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CAPÍTULO I-TERMINOLOGIA: ENQUADRAMENTO E DELIMITAÇÃO

Mapa 2: Representação da Terminologia (baseado em Roche, 2012, p 17).

1.7 Perspectiva textual e perspectiva conceptual

1.7.1 O texto de especialidade

Como mais à frente se descreverá, no âmbito das Ciências Sociais e Humanas, o recurso a fontes documentais relacionadas com o domínio em estudo é uma estratégia básica, tal como sustenta Yin (2009, p. 103): /…/ the most important use of documents is to corroborate and augment evidence from other sources. Em Terminologia, o texto de especialidade é o principal ambiente discursivo e comunicativo ao dispor do terminólogo, constituindo-se naturalmente, um elemento fundamental de observação e de análise. Nesse território são procurados indícios de existência de conceitos, de denominações, que são de pontos de acesso ao conceito. Neste último caso, estar-se-á a levar a cabo uma análise de texto para fins onomasiológicos. Como explica Nuopponen (1996, p. 3):

Texts that describe a material or immaterial object and its relationships to other objects on a general level often contain more of the kind of information that a terminologist is looking for.

54Talvez por essa razão, a Terminologia textual (Bourigault & Slodizian, 1999) grajeou forte aceitação, constituindo, durante algum tempo, uma perspectiva teórica e metodológica inovadora face aos fundamentos da doutrina wusteriana.

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Sendo o discurso especializado um espaço privilegiado da comunicação e da partilha de conhecimento, é, naturalmente, através do discurso oral e escrito que o especialista transmite a sua visão do mundo; é também, por conseguinte, através das manifestações discursivas escritas, isto é, do texto, que o especialista representa uma conceptualização do conhecimento que visa partilhar, por via da expressão linguística. O texto é, na perspectiva de Rastier (2001, p. 21), uma materialização do discurso, o resultado de uma prática social, fixada num determinado suporte, constituindo um espaço onde se reúne de forma estável uma parte dos resultados decorrentes dos processos cognitivos complexos, representativos de um conhecimento partilhado por uma determinada comunidade. O texto torna-se texto de especialidade quando, como salienta Costa (2010, p. 2):

/…/ les connaissances qui y sont représentées sont de la responsabilité des auteurs experts reconnus au sein de leurs communautés. Les intervenants – les auteurs et les récepteurs – partagent des connaissances et des savoir- faire, même si l’entendement qu’ils ont de la chose énoncée n’est pas nécessairement consensuel. Il s’instaure une relation de complicité scientifique et professionnelle entre les

auteurs et les récepteurs qui est amplifiée par la présence des implicites et des

non-dits sur lesquels se construisent les énoncés (Costa & Silva, 2008: 6) auxquels les non-experts, par manque de connaissances, ne peuvent accéder55.

O texto de especialidade constitui, deste modo, uma representação linguisticamente codificada, não formalizada, do conhecimento (Costa, 2010, p. 3), na qual se encontram denominados conceitos e, dentro da qual se estabelecem relações lexicais e semânticas que reflectem parcialmente relações conceptuais resultantes de processos cognitivos. O seu papel na construção, divulgação e reformulação do discurso científico é, por certo, indiscutível (Costa, 2006, p. 6):

It is through the specialized text that the specialist decisively contributes to the evolution of knowledge. Specialists use specialized texts both to transmit knowledge and have access to it. But the text is also the place for debate, consequently it is where we can see a lack of consensus among the members of a specialized community, and where polysemy, ambiguity, synonymy, and voluntary and involuntary imprecision thrive. It is there that variation is created and perceived in texts as well.

No entanto, o conhecimento que define um determinado domínio de especialidade e a representação discursiva desse conhecimento não são necessariamente

55 Sublinhado nosso.

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coincidentes. Também Prandi (2011, p. 15) reconhece que os textos constituem uma via de acesso incontornável ao conceito, mas tal evidência não infirma a existência de um sistema de conceitos autónomo face à realidade textual:

Cela n’est pas un cercle vicieux – la langue et les textes fournissent une voie

d’accès incontournable aux concepts, mais en même temps ils dépendent pour

leur fonctionnement d’un système de concepts indépendant – mais un cercle vertueux56.

É, efectivamente, através do texto de especialidade que um grupo de investigadores perpetua a memória científica da sua área de especialização. É, todavia, necessário salientar que a estrutura do texto procura constituir uma apropriação da lógica subjacente a uma determinada conceptualização. É por essa razão que, no entendimento de Costa (2010, p. 2), o texto, enquanto objecto de análise, é frequentemente entendido não como uma representação do conhecimento,mas como o conhecimento per se. Para além disso, as denominações, as colocações terminológicas e as combinatórias lexicais, entre outros instrumentos inerentes à produção textual, são elementos necessários ao processo de construção discursiva, mas não necessariamente ao processo de representação formal de conhecimento. Será por tais razões que a investigadora (2010, p. 3), considera que:

Le recours aux textes entraîne des difficultés. Beaucoup d’obstacles associés à l’utilisation de corpus pour un travail terminologique à base conceptuel. Parce que souvent on trouve dans les textes ce que l’on veut y voir et non pas ce qui y est57. Tal não significa que a investigadora menospreze o valor da evidência proporcionada pelos corpora textuais; estes desempenham, por certo, um papel relevante nas metodologias do trabalho terminológico. Todavia, quando o enfoque desse trabalho é o conceito, a utilização exclusiva de uma base textual tenderá a ser um equívoco metodológico. O terminólogo utilizará o corpus textual em diferentes etapas do seu percurso metodológico, mas só a delimitação dos objectivos do seu trabalho permitirá aferir o papel que este recurso empírico representa. Enquanto linguista- terminóloga, Costa sustenta que a sistematização das denominações é fundamental, dada

56 Sublinhado nosso.

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a sua correlação com o sistema conceptual que representa, porém, não poderá ser tomada como adquirida uma relação apriorística de isomorfismo (Costa, 2010, p. 4):

C’est justement parce que nous défendons une terminologie qui a le concept au

centre de sa démarche58, que nous pensons que les textes peuvent être d’une grande utilité à condition de les manipuler avec précaution.

Na metodologia de trabalho terminológico que a investigadora propõe, o texto de especialidade tem primariamente o papel de familiarizar o terminólogo com o domínio que este se propõe estudar. Para tal, deverão ser tidos em conta critérios classificatórios. Na fase de recolha e classificação documental, a leitura permitirá aceder às representações do conhecimento de determinado grupo profissional. Por conseguinte, o texto tem também o papel de permitir que o terminólogo se familiarize com as práticas discursivas da área, estabelecendo-se como mote para a colocação de questões ao especialista, como espaço de consenso e de divergência. Em suma, o texto de especialidade é, deste modo, um elemento mediador entre o terminólogo e o especialista (Costa, 2006, p. 9):

We start off with the text, in order to, through it, process, organize and represent knowledge, that is to say that we distance ourselves from the text, so as to come back to it later on in our workflow59.

Numa perspectiva mais extremada, porque sustentada em fundamentos logicistas, Roche (2007b, p. 5)advoga que construir uma ontologia a partir de um texto pressupõe a assunção de que (1) o especialista consegue vazar o conhecimento ontológico no texto; (2) e que o processo reverso é possível; isto é, seria possível chegar ao conhecimento ontológico a partir do texto. Para tal se constituir como verdade, um nome terá de denotar um conceito e uma relação hiponímica terá de ser correlata de uma relação de subsunção. Em suma, a utilização de corpora para a construção de uma ontologia implica a aceitação da hipótese de que a estrutura conceptual corresponde à estrutura lexical e que a primeira é passível de ser inferida a partir da segunda. Todavia, Roche (2007b, p. 6) objecta liminarmente à existência de tal isomorfismo com dados empíricos, postulando que:

/…/ ontology built from text in general does not satisfy our expectations in terms of sharing, reusability, consensus and soundness. The problems we encounter are

58Sublinhado nosso.

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mainly due to the fact that these hypotheses are too strong and not always true, even if we use constrained languages for writing technical document. In reality, ontology building from text is the concern of textual linguistics. One of the latter’s principles is the incompleteness of text. This implies that understanding text, and then understanding the meaning of terms, requires extra-linguistic knowledge which by definition is not included in the corpus.

O investigador advoga que o texto de especialidade é produzido em função de uma determinada intenção comunicativa e que os seus pressupostos de redacção têm por base uma construção retórica sustentada em figuras como a metáfora, a metonímia e a sinédoque. Estas figuras pressupõem que especialista e leitor partilhem uma conceptualização pré-existente do mundo, necessária à compreensão do texto. Este conhecimento pré-existente é, para Roche, a ontologia do domínio e não se encontra incluído nos textos, logo não poderá, naturalmente ser deles extraído (2007b, p. 6):

Natural language is not a suitable language for specifying conceptualization: it is not its aim; as well as the main goal of writing text is not to define ontology. Knowledge acquisition from text corresponds to a semasiologic approach where we first find terms (mainly nouns) and then define them in a given context. Such an approach is concerned with linguistics and more precisely with lexical semantics [14] whose main objective is word meaning.

Uma ontologia construída a partir do texto será, pois, do seu ponto de vista, sempre dependente e condicionada ao corpus, dado que mesmo quando diferentes comunidades de especialistas partilham a mesma realidade, os termos utilizados poderão não ser os mesmos. Daqui resulta a necessidade de solicitar aos especialistas que definam a sua conceptualização independentemente dos seus termos de uso (2007b, p. 9).

Since we can consider that technical and scientific documents convey some domain knowledge, ontology building can rely on knowledge acquisition from texts. But such a conceptualization is corpus-dependent and does not offer the main properties we expect from ontology, e.g. reusability and soundness. Furthermore, ontology extracted from text in general does not match ontology defined by expert using a formal language.

As reservas apontadas não impedem o investigador de admitir que há muita informação útil que poderá ser extraída do texto. Do seu ponto de vista, o resultado que se pode obter com uma metodologia textual é uma rede de termos de uso interligados por relações linguísticas. Afirma, pois, categoricamente, que não há conceito no texto:

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There is no concept in text, and the lexical structure does not match with the domain conceptualization60 (2007b, p. 9). A alternativa metodológica é, no quadro por si proposto, o recurso a linguagens formais, dado que só estas se aproximarão da neutralidade epistemológica necessária à construção de uma ontologia de domínio (Roche, 2007b, p. 1):

We claim that the conceptual modelling built from text is rarely an ontology. Such

a conceptualization is corpus-dependent and does not offer the main properties we

expect from ontology, e.g. reusability and soundness. Furthermore, ontology extracted from text in general does not match ontology defined by expert using a formal language. Such a result is not surprising since ontology is an extra- linguistic conceptualization whereas knowledge extracted from text is the concern of textual linguistics. Incompleteness of text and using rhetorical figures, like

synecdoche, deeply modify the perception of the conceptualization we may have61.

Figura 3: Dire n’est pas concevoir (Roche, 2007, p. 158).

Também em Calberg-Challot et al. (2009, p. 37) é reforçado o postulado de que o saber especializado raramente se encontra definido no texto:

/…/ ce qui en fait un terme, c'est un savoir spécialisé rarement défini dans le texte, toujours présupposé dans la culture partagée par les professionnels du domaine. Les mots en situation textuelle ou discursive ne peuvent avoir que de façon aléatoire un statut de termes au sens de l'ISO 1087-1. Souvent le concept est confondu avec le mot qui en parle.

Parece-nos, de facto, evidente que o texto, pela sua natureza, não foi construído para servir directamente a formalização de dados terminológicos, mas será plausível que

60Sublinhado nosso. 61Sublinhado nosso.

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contenha manifestações linguísticas de conhecimento que contribuam para a organização formal de um determinado domínio de especialidade. Do nosso ponto de vista, é também excessivo rejeitar a dimensão cognitiva do texto, enquanto meio de acesso à representação de conhecimento. Santos (2010, p. 205) sustenta que o texto enquanto recurso central da metodologia de trabalho terminológico, pode tanto constituir-se tanto como um forte aliado da representação do conhecimento, como um obstáculo à consecução dessa representação:

/…/ o texto tanto pode surgir como um elemento operacional e colaborativo extremamente útil e facilitador do processo de representação do conhecimento, como constituirse como um elemento perturbador e causador de ruído.

Todavia, ao fazer o balanço de conclusões decorrentes do seu projecto terminológico, a investigadora considera que quando os textos apresentam um elevado grau de confiança é possível representar relações de complexidade, a partir da sua análise (Santos, 2010, p. 211):

É nossa convicção de que o recurso ao texto de especialidade na construção de ontologias deve obedecer não só a critérios rigorosos e supervisionados de selecção do corpus, como também ao pressuposto de que um texto de especialidade pode não reflectir um conhecimento organizado de um domínio. Por se encontrar de alguma forma cativo da orientação cognitiva do autor, os termos e as relações entre termos ficam dependentes de estruturas léxicosemânticas que podem divergir da orientação conceptual expectável. Simultaneamente, a presença de conhecimento implícito é fortemente sentida.

Em suma, parece tornar-se claro que a Terminologia, no seu estado actual, não deve limitar o seu escopo de observação empírica ao texto. Porém, apesar de todas as reservas aqui explanadas, através da análise de texto torna-se possível aceder ao processo de construção de conhecimento em discurso, trilhando um percurso do plano lexical para o conceptual. Os indicadores linguísticos e as relações semânticas que se estabelecem na esfera do texto permitem clarificar aspectos de determinada conceptualização, activando quer a dimensão linguística quer a dimensão conceptual (Prandi, 2011, p. 12):

Il me semble qu’en terminologie le problème n’est pas d’opposer une approche linguistique et une approche conceptuelle, mais bien de se demander si une approche linguistique peut se passer de la mise au point d’un système de concepts indépendants.

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Revemo-nos em pleno na perspectiva de Prandi (2011), entendendo que uma filiação à Terminologia de base conceptual não infirma o recurso e a valorização do texto de especialidade, que, aliás, fará parte integrante do desenho metodológico.

Em face de tal posicionamento tomado perante o texto de especialidade fica claro que se recorrerá às fontes textuais com intuito de operar um processo de transposição dos elementos de natureza linguística, com um progressivo depuramento que os torne, tanto quanto possível, elementos de ordem conceptual. Tratar-se-á de um processo de triagem das estruturas linguísticas que encerrem conteúdo conceptual.