecendo contínuo apoio físico e emocional antes, durante e após o parto (Klaus, Kennell & Klaus, 1993).

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Sala PPP: salas de parto onde a mulher é internada em trabalho de parto, tem seu bebê e passa algum tempo depois do nascimento (Diniz, 2004).

pacientes da rede privada, como a analgesia de parto. Para alguns médicos, parto humanizado é sinônimo de acesso à anestesia peridural17, como destaca a autora.

Conforme citado anteriormente, essa nova forma de pensar a assistência tem sido respaldada pela OMS que, desde 1985, tem elaborado diversos documentos que apontam para uma mudança no atendimento ao parto e nascimento. Em 1996, a OMS sistematizou todos os procedimentos meta-analisados pela iniciativa Cochrane e classificou em quatro categorias as práticas mais comumente utilizadas no parto normal. São elas:

A) práticas demonstradamente úteis e que devem ser estimuladas, entre as quais se encontram o respeito ao direito da mulher à privacidade no local do parto, o respeito à sua escolha dos seus acompanhantes durante o trabalho de parto e o parto, o fornecimento de todas as explicações e informações que a parturiente desejar, o uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor (massagens e técnicas de relaxamento, entre outros) durante o trabalho de parto, a estimulação do contato cutâneo direto precoce entre mãe e filho e o apoio ao início da amamentação na primeira hora após o parto, entre outras práticas;

B) práticas claramente prejudiciais ou ineficazes e que devem ser eliminadas, entre as quais se destacam o uso rotineiro do enema, da tricotomia e da posição de litotomia18 durante o trabalho de parto;

C) práticas em relação às quais não existem evidências suficientes para apoiar uma recomendação clara e que devem ser utilizadas com cautela, até que mais pesquisas esclareçam a questão. Aqui se incluem práticas como a manipulação ativa do feto no momento do parto e o pinçamento precoce do cordão umbilical;

D) práticas freqüentemente utilizadas de modo inadequado. Entre essas práticas estão o controle da dor por analgesia peridural, a correção da dinâmica do trabalho de parto com a utilização da ocitocina, o parto operatório e o uso liberal ou rotineiro da episiotomia (OMS, 1996). Tal classificação buscou tornar mais objetiva a consulta dos profissionais a respeito de suas decisões.

No Brasil, segundo Tornquist (2002), pode-se falar de um movimento social pela humanização do parto e do nascimento pelo menos desde o final da década de 1980, período em que se observou a organização de algumas associações de tipo não-

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Anestesia peridural: tipo de anestesia em que o médico introduz uma cânula na coluna vertebral e injeta uma solução anestésica a cada período de tempo, ou mesmo continuamente (Diniz, 2004).

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Posição de litotomia: posição em que a mulher fica deitada de costas com as nádegas na extremidade da mesa cirúrgica, as coxas e os joelhos completamente fletidos e os pés apoiados em alças (Stedman, 1999).

governamental e redes de movimentos identificadas principalmente com a crítica ao modelo medicalizado de assistência. Entre essas redes, destaca-se a Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (REHUNA), constituída em 1993 e com representantes em todo o País, entre profissionais e usuários dos serviços de saúde e que têm desenvolvido ações importantes para a implementação efetiva dessa nova proposta. Entre essas ações, destacam-se a realização de campanhas como a que defendeu o direito à presença do acompanhante durante o trabalho de parto e o parto e que contribuiu para a criação de uma lei federal19 garantindo esse direito a todas as usuárias do SUS, além daquela que defende a abolição da realização de episiotomias de rotina, bem como a organização de diversos eventos nacionais e internacionais.

O Ministério da Saúde também aderiu à nova proposta e, em 2000, foi implementado o Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento. Na publicação do manual intitulado “Parto, Aborto e Puerpério - Assistência Humanizada à Mulher”, em 2001, é possível notar o reconhecimento da gravidez e parto como eventos sociais. Aspectos como a consideração da individualidade da mulher na assistência, a percepção das suas necessidades, a importância de ela assumir o comando da situação e do vínculo com o profissional de saúde que presta o atendimento são ressaltados (MS, 2001).

Dessa forma, o MHPN representa uma oposição à medicalização do parto, caracterizada pela exacerbação do paradigma médico que trata o parto como evento patológico e está centrado no intervencionismo técnico. Conforme foi demonstrado, dentro dessa nova proposta, encontra-se uma preocupação que abrange, além de aspectos relativos à saúde pública, como a redução da taxa de cesáreas e mortalidade materna, também uma preocupação com o bem-estar da mulher e do bebê, acentuando- se a importância dos aspectos sociais, psicológicos e culturais envolvidos no parto. Há também uma tentativa de resgatar o trabalho das parteiras e integrá-las ao Sistema de Saúde.

Diniz (2001) aponta que essas mudanças na maneira de compreender a assistência resultaram em um novo paradigma de atenção, segundo o qual qualquer intervenção sobre a fisiologia do parto só deve ser feita quando se prova mais segura e/ou efetiva do que a não-intervenção. Esse novo paradigma postula também o direito à informação e à decisão informada nas ações de saúde, o que implica uma mudança importante na maneira de conceber a relação médico-paciente, na medida em que supõe que a decisão deve ser compartilhada entre os envolvidos, em vez de tomada de forma

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unilateral pelo profissional ou pela instituição que presta a assistência. Porém, conforme analisa a autora, no Brasil, essas e outras recomendações vêm sendo sistematicamente desconsideradas, quando muito são conhecidas.

A despeito das contribuições inquestionáveis que a proposta da humanização tem trazido para a melhoria da assistência ao parto no Brasil, na prática, o que se observa é que mesmo os serviços de saúde com ela identificados apresentam lacunas importantes na atenção. Em estudo etnográfico, realizado numa maternidade pública identificada com o ideário da humanização, Tornquist (2003) aponta para a necessidade de colocar em perspectiva os próprios valores e as representações que sustentam as iniciativas humanizadoras. De acordo com a autora, se de um lado o ideário do parto humanizado advoga os direitos das mulheres no momento do parto, de outro parece estar desatento às diferenças socioculturais existentes entre essas mulheres e se basear em aspectos técnicos isolados e em um modelo universalista de família e feminilidade.

Se as mulheres não são vistas como sujeitos, sujeitos estes que advêm de culturas diferentes e que têm emoções e desejos que não são universais nem meramente mensuráveis, as medidas humanizadoras poderiam resultar em meros procedimentos técnicos, produzindo efeitos tão deletérios quanto o tratamento tecnocrático que se pretende combater.” (Tornquist, 2003, p. 426).

Dessa forma, a presente pesquisa assumiu como pressuposto a idéia de que, para transformar a assistência, há que se conhecer as representações sociais que a sustentam.