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Utilização de Algumas Práticas de Assistência nas Maternidades

5 Discussão dos Resultados

5.5 Utilização de Algumas Práticas de Assistência nas Maternidades

Conforme demonstrado nos itens 4.3.1 e 4.3.2, constatou-se que existem diferenças relevantes entre as rotinas de assistência das duas maternidades investigadas, o que parece refletir diferentes visões sobre a utilização das práticas de assistência estudadas. Dessa forma, os dados parecem indicar uma representação social entre os profissionais que trabalham na Maternidade A de que há algumas dessas práticas, como o enema e a tricotomia, que devem ser utilizadas em todas as pacientes, a despeito das recomendações da OMS, baseadas em evidências científicas atuais, as quais condenam esse tipo de conduta nos partos normais (OMS, 1996). Outros estudos apontam para uma visão dos profissionais de saúde, principalmente os da área de medicina, de que intervenções como essas e outras são necessárias e até benéficas (Dias & Deslandes, 2004; Faúndes et al., 2004 & Ratto, 2001). Considerando que a medicina tende a pressupor a existência de bases científicas para todas as suas condutas, conforme apontam Davis-Floyd e St. John (2004), esses dados permitem constatar que existem representações sociais não somente na interface entre ciência e público geral, mas também dentro da própria ciência, que está também sujeita à influência de diferentes aspectos do conhecimento não científico, conforme demonstra Bangerter (1995).

Por outro lado, na Maternidade B, embora a análise dos dados tenha ficado parcialmente prejudicada pelo fato de que sete entre as 10 mulheres entrevistadas terem sido submetidas à cesariana, parece predominar a concepção de que nenhuma das práticas investigadas deve ser utilizada de forma rotineira, o que está mais de acordo com as evidências científicas atuais.

Constata-se, assim, o quanto os comportamentos dos grupos sociais não são determinados pelas características objetivas das situações, mas pela representação destas, conforme expõe Abric (2001). Assim, explica-se porque diferentes grupos com representações distintas têm condutas diferentes em uma mesma situação.

No item “b”, questão número seis do roteiro de entrevista utilizado para os profissionais (anexo B), faz-se uma investigação mais aprofundada das razões alegadas pelos profissionais da Maternidade A para utilizar de forma rotineira uma dessas práticas - o enema - a despeito das recomendações em contrário da OMS (OMS, 1996). Vários foram os motivos alegados para a adoção dessa conduta, como o risco de contaminação da mulher e do bebê, o conforto da mulher, o costume de fazer, para evitar odores ruins na sala de parto, entre outros aspectos apontados, conforme apresentado no item 4.3.1 Dessa forma, constatou-se que, além de os motivos alegados desconsiderarem evidências científicas atuais que não comprovam os benefícios dessa prática, alguns deles baseiam-se em crenças pessoais dos próprios profissionais. Davis- Floyd e St. John (2004), analisando o sistema médico americano, constataram que, apesar de pretenderem o rigor científico, as condutas médicas naquele sistema são, na verdade, fortemente influenciadas pelo contexto cultural em que estão inseridas. Além disso, os motivos apontados pelos profissionais da Maternidade A para realizar o enema rotineiramente parecem se basear também numa visão de que o médico detém sozinho o conhecimento do que é melhor para a parturiente e para o bebê, considerando que na Maternidade A somente os profissionais dessa categoria são responsáveis pela assistência ao parto.

Assim, por exemplo, no caso em que os profissionais mencionam o conforto da paciente como uma justificativa plausível o bastante para a adoção rotineira do enema, caberia questionar aqui por que eles não delegam à mulher a responsabilidade pela escolha do que julga mais confortável para si.

Observou-se também que, apesar de alguns profissionais da Maternidade A terem reconhecido que não há trabalhos científicos que provem os benefícios do enema e que há situações nas quais, mesmo tendo sido submetidas a essa prática, as mulheres

evacuam na sala de parto, eles defendem o seu uso de forma rotineira. Nesse sentido, Davis-Floyd e St. John (2004) demonstram o quanto, no modelo tecnocrático de atenção ao parto, o seguimento das rotinas acaba tomando a forma de um ritual tão incorporado pelo profissional, devido à constante repetição, que termina se tornando um reflexo impensado e raramente questionado.

Portanto, esses dados parecem apontar mais uma vez para uma idéia predominante entre esses profissionais de que cabe exclusivamente ao médico decidir a maneira como o parto ocorrerá, mesmo que não haja evidências científicas que sustentem suas decisões. Isso, por sua vez, parece refletir, por outro lado, uma visão de que a opinião do médico é mais importante do que a da parturiente.

Por outro lado, a manutenção de rotinas que submetem todas as mulheres à realização do enema, a despeito das evidências científicas que apontam sua contra- indicação, parece desempenhar a função de manter a identidade do grupo em questão, ou seja, do grupo dos profissionais de medicina, cuja atuação está historicamente relacionada ao uso de intervenções técnicas, conforme demonstram Davis-Floyd e St. John (2004). Abric (1998), ao falar das funções das representações sociais, defende que uma dessas funções é a identitária, ligada à preservação da imagem positiva que os grupos sociais têm de si, bem como sua especificidade na inserção social.

Os dados obtidos do grupo das mulheres assistidas, no tocante à utilização das práticas de assistência investigadas nas Maternidades A e B, confirmam mais uma vez a existência de diferenças importantes entre as rotinas de assistência dessas duas instituições.

Dessa forma, observou-se que, enquanto na Maternidade A as informações fornecidas pelas mulheres parecem indicar o uso rotineiro do enema e da tricotomia, assim como o uso freqüente da ocitocina para corrigir a dinâmica do parto e da episiotomia, na Maternidade B, os dados coletados levam a crer que nenhuma das práticas investigadas é utilizada com freqüência ou rotineiramente.

No caso das mulheres atendidas na Maternidade A, o que chama a atenção é que parece não haver um questionamento de sua parte sobre a necessidade ou não de realizar as práticas investigadas e outras às quais elas foram submetidas. Esses dados parecem apontar para uma concepção comum entre as mulheres, de que o profissional de saúde, principalmente o médico, detém o conhecimento sobre o que é melhor para ela, além de revelar uma subjugação ao poder médico que, historicamente, caracteriza a assistência ao parto em nossa sociedade, conforme já apontado anteriormente.

Com relação às mulheres assistidas na Maternidade B, por outro lado, observou- se, durante as entrevistas, que muitas delas demonstraram um estranhamento quanto ao fato de não terem sido submetidas a práticas como o enema, a tricotomia e a episiotomia, o que parece indicar que a sua utilização já foi incorporada ao senso comum como algo “normal” na assistência ao parto e, por isso, esperado. Campero et

al. (1998) encontraram resultados semelhantes com relação a esse aspecto.

5.6 A Assistência ao Parto Segundo os Profissionais de Saúde e as Mulheres