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CAPÍTULO II A PRAXIS DO TERMINÓLOGO NUMA OPÇÃO DE BASE CONCEPTUAL

2.2 Terminólogo: discípulo de Saussure ou de Aristóteles?

Um olhar sobre a diversidade da praxis em Terminologia impõe a pergunta de partida que enforma o título desta secção78. Em face do exposto, no que respeita à

relação entre comunicação especializada e Terminologia, poder-se-á aceitar tranquilamente a premissa de que um tradutor, um documentalista, um especialista de domínio, ou um redactor técnico detêm o perfil de competências necessário para se instituírem como terminólogo?

O entendimento do que é um terminólogo implica tanto a observação detalhada de um conjunto de variáveis diacrónica, geográfica e culturalmente condicionadas, assim como a contemplação de posicionamentos epistemológicos diferenciados. Estamos já, por certo, longe da concepção relativamente linear inerente ao contexto histórico moderno, em que a actividade científica internacional despoletou a necessidade de fixação e de divulgação do saber técnico-científico através de nomenclaturas, valorizando fundamentamente a dimensão prescritiva e unificadora dos termos, plasmada em trabalhos paradigmáticos como o de Lavoisier (1743-1794).

O terminólogo – ainda que nascido no mais insigne seio da ciência - não está hoje exclusivamente ao serviço desta última, dado que a sua matriz de intervenção passou a incorporar também valores estratégicos, sejam eles decorrentes das necessidades de uma economia capitalista – comunicação especializada inerente ao mercado global de bens e serviços – sejam eles decorrentes de projectos de natureza social e política vinculados ao princípio da valorização das identidades culturais e materializados em intervenções linguísticas e conceptuais ao serviço de políticas linguísticas.

78 Com esta pergunta recuperamos a reflexão oral de Depecker (TOTh, 2013), no âmbito da Disputatio

subordinada ao tema « Le concept et la langue. Pourquoi revenir aux fondements de la pensée de Ferdinand de Saussure quand on fait de la terminologie ? (http://www.porphyre.org/toth/toth-2013- en/disputatio, consultado a 2 de Fevereiro de 2014).

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Independentemente da esfera de acção social em que é enquadrado, o trabalho do terminológo poderá ser orientado tanto para a investigação teórica como

para a investigação aplicada, ao mesmo tempo que poderá assumir uma orientação

mais descritiva ou mais prescritiva. O já citado texto recomendativo Guidelines For Terminology Policies, publicado pela UNESCO (2005, p. 12), postula que a gestão terminológica envolve essencialmente dois estádios: (1) documentar a diversidade linguística, disciplinar, cultural e (2) reduzir esta complexidade, através da normalização ou da harmonização terminológicas. No entendimento de Costa, o terminólogo pode circunscrever o seu trabalho apenas ao primeiro estádio ou passar para uma segunda etapa (prescritiva), se essa necessidade social se justificar (2006, p. 11):

The first perspective, description, can be an aim in itself; it is self-sufficing. Prescription, on the other hand, increasingly uses description to be able to be carried out fully and to be accepted by those to whom it addresses itself.

Numa perspectiva mais restritiva, a ISO 704 (2009, p. 5), entende o trabalho terminológico como: /…/ a clarification and standardization of concepts and terminology for communication between humans79. Em todo o caso, será necessário não esquecer que a perspectiva prescritiva - inerente à normalização80 - para além de

servir necessidades sociais, é impulsionada por necessidades tecnológicas (Costa, 2006, p. 7):

This plurality of technological and social needs and functions leads us, in this context, to consider normalization essential, particularly, concerning the construction of computational systems. These are based on ontologies and other terminology resources, which have a cultural dimension, however, and serve a specific purpose81.

Compreende-se que independentemente de necessidades concretas do foro tecnológico ou social, a normalização prevaleça como um objectivo apetecível no

79 Sublinhado nosso.

80 Como se encontra explicitado na ISO 704 (2009, p. 35), a normalização é um processo complexo que

implica como função primária prescrever o termo preferencial para designar determinado conceito, elencar os termos admitidos e determinar que termos são desaconselhados: One primary function of a

standardized terminology shall be to indicate preferred, admitted, and deprecated terms. A term

recommended by a technical committee shall be considered a preferred term whereas an admitted term shall represent an acceptable synonym for a preferred term. Deprecated terms are terms that have been rejected. (Sublinhado nosso).

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ideário de todos os que necessitam – para o correcto desenvolvimento da sua esfera de acção – de conceitos e termos não ambíguos, Riggs et al. (1997, p. 185):

Often, however, research is carried out in areas where concepts are not well established and the pertinent terms are ambiguous. Terminologists can help

authors working in such fields-which include virtually all of the human, social and behavioral sciences - to clarify the key concepts required for their work and to develop a vocabulary that can be used unambiguously to express their ideas succinctly and clearly82.

Na perspectiva de Romualdo (2010, p. 8), o terminólogo é, por natureza, um harmonizador linguístico e social. Ao organizar o conhecimento especializado e ao descrever o vocabulário técnico e científico de uma determinada área de conhecimento, contribui para a compreensão interpares, mas também para a divulgação do conhecimento e das suas manifestações linguísticas e discursivas, facilitando a sua circulação em contextos comunicativos e sociais heterogéneos. O autor advoga, também, por isso, a necessidade de uma perspectiva normativa/prescritiva da prática terminológica83:

É essencial que qualquer terminólogo tenha a formação linguística necessária para que possa assegurar não apenas a produção de terminologias precisas do ponto de vista da organização e representação dos conceitos, mas também correctas do ponto de vista da linguagem usada. Deste modo, associada à

intervenção terminológica de que temos vindo a falar, consideramos existir

sempre uma intervenção linguística: ao normativizar ou normalizar

terminologias e ao cunhar ou propor neologismos terminológicos adequados, o terminólogo está também, se o fizer com conhecimento, a contribuir para a defesa e o desenvolvimento da(s) língua(s) com que trabalha84.

Articulando as dimensões referidas com os aspectos diacrónicos sinteticamente elencados na reflexão da secção anterior e com o carácter transdisciplinar da Terminologia (já discutido no capítulo I), verificamos uma repercussão clara e inequívoca: perspectivam-se, no cenário actual, possibilidades múltiplas de trabalho resultantes da actual dinâmica social de renovação contínua, as quais implicam – por

82 Sublinhado nosso.

83 Refira-se, a título complementar que no estudo a que aludimos em corpo de texto, que se sustentou na investigação de campo, no âmbito de empresas luso-polacas, Romualdo (2010, p. 5) salientou também que as funções de harmonização linguística e de tratamento de vocabulários específicos/especializados, que deveriam ser atribuídas a um terminólogo são, não raro, incorporadas silenciosa e indiscriminadamente nas actividades de tradução e de documentação das empresas. Na opinião do investigador, nos contextos observados, a profissão de terminólogo não existe formalmente.

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sua vez - a necessidade de uma abertura crescente ao diálogo interdisciplinar e ao cruzamento de olhares - também eles múltiplos - sobre conhecimento, língua, cognição e comunicação. Todo este contexto justifica a necessidade de alargamento do perfil de competências do terminólogo (Romualdo, 2010, p. 1):

Os contextos de trabalho, já antes especializados, caracterizam-se agora por

serem também multiformes e dinâmicos, e, por isso, difíceis de rotular ou de

modelizar, reflectindo a diversidade e a velocidade das sociedades, hoje globalizadas. As profissões das línguas enfrentam, pois, constantes desafios de renovação e de adaptação, nomeadamente as que estão ligadas ao sector empresarial, como é o caso das actividades ligadas à terminologia, de tal forma que as empresas cada vez mais se vêem forçadas a serem competitivas e inovadoras, expandindo os seus negócios e investindo em mercados internacionais.85

O reflexo do quadro teórico, societal, económico e cultural ao qual se tem vindo a aludir manifesta-se, ainda, como salienta Costa (2010), num outro aspecto: na estrutura compósita que hoje caracteriza a comunidade de terminólogos que (tal como a de linguistas), engloba, crescentemente, um vasto espectro de profissionais com formação académica diversificada (das ciências sociais e humanas às ciências exactas). O facto de passarem a integrar o leque de terminológos profissionais e académicos provindos de âmbitos tão diferenciados como engenharia, informática, matemática, assim como especialistas dos diferentes domínios de análise86, não

significa, contudo, que o diálogo interdisciplinar - no âmbito das práticas terminológicas – seja sempre plenamente conseguido.87

Do ponto de vista de Costa (2010, p. 2), a orientação do trabalho terminológico – ainda tendencialmente centrada no termo – pode assumir opções teóricas e

85 Sublinhado nosso.

86 O terminólogo de hoje tem necessariamente de ser portador de um perfil multifacetado de competências, que partem - claro está - de sólido conhecimento em Linguística mas que se alargam também à lógica, à teoria da informação e à documentação. Dominar pressupostos teóricos, técnicas e metodologias são condições essenciais para a criação de produtos e recursos terminológicos monolingues, bilíngues e multilíngues, no âmbito do domínio em que trabalha. Tais pressupostos, técnicas e metodologias estão hoje ligados ao crescimento exponencial de tecnologias necessárias à gestão de ambientes online semioticamente ricos e tendencialmente colaborativos, respeitantes aos domínios especializados cada vez mais complexos e às premissas da comunicação globalizada. Em muitos contextos comerciais, empresariais, governamentais e institucionais, os terminólogos são responsáveis pela criação, manutenção e actualização de recursos terminológicos (linguísticos e conceptuais), como glossários, memórias de tradução, bases de dados e bases de conhecimento.

87 Do nosso ponto de vista, a imersão em equipas multidisciplinares é uma experiência rica e fortemente potenciadora da reconceptualização de quadros mentais, constituindo um forte desafio à intercompreensão.

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metodológicas distintas. A formação académica de base do terminólogo poderá condicionar a propensão para incidir mais sobre a expressão linguística do conceito (denominação), ou para optar pela análise da entidade denominada, o conceito (Costa, 2011, p. 4):

Le terminologue ingénieur dira que les schémas sont plus proches des connaissances, parce que la représentation est plus formelle donc moins ambiguë. Et puis surtout, ils n’ont pas à gérer l’ambigüité des discours. Quant au terminologue linguiste, il préfère gérer les discours malgré leurs ambigüités, car de par sa formation il a les outils nécessaires à la réduction, voire à l’annulation de ces ambigüités. La réflexion théorique sur le passage du discours à la langue, du dictionnaire au discours fait qu’il soit bien formé au passage d’un niveau

d’abstraction à un autre. Le besoin de recourir à un métalangage dans sa

discipline lui permet de comprendre le concept de métadonnées tellement nécessaire à l’organisation des connaissances.88

Se a focalização for exclusivamente na dimensão linguística da Terminologia, justifica-se - por força das reservas teóricas já discutidas no Capítulo I - a perspectivação de uma distinção entre linguista-lexicógrafo e terminólogo. Com efeito, ambos se interessam pela denominação, mas enquanto o linguista-lexicógrafo se atém no aspecto nominativo da denominação, o terminólogo focaliza-se primariamente na determinação e classificação do conceito e, subsequentemente, nas relações que este estabelece com outros conceitos, dentro de um mesmo sistema conceptual (Costa, 2006, p. 3). Na esteira do pensamento de Rey (1979), a investigadora diverge de Cabré (2001), quanto à centralidade do termo como objecto de estudo, advogando que o objectivo último do terminólogo pode não ser necessariamente o termo, mas o estabelecimento de relações dentro de um determinado sistema conceptual (Costa, 2006, p. 4):

If it is true that a terminologist must always take into account terminological units, because they are denominative, they may not always be the ultimate goal.

The ultimate goal of the terminologist can be, for instance, the establishment of the relations and/or links between two or more concepts within the same concept system89.

Todavia, a capacidade de reflectir sobre o estatuto do texto especializado não estará nunca fora do âmbito das competências do terminólogo (Ibidem, p. 7):

88Sublinhado nosso.

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Terminologists are then required to possess another additional competence to their existing ones: to ponder over the specialized text, without forgetting to reflect on the status of those involved – author and speaker – as well as on the context of production and reception90.

Conscientes de que representar esquematicamente a diversidade do trabalho de terminólogo poderá incorrer em simplismo, entendemos que, globalmente, as suas diferentes esferas de intervenção continuam a ser tributárias de duas grandes dimensões: (1) herança teórica e (2) tendências ditadas pelo quadro societal:

Figura 6: Perspectiva das esferas de intervenção do terminólogo.

Será, do nosso ponto de vista, ideal que o terminólogo esteja teórica e pragmaticamente apto a intervir na esfera das actividades especializadas que envolvem tanto dimensões discursivas e textuais como dimensões relativas à organização e transferência de conhecimento. Por outras palavras, que seja capaz de assumir um papel central na gestão de equipas multidisciplinares, planificando e participando tanto em tarefas de carácter estritamente linguístico como em tarefas de representação de sistemas conceptuais (Costa & Roche, 2012, p. 1): Les terminologues jouent donc un rôle central dans toute activité professionnelle où les compétences discursives, le transfert e l’organisation de connaissances sont requis.91

Naturalmente que os ambientes sociolinguísticos concretos em que o terminológo irá actuar ditarão funções e graus de intervenção diferenciados e adaptados à especificidade situacional. O trabalho do terminólogo, tal como o

90Sublinhado nosso.

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entenderemos no contexto desta tese, é orientado para questões de conceptualização, organização e transferência de conhecimento; logo, aproximamô-lo das perspectivas de Costa (2010) e de Nuopponen (2010a,), concebendo este actor como um conceptualizador, um mediador entre o conhecimento especializado e o especialista de domínio e um interventor, tendo por função principal propor e operacionalizar uma metodologia, instanciada num desenho criterioso, que permita tomar partido do objecto texto para potenciar uma interacção produtiva com especialista de domínio. Auxiliar o especialista a activar e exprimir o seu conhecimento não é, como se verá, uma tarefa isenta de dificuldades, implicando conceber estratégias para conduzir uma análise terminológica conceptual - tanto quanto possível - expurgada de ambiguidade.

Subscrevemos, neste sentido, dois princípios (1) a relevância de o terminólogo ser capaz de organizar toda a complexa teia inerente a um fluxo de trabalho e (2) a imperativa necessidade de um trabalho interdisciplinar em todas as etapas de investigação, perspectiva essa que implica a premência de o terminológo trabalhar em cooperação muito estreita com os especialistas da área que investiga e, dentro desse quadro, assumir um perfil - de certo modo - de mediador, não no sentido clássico de resolução de litigâncias, mas no sentido de conceber uma metodologia e operacionalizá-la, actuando como moderador-facilitador, mas também como conceptualizador, intérprete e avaliador; aproximando - de algum modo - a sua intervenção a um trabalho de natureza exegética (Costa, 2010, p. 3):92

Le travail en terminologie est idéalement mené par des équipes pluridisciplinaires et transdisciplinaires. Au sein de ces équipes se trouve le terminologue qui n’est pas spécialiste du domaine, mais qui est un médiateur entre les membres de l’équipe et dont l’une des tâches est de proposer une

méthodologie.93

Circunscrevendo com maior precisão o campo de actuação do terminólogo, no pressuposto de que este poderá tanto integrar como gerir um trabalho de equipa, ou ainda incorporar na sua praxis momentos de interacção com outros actores (como o

92 Sendo objectivo geral da exegese bíblica o de interpretar e proporcionar uma explicação textual canónica, não pretendemos com este atributo implicar que o trabalho do terminólogo vise chegar à interpretação una. Entendemos sim, que existirá o objectivo conduzir um processo investigação e de interpelação que aspira a capturar o nível conceptual.

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especialista do domínio em causa, o redactor técnico, o engenheiro de ontologias), entende-se que de entre as suas principais funções se poderão destacar:

(1) Identificar, seleccionar e categorizar recursos terminológicos, (lexicográficos, textuais, taxonómicos, conceptuais e ontológicos), reconhecidos e valorizados no âmbito do domínio de especialidade estudado, os quais sustentem o processo de negociação do conhecimento;

(2) Planificar, propor ou determinar percursos metodológicos, tomando parte de diferentes etapas do processo decisório subjacente a investigação teórica e/ou investigação aplicada;

(3) Representar propostas de sistematização conceptual e denominativa; (4) Gerir o processo de elicitação e de negociação do conhecimento entre especialistas (criar protocolos dialogais, moderar o processo discursivo, promover o consenso);

(5) Sistematizar e/ou propor definições para o sistema de conceitos em estudo.

Retomaremos uma avaliação das funções elencadas, no capítulo subsequente, as quais constituem naturalmente um recorte condicionado tanto pela opção teórica de base conceptual como pelos objectivos de investigação.