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O Terceiro Setor no Brasil: tentativas conceituais

E, finalmente, o quinto capítulo, tratará sobre “Os efeitos do Programa Rede Vencer em Altamira e Santarém: entre os desafios da construção e os riscos da

1 ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E SUAS INTERFACES COM O TERCEIRO SETOR: CONFIGURAÇÕES, IMPASSES E PERSPECTIVAS

1.3 O Terceiro Setor no Brasil: tentativas conceituais

A compreensão do Terceiro Setor no Brasil precisa ser apreendida no cerne do movimento pela Reforma do Estado, cuja tônica se expressou mediante a materialização de uma agenda governamental que, dentre as diferentes propostas, privilegiou a criação dos serviços não-exclusivos do Estado. Com essa medida, viabilizou-se uma política de parceria entre Estado e Sociedade, cujo respaldo se dá principalmente pela política de privatização e descentralização. Tal parceira institucional delegaria às chamadas Organizações Sociais, conforme já vimos, a autoridade para prestar serviços sociais e científicos de maneira

                                                                                                                         

17 O termo repolitização da política diz respeito a redefinição da participação política no contexto democrático das décadas finais do século XX e iniciais do século XXI, voltadas ao fortalecimento da coesão social nos moldes do neoliberalismo da Terceira Via (NEVES, 2005)

competitiva, com financiamento tanto do Estado, como do setor privado (BRESSER PEREIRA & GRAU, 1999).

Tais organizações – denominadas por Bresser Pereira (1999a) de Organizações Públicas dos Não-Estatais – OPNES, que por meio da “[...] publicização dos serviços sociais, transformam entidades particulares e instituições estatais na forma institucional de

organizações sociais” (SILVA, 2003, p. 99 grifo da autora) – apresentam como traços

distintos a finalidade não lucrativa e o trabalho voluntariado (BRESSER PEREIRA & GRAU, 1999; CABRAL, 2004; GOHN, 2000; SILVA, 2003).

Emerge, assim, na cena política como novo espaço público não estatal desenvolvendo ações na prestação de serviços e na abordagem de problemas sociais de natureza eminentemente pública, realizando ações mediante relação formal com o Estado por via de contratos de gestão e participação no orçamento público – o que Montaño (2007) avalia como negativo, por representar uma estratégia de privatização dos serviços sociais e de parte de recursos públicos. Este autor considera que a construção ideológica do TS, que o postula como alternativa ao princípio do Mercado e do Estado no atendimento dos serviços sociais, mascara “a desresponsabilização do Estado da resposta à ‘questão social’ e sua transparência para o setor privado” (Ibidem, p. 48). Nessa medida, fragiliza os direitos sociais, a participação e o controle social das políticas sociais por submetê-los aos “critérios gerenciais das empresas, e não a uma lógica de prestação de serviços e assistência conforme um nível de solidariedade e responsabilidades sociais” (Ibidem, p. 48).

É certo que a literatura sobre o TS é bastante diversa, expressando abordagens diferentes e antagônicas, principalmente no que concerne às tentativas de conceituações, características, finalidades. Para Cabral (2004a, p 03), a designação do Terceiro Setor refere- se ao “conjunto de iniciativas e organizações privadas, baseadas no trabalho associativo e voluntário, cuja orientação é determinada por valores expressos em uma missão e com atuação voltada ao atendimento de necessidades humanas”. Ou seja, o TS refere-se a uma nomenclatura geral adotada para distinguir as organizações sociais particulares daquelas organizações de caráter empresarial e de organizações governamentais, representando assim um campo mediador que se relaciona com o Estado, o mercado e a comunidade, com a finalidade de prover bens comuns de proteção social (CABRAL, 2007).

Por se tratar de uma arena que reflete uma amplitude conceitual e uma heterogeneidade significativa, o que repercute na ausência de consenso quanto à abrangência de seu conceito e às terminologias adotadas para se referir às organizações que o compõem,

Fischer (2002) sugere um conceito amplo, fundamentado na linha de pensamento americana preconizada por Salamon e Anheier (1992), que pode expressar toda a diversidade que marca o Terceiro Setor. Em suas palavras:

Terceiro Setor é a denominação adotada para o espaço composto por organizações privadas, sem fins lucrativos, cuja atuação é dirigida a finalidades coletivas ou públicas. Sua presença no cenário brasileiro é ampla e diversificada, constituída por organizações não-governamentais, fundações de direito privado, entidades de assistência social e de benemerência, entidades religiosas, associações culturais, educacionais, as quais desempenham papéis que não diferem significativamente do padrão conhecido de atuação de organizações análogas em países desenvolvidos. Essas organizações variam em tamanho, grau de formalização, volume de recursos, objetivo institucional e forma de atuação. Tal diversidade é resultante da riqueza e pluralidade da sociedade brasileira e dos diferentes marcos históricos que definiram os arranjos institucionais nas relações entre o Estado e o Mercado (Ibidem, p. 45).

Seguindo essa linha de raciocínio sobre a heterogeneidade e as contradições do Terceiro Setor, Gohn (2000, p. 60) propõe uma caracterização considerada adequada para dar conta da amplitude do conceito do TS. Considera este como “um tipo de ‘Frankenstein’: grande, heterogêneo, construído de pedaços, desajeitado, com múltiplas facetas”, expressando contradições por abarcar entidades de cunho mais progressista, bem como aquelas mais conservadoras; desenvolvendo ações ligadas a programas e projetos sociais com objetivos que contemplem a emancipação dos setores populares e a construção de uma sociedade mais justa, ao mesmo tempo em que trabalha com programas meramente assistenciais, compensatórios, estruturados pela lógica de mercado.

O fortalecimento do TS verificado em âmbito global nos últimos anos vem sendo apontado por diversos autores como decorrência da falência do Estado e da expansão do mercado. Essa nova ordem social surge propondo mudanças nas relações entre Estado, mercado e sociedade civil.

De acordo com Silva (2003, p. 101), o surgimento do TS tem suas origens nos países centrais do século XIX, e desde sua emersão no cenário social já apresenta a heterogeneidade ideológica, resultando daí as imprecisões em relação aos “seus objetivos que ora tendem a ser alternativos ao capitalismo liberal, ora pretendem apenas amenizar os efeitos perversos da Revolução Industrial ou então combater um certo isolamento do indivíduo face ao Estado e à organização capitalista”.

Ao dissertar sobre a questão, Coelho (2002) considera que o avanço e a ampliação do Terceiro Setor têm como aspecto nodal a crise Welfare State, uma vez que

A partir da evidente crise de um modelo conhecido como Welfare state, no qual o Estado procurava responder com eficiência e eqüidade às necessidades e anseios de uma sociedade em constante mudança, os analistas têm investigado e avaliado novos caminhos para o desenvolvimento social, propondo a realocação e a transformação de funções dos diferentes atores sociais. É nessa discussão que a literatura procura introduzir a importância de uma relação bem estruturada do Estado com o terceiro setor (COELHO, 2002, p. 26).

A autora assinala ainda que o termo Terceiro Setor foi empregado pela primeira vez nos Estados Unidos nos anos de 1970, sendo que na década seguinte passou a ser aludido por estudiosos europeus para expressar uma combinação entre o Estado e o Mercado, por combinar “a flexibilidade e a eficiência do mercado com a equidade e a previsibilidade da burocracia pública”. (Ibidem, p. 58). Segundo esta autora, a tradição histórica evidencia que ao primeiro setor idealizado pelo Estadocompete representar os interesses da sociedade no que diz respeito ao desenvolvimento de políticas e atividades relacionadas às demandas sociais, com a incumbência de gerir, assegurar e aperfeiçoar os bens e serviços, de modo a garantir o bem estar dos cidadãos. Ao segundo setor, constituído pelo Mercado, ficou a incumbência da execução dos interesses privados com suas bases ajustadas na iniciativa privada e no setor produtivo do país a que se destina.

Coelho (Ibidem, p. 61) aponta ainda que o termo TS não é o mais empregado no Brasil para diferenciar organizações que compõem este setor, preferindo-se aqui a terminologia ‘organização não-governamental’. Portanto, seu uso é recente no País, tendo sido verificado pela primeira vez nas pesquisas de Rubem César Fernandes e Leilah Landim. A autora ainda destaca que, pelo fato de os termos aplicados às instituições que constituem o TS configurarem-se como múltiplos e ambíguos, na maioria das vezes, os estudiosos da área optam pela adoção de determinada nomenclatura. Assim,

A literatura – internacional e brasileira – tem se esforçado na busca de definições mais precisas, mas os resultados não são compensadores. Em geral os autores optam por uma determinada denominação, citam outras tantas, e nisso finda a discussão. Essa multiplicidade de denominações apenas demonstra a falta de precisão conceitual, o que, por sua vez, revela a dificuldade de enquadrar toda a diversidade de organizações em parâmetros comuns (Ibidem, p.58).

De forma semelhante, Dowbor (1999) recomenda que a discussão sobre o Terceiro Setor, para ser entendida, precisa de uma revisão dos paradigmas segundo os quais a sociedade se gere, uma vez que eles encontram-se impregnados pela visão de que organizar a participação da sociedade civil representa apenas uma forma de desresponsabilizar o Estado. Nessa medida,

É muito significativo constatarmos que uma série de conceitos básicos da reformulação política e social que está ocorrendo em muitos países sequer encontra tradução em português: é o caso de empowerment, que os hispano- americanos já traduzem de empoderamiento, no sentido de resgate do poder político pela sociedade; de stakeholder, ou seja, de ator social que tem um interesse numa determinada decisão; de advocacy, que representa o original etimológico de ad-vocare, de criar capacidade de voz e defesa a uma causa, a um grupo social; de accountability, ou seja, da responsabilização dos representantes da sociedade em termos de prestação de contas; de

devolution, recuperação da capacidade política de decisão pelas comunidades, como contraposição ao conceito de privatização; trata-se também de entitlement, de self-reliance e tantos outros. Além do conceito- chave de governance, que envolve capacidade de governo do conjunto dos atores sociais, públicos e privados, onde o conceito tradicional de governança, tal com existe no Aurélio, tem de ser reconstruído. (Ibidem, p. 13)

Considera também, que a área social enfrenta sérios problemas muito mais de cunho técnico do que propriamente de mais dinheiro, necessitando portanto, de uma reformulação político-administrativa. Com isso, aponta que o Terceiro Setor, ao se articular com o Estado, surge como uma alternativa de organização que pode propiciar respostas inovadoras e assegurar a participação cidadã.

As análises de Montaño (2007) se direcionam em uma perspectiva crítica à origem e aos fundamentos teóricos do termo Terceiro Setor, por se assentarem em visão hegemônica inspiradas em vieses estruturalistas ou neopositivistas que desconsideram a totalidade do fenômeno social. Ao se posicionar sobre a procedência do conceito, este autor parte de uma postura analítica que considera o TS como produto da crise e da reestruturação do capital ocasionada pela ofensiva neoliberal. Nessa direção, compreende que

[...] o debate hegemônico que sustenta seus pressupostos e promessas, o fenômeno que se oculta por trás desta denominação ideológica e a sua funcionalidade para com o projeto neoliberal, no novo enfrentamento da “questão social”, inserido no atual processo de reestruturação do capital [...] caracteriza um fenômeno que envolve um número significativo de organizações e instituições [...] Por outro, mesmo que de forma encoberta, também envolve o Estado, ator destacado na promoção do “Terceiro Setor”, tanto no plano quanto na esfera financeira, como contrapartida à retirada

paulatina da responsabilidade estatal no trato à “questão social”. (Ibidem, 2007, p. 14-15).

Fundamentando-se em estudos de Landim (1999), Montaño (2007) tece reflexões sobre o tema em questão. Segundo suas análises, observa que o termo TS não é neutro e tem suas raízes nos Estados Unidos nos anos de 1978, dentro de um contexto que promove o associativismo e o voluntariado como parte de uma cultura política e cívica com bases no individualismo liberal. Não obstante, o autor ressalta que “o termo é construído a partir de um recorte do social em esferas: o Estado (“primeiro setor”), o mercado (“segundo setor”) e a “sociedade civil” (“terceiro setor”)” (Ibidem, p. 53). Recorte esse que isola e autonomiza a dinâmica dos respectivos setores, desistoricizando, portanto, a realidade social, “Como se [...] o “político” pertencesse à esfera estatal, o “econômico” ao âmbito do mercado e o “social” remetesse apenas à sociedade civil, num conceito reducionista” (Ibidem, p. 53).

Outro aspecto ressaltado por Montaño (2007) diz respeito à debilidade teórica que marca a evolução do conceito do TS, por não apresentar consenso entre os teóricos e pesquisadores quanto às entidades que integram o respectivo setor. Isso porque este abrange organizações não governamentais (ONGS), fundações, creches comunitárias, sindicatos, movimentos políticos insurgentes e atividades sociais em qualquer âmbito. Daí que

O termo “terceiro setor” não reúne um mínimo consenso sobre sua origem nem sobre sua composição ou suas características. Tal dissenso é clara expressão de um conceito ideológico que não dimana da realidade social, mas tem como ponto de partida elementos formais e uma apreensão da realidade apenas no nível fenomênico. Sem a realidade como interlocutora, como referência, acaba-se por ter diversos conceitos diferentes (MONTAÑO, 2007, pp. 58-59).

De acordo com a avaliação da própria Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG18, Terceiro Setor é um termo que

[...] apresenta ‘baixa precisão conceitual’, refere-se à constituição de um setor da sociedade, fora do espectro governamental e fora do espectro do mercado [...]. É composto por um conjunto de organizações e iniciativas privadas, mas com funções de interesse público. No entanto, está implícita                                                                                                                          

18 A Associação Brasileira de Organizações não Governamentais - ABONG foi instituída em 10 de agosto de 1991, como uma sociedade civil sem fins lucrativos, democrática, pluralista, antirracista e antissexista, que junto com outras organizações, desenvolve ações contra todas as formas de discriminação, de desigualdades, pela construção de modos sustentáveis de vida e pela radicalização da democracia. (Disponível em http://abong.org.br. Acesso em 05/12/2011).

nessa ideia a noção de que o Terceiro Setor pode (e deve) substituir o Estado no enfrentamento de questões sociais. Por isso, Terceiro Setor não é um termo neutro (ABONG, 2005, p.18).

Aspecto esse também identificado por Cabral (2004a; 2004b), ao apontar que, devido a sua localização estrutural como parte da sociedade civil, o TS reflete um espaço de tensões e conflitos que pode assumir lógicas e compreensões diversas, bem como pode abrigar grupos e iniciativas distintas entre si, abrangendo desde empreendimentos informais, voluntários e de responsabilidade empresarial, até aquelas manifestações mais elaboradas e formais. Essa efervescência de experiências e ações acaba por gerar um campo múltiplo que permite situar esse setor como institucionalidade polivalente e híbrida, capaz de agregar novas modalidades de organizações e diferentes conceituações, com interesses e projetos assentados em uma dinâmica associativa no campo das políticas públicas – aspectos que passaremos a analisar na seção seguinte.