• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II A PRAXIS DO TERMINÓLOGO NUMA OPÇÃO DE BASE CONCEPTUAL

2.1 Terminologia e comunicação especializada

Se a discussão do âmbito do conceito de comunicação lato sensu está, por razões óbvias, fora do escopo deste trabalho, tal exclusão não é, de todo, extensível ao conceito de comunicação especializada – da nossa perspectiva entendido como

59

interacção verbal71 de carácter técnico, científico e profissional resultante da

actividade mental em torno de um determinado domínio do conhecimento – o qual terá, naturalmente, de ser trazido a debate pelas relações que se vislumbram com a Terminologia e com a praxis do terminológo. Como salienta Costa (2013, p. 40), no excerto escolhido para epígrafe, a comunicação especializada, seja de carácter monolingue ou multilingue, é uma questão de língua, mas também é uma questão de

conhecimento. O conceito de domínio, entendido como - field of special knowledge

(ISO 1087-1:2000 (E/F)72; ISO /TR 22134: 2007 (E):1; -, encerra como consequência

tanto dimensões linguísticas como dimensões conceptuais inerentes a um dado território técnico-científico, ou profissional (UNESCO, 2005, p. 3):

Domain communication is used for specialized – i.e. scientific-technical, or professional communication – in a domain, which in the pragmatic sense includes scientific-technical subject-fields as well as other fields of expertise.

Inelutavelmente, a manifestação de um conhecimento especializado, organizado e compartimentado está, pois, como foi constatado por Rey (1979, p. 75), directamente dependente da existência de terminologia. Aspectos como a divisão social do trabalho e a cientificização do saber implicam a compartimentalização dos conhecimentos e das competências, daí decorrendo a necessidade de reconhecer, manipular e nomear parcelas do real.

Com efeito, desde uma primeira etapa que pode ser entendida como correspondente ao delinear da sua base científica, a Terminologia teve como objectivo contribuir para a organização dos loci discursivos e conceptuais que compõem a cartografia da ciência e da técnica Borges (2003, p. 653):

As leis físicas indiciam que toda a organização é uma negação da entropia. A

afirmação do logos ou ordem, à qual os Gregos contrapunham o caos ou a

desordem, está na base do processo racional. Isto significa que quando visualizamos o mundo o tendemos a depurar ou filtrar por processos racionais73.

71 Na sua componente interaccional, este tipo de comunicação particulariza-se, em nosso entender, por três dimensões fundamentais: pelo estatuto especializado de pelo menos um dos interlocutores/interactantes, pela especificidade dos referentes e das mensagens produzidas e pelo contexto situacional que a enforma.

72 É incluída a seguinte nota: The borderlines of a subject field are defined from a purpose-related point

of view.

60

Ora, se, como indicia a observação empírica, na comunicação lato sensu, os objectivos do homo loquens (Benveniste, 1966, p. 259) são tendencialmente difusos e a entropia é uma inevitabilidade, no caso da comunicação especializada, a busca do

logos implica, como sugerem Galinski & Picht (1997, p. 43), uma transferência

planificada de conhecimento, que, por sua vez, requer mecanismos de representação, sejam eles de carácter verbal ou não verbal:

Specialized communication always involves knowledge transfer, which in turn

requires knowledge representation. In this sense, we can speak of both verbal

and nonverbal knowledge representation (including all types of intermediate and mixed forms)74.

Se foi, desde sempre, pacífico o facto de a comunicação especializada envolver necessariamente transferência de conhecimento, menos pacífica e consensual será a identificação e delimitação dos contributos da Terminologia para esse processo de transferência. Impõe-se - em primeiro lugar – mitigar uma certa clivagem e reconhecer a co-existência tranquila de uma diversidade de contributos, a qual está plasmada no crescimento inquestionável do espectro do trabalho de investigação que hoje é levado a cabo em Terminologia. Em nosso entender, tal co-existência resulta, sobretudo, de um percurso diacrónico que gradualmente se desenhou, relativamente ao desenvolvimento da relação desta disciplina com a comunicação especializada.

Como afirma Picht (2011, p. 7): Generally speaking the need for terminology has existed for as long as we are able to find evidence of professional communication. O investigador elenca um conjunto de lacunas recolhidas a partir de uma análise diacrónica reveladoras das classes de problemas às quais a Terminologia tem vindo a dar resposta:

Figura 4: Representação de problemas da comunicação especializada (Picht, 2011: p.7).

74Sublinhado nosso.

61

Os problemas identificados apresentam uma quase correspondência com a descrição da actividade terminológica que a Norma ISO 704 (2009, p. v) faz. Destaca- se aqui, naturalmente, o problema quatro: unclear and undefined concepts que enquadra o âmbito a que pretendemos dar resposta na componente prática deste trabalho: unclear and undefined concepts. Em face da tradição de resolução dos problemas identificados, assiste-se, no momento presente, a uma valorização crescente da actividade terminológica, que não é – do nosso ponto de vista – um modismo, mas antes uma consequência clara de necessidades reais relacionadas com a complexidade actual de uma sociedade dita em rede, com a expansão do universo técnico-científico, com a polifonia inerente ao diálogo interdisciplinar e com a perspectivação do conhecimento como um valor económico, entre outros aspectos.

Como referido, na secção 1.6 do primeiro capítulo, a Terminologia herdou, desde a sua génese, a lógica conceptual inerente ao ideário universalista da filosofia neopositivista, instituindo como objectivo maior a resolução de problemas relacionados com a necessidade de desambiguar a comunicação científica e técnica, ou por outras palavras, de superar obstáculos inerentes à comunicação especializada, provocados pela imprecisão, diversidade denominativa e polissemia, que inelutavelmente caracterizam as línguas naturais. Neste contexto, a intervenção da Terminologia sobre a comunicação especializada teria um intuito normalizador, tributário da percepção da língua como sistema taxonómico e classificatório.

A partir dos anos 60 e 70 do século XX, começou a desenhar-se uma percepção da comunicação especializada orientada para a política de língua e para a planificação linguística. Neste contexto, a organização terminológica das áreas técnicas e científicas passou a assumir um papel central. Num cenário complexo de comunicação especializada e multilingue, o fomento de criação de bases de dados terminológicas passou a constituir uma questão estratégica, relacionada com a sobrevivência das línguas, muito em particular, das consideradas minoritárias. A actividade terminológica assumiu, assim, durante décadas um pendor fundamentalmente normativo; todavia, a partir dos anos 90 do século XX, assistiu-se a uma clara viragem: a orientação de pendor descritivo, directamente associada a questões de tratamento automático da língua, e - como se torna evidente - o recurso sistemático a corpora textuais mudou claramente o rumo do trabalho terminológico,

62 como é explicado por Leitchik (1993, p. 94):

/…/ it should be noted that, of six main directions of terminological activity developed hitherto (dictionary, compilation, regulation, standardization, translation of terms, term banks, terminological editing) five (all except the last) have tried to fix terms. Meanwhile, the sphere of fixation for the terms now proves to be secondary. So there is no doubt that the study of real terms used in

texts will help us to find new essential regularities in their creation and use75.

A gestão terminológica descritiva passou a ganhar uma progressiva visibilidade, tendo como principal intuito identificar e documentar que termos designam os conceitos de uma dada disciplina, como sustentam Wright & Budin (1997, p. 13):

The objective of descriptive terminology management is to document all terms used to designate the concepts treated in a single discipline, usually in the social sciences. It is not the purpose of this kind of terminology to prescribe usage, but rather to document all terms that occur or are suggested for a concept.

A gestão terminológica é, de acordo com os autores um conceito de carácter mais geral do que os conceitos de trabalho terminológico e de trabalho terminográfico, dado que cobre as práticas levadas a cabo por representantes de distintas áreas disciplinares, na busca constante de uma expressão linguística precisa e não ambígua, plasmada na criação de conceitos que permitam trabalhar ao nível conceptual e de termos que satisfaçam as situações comunicativas; compreende também o registo sistemático de informação em diferentes formatos de tipo dicionário, bases de dados terminológicas e ainda os produtos/ recursos ad hoc de apoio às actividades de tradução, interpretação e de comunicação técnica.

A emergência do conceito de gestão do conhecimento, o qual ganhou visibilidade, sobretudo a partir da segunda metade da década de 1990, alargou o espectro do trabalho terminológico, o qual foi enriquecido por contornos adicionais (Costa, 2006, p. 4):

In fact, if one wants to access the concepts of a subject field in a systematic way, one needs to determine the specific characteristics of a concept, so as (1) to distinguish it and to separate it from the other concepts, and (2) to place it in a conceptual system. This procedure is the cornerstone of every computational

75 Sublinhado nosso.

63

system whose purpose is knowledge management76.

O trabalho terminológico na diversidade de tarefas que pressupõe torna-se, assim, - seja pela via da prescrição, da descrição ou da harmonização de conceitos, de termos e de definições - um contributo para a afirmação de qualquer área técnica ou científica, fundamental para assegurar a melhoria da qualidade da comunicação especializada tanto na sua dimensão linguística, quanto conceptual.

Tendo como ponto de partida a directiva da UNESCO (2005, p. 5), sistematiza- se o espectro de intervenção do trabalho terminológico no âmbito da comunicação especializada do seguinte modo:

Figura 5: Relação entre a actividade terminológica e a comunicação especializada77.

A observação da representação esquemática proposta permite compreender que a profissão de terminológo abarca hoje uma multiplicidade compósita de vertentes de

76 Sublinhado nosso.

77SPL = Specilized Languages ou Special Purpose Languages, de acordo com o documento em

referência. O conceito é definido do seguinte modo: Special purpose language (SPL or specialized

language) means the language used by expert communities with a greater or smaller share of terminology and domain-specific linguistic conventions. SPL deviates to varying extents from general- purpose language (GPL or everyday language), which means the language used largely for everyday

64

intervenção entre as dimensões linguística e conceptual que procuraremos a seguir dilucidar.