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2.4 Valoração e Reparabilidade dos Danos Ambientais

2.4.1 Os agentes do dano: quem lesa e quem é lesado

Comprovada a existência de um dano ambiental, impõe-se identificar o comportamento ou atividade que o desencadeou232. De início e antes mesmo que se busque a identidade da fonte lesiva já se deve enfrentar as inúmeras barreiras encontradas, no intuito de comprovar-se sua existência. Ainda persistem diversas dúvidas científicas sobre os efeitos nocivos de determinadas condutas e acontecimentos, e se elas efetivamente podem ser havidas como danos, pois233 não podem ser evidenciadas quaisquer nebulosidades quanto à existência ou não do mesmo, bem como seu impacto negativo.

Essa certeza depende de muitas variáveis. Primeiramente porque é fato inconteste que toda atividade humana repercute sobre o ambiente e, em certa medida, o degrada. Portanto, além da certeza de sua ocorrência, há que se estabelecer limites entre seus efeitos admissíveis e aqueles que, definitivamente, não se pode aceitar234. Por outro lado, o desenho dessas fronteiras é tarefa que requer saberes para além

231 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 99.

232 MILARÉ, Édis. Reação jurídica à danosidade ambiental: contribuição para o delineamento de um microssistema de responsabilidade. 380 f. Tese. (Doutorado em Direito). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2016, p. 86.

233 MELO, Melissa Ely. O dever jurídico de restauração ambiental: percepção da natureza como projeto. 2008, 259fls. Dissertação (Mestrado em Direito). Santa Catarina: Universidade Federal de Santa Catarina, 2008, p. 105.

234 Sob o aspecto dos limites de tolerância, Benjamin pondera da necessidade de que tanto a doutrina quanto o legislador e o julgador sejam muito criteriosos ao delimitar o que irá ser considerado como prejuízo ambiental, não levando somente em conta vantagens para o homem, mas tendo em vista a preservação da biodiversidade. O fato que pode ser encarado como melhoramento para o leigo poderá ser considerado dano pelo cientista, tendo gerado grandes e/ou irreversíveis prejuízos ambientais.

das margens do Direito, e é talvez na determinação do dano ecológico que a interdisciplinaridade mais se faz sentir.

Sendo assim, a primeira providência deve ser a aferição de que determinada atividade ultrapassou os índices de tolerabilidade aceitáveis235, e sem o contributo dos conhecimentos atualizados das demais ciências, não será possível ao legislador dispor dos elementos indispensáveis à fixação dos níveis de degradação admissíveis, nem tampouco julgar corretamente se os efeitos de determinada ação produziram um dano ecológico236. Essa multiplicidade de saberes que informa o Direito deve envolver não somente as ciências naturais. Como a ideia assente de desenvolvimento sustentável permeia todo o conteúdo do direito ambiental, demanda, necessariamente, critérios de ordem socioeconômica.

Assim analisando, se pode concluir que antes de se falar em autoria, o dano precisa ser reconhecido. “Sem reconhecimento do dano não poderá haver repressão nem reparação deste e nem mesmo a prevenção de danos futuros ficará assegurada”237. Esse reconhecimento está ligado às diversas facetas que permeiam a relação do homem com a natureza, seus desejos por vezes inconciliáveis de uma qualidade de vida que somente o desenvolvimento econômico pode lhe proporcionar com a necessidade de meio ambiente preservado e ecologicamente equilibrado.

Mesmo superada a questão preliminar da existência ou não de um dano reparável, o problema seguinte diz respeito à difícil identificação dos sujeitos envolvidos em uma relação jurídica obrigacional decorrente de um dano ambiental. Uma das dificuldades enfrentadas, é a pluralidade de agentes causadores da lesão. Levando em conta que o dano ambiental é de difícil individualização, se toma árduo constatar a parte de cada um, em consequência de uma lesão conjuntamente provocada238. Por outro lado, o desafio de se adequar soluções para situações de

235 Para Annelise, neste sentido, no Brasil, mesmo que atendido o nível de emissão de poluição legal, se ocorrer o dano ambiental, consecutivamente, existirá o dever de repará-lo. STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 133.

236 CRUZ, Branca Martins. Responsabilidade civil pelo dano ecológico: alguns problemas. In NERY JÚNIOR, Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade (Orgs.). Doutrinas essenciais, responsabilidade civl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, Vol. VII, p. 980.

237 Ibidem, p. 982.

238 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.176.

autoria difusa, em que o dano resulta de comportamentos sociais massificados, faz com que não se possa adotar os contornos regulatórios da responsabilidade civil comum.

Exemplo recorrente na doutrina diz respeito ao buraco na camada de ozônio. O efeito estufa que tem degradado a atmosfera, bem como a ocorrência de chuvas ácidas, provocadas por emissões de poluentes na atmosfera são exemplos típicos de danos cuja identificação e responsabilização do sujeito responsável resta inexequível. Mesmo na hipótese de uma responsabilização do Estado (ainda longe de ser praticada ou sequer aceita pela doutrina de forma pacífica)239, em nome de uma suposta ou mesmo comprovada lassidão na produção e aplicação das normas sancionatórias indispensáveis a uma eficaz proteção do meio ambiente, advém, na maioria dos casos, impraticável.240

Por outro lado, no direito tradicional, a atuação da responsabilidade civil fazia-se contra um causador ou, quando muito, contra alguns causadores, mas, em fazia-se tratando de danos ambientais, é comum lidar-se com danos anônimos ou de emissão indeterminada. Portanto, a realidade nessa sede é diferente. Sob a perspectiva de seus causadores, o dano ambiental, com frequência, é resultado de riscos-agregados criados por várias empresas independentes entre si.241

E mais, por vezes o risco de uma simples fonte é, em verdade, insignificante ou incapaz de causar, sozinho, o prejuízo sofrido pela vítima ou vítimas. Daí que,

239 Com relação à responsabilidade pelos prejuízos advindos de danos ambientais, autores diversos (Mancuso, José Afonso da Silva, Milaré, dentre outros) entendem que, à responsabilidade por dano ambiental se aplicam as regras da solidariedade entre os responsáveis. E prosseguem sustentando que o Estado também é solidariamente responsável, podendo ser demando em ações judiciais, resguardando-lhe o direito de após reparar o prejuízo, demandar em regresso contra os poluidores. É oportuno refletir acerca da posição defendida por Helli Alves de Oliveira, para quem só existe responsabilidade objetiva do Estado com relação a terceiros, quando comprovada omissão, negligência, imperícia, em relação à atividade causadora do dano. Em sua concepção, o artigo 37, parágrafo 6° da Constituição Federal de 1988, só admite a responsabilidade objetiva do Estado por danos causados por seus agentes, nessa qualidade.

240 CRUZ, Branca Martins. Responsabilidade civil pelo dano ecológico: alguns problemas. In NERY JÚNIOR, Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade (Orgs.). Doutrinas Essenciais: Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, Vol. VII, p. 952.

241 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A responsabilidade por danos ambientais: uma aproximação juspublicística. In: AMARAL, Diogo Freitas; ALMEIDA, Marta Tavares (coords.). Curso sobre direito do ambiente. Lisboa: Instituto Nacional do Ambiente, 1994, p. 401-402.

também na perspectiva dos seus causadores, o dano ambiental é, essencialmente, coletivo tais como os resultantes de poluentes por veículos automotivos.242

Nesse cenário, possivelmente seja mais eficaz a construção de mecanismos coletivos de responsabilização dos custos decorrentes desses danos, a exemplo de fundos243, com vistas à indenização coletiva, bem como da implementação dos seguros ambientais que tanto poderá servir como instrumento preventivo ou mesmo como alternativa derradeira de reversão dos prejuízos decorrentes de ações danosas. Segundo Herman Benjamim244 esta complexidade (causalidade complexa) advém da interação entre o mau funcionamento técnico ou tecnológico, erro humano e procedimentos de segurança inadequados, o que cria enormes dificuldades em termos de casualidade, pois raramente há um único responsável, e, nestes casos de degradação do ambiente, não raro, coexistem causadores plúrimos, quando não incertos (com múltiplas causas contribuindo para um efeito singular e causas singulares produzindo múltiplos efeitos), com vítimas pulverizadas e por vezes totalmente anônimas.

A título de exemplo das singularidades até então analisadas, basta que se recorde a situação clássica da denominada poluição histórica, acumulada ao longo de anos, fruto de um somatório de eventos danosos emanados de fontes muitas vezes desconhecidas, para que se tenha a dimensão do problema a ser enfrentado. Trata-se de poluição decorrente de um somatório de ações danosas praticadas por diferentes agentes, conhecidos ou não. Deve-se relembrar que algumas dessas ações que hoje a ciência identifica como perniciosa e nociva ao meio ambiente, no tempo em que foram praticadas poderiam ter sido consideradas perfeitamente legítimas e inócuas, o que faz desse tipo de dano um dos mais difíceis de mensurar e

242 Portanto, sob o signo da autoria do dano ambiental reside um dos aspectos polêmicos de sua caracterização. Neste sentido trata-se muitas vezes de danos disseminados ou difundidos por um grupo de indivíduos mais ou menos alargado, cujo número e identificação precisos resvalam a indefinição. Quando isto acontece, só se faz justificável uma ação de responsabilização judicial quando esses danos são considerados globalmente, e não individualmente. CRUZ, Branca Martins. Responsabilidade civil pelo dano ecológico: alguns problemas. In NERY JÚNIOR, Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade (Orgs.). Doutrinas Essenciais: Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, Vol. VII.

243 SANCHEZ, Antonio Cabanillas. La reparacion de los daños al medio ambiente. Pamplona: Aranzadi, 1996, p. 65.

244 BENJAMIN, Herman. Responsabilidade cível pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, vol. 9, p. 9-7, jan. 1998.

responsabilizar. Casos dessa ordem impõem a alternativa da responsabilização solidária do explorador atual, ante a natureza propter rem da obrigação geral de defesa do meio ambiente245. Contudo, nem sempre é possível dividir a responsabilidade por comportamentos sociais, que, de tão diluídos e protraídos no tempo impedem qualquer forma de identificação razoável.246

Igualmente tortuosa se revela a determinação das partes lesadas. Trata-se de matéria complexa determinar pontualmente os sujeitos atingidos pelos danos ambientais, especialmente quando se trata de dano coletivo. Além disso, a degradação geralmente provém de ações cumulativas, que se irradiam ao longo de tempo e em espaços distintos, cada uma com suas dimensões peculiares, de tal forma que, identificar a responsabilidade nessas circunstâncias é missão das mais espinhosas. 247

Embora um meio ambiente equilibrado componha o arco jurídico que os cidadãos possuem individualmente, e, dessa forma resulte em um direito subjetivo de cada um, sua violação pode ser vista como ofensa não somente a um direito subjetivo individual248, mas ultrapassa essa dimensão para configurar-se em verdadeiro prejuízo a um bem social.

Por essas e outras razões, além dos obstáculos inerentes à identificação dos titulares do direito à reparação pelo dano ambiental, resta ainda analisar como se deve avaliar um dano dessa ordem. Tratando-se o meio ambiente de um bem jurídico

245 MILARÉ, Édis. Reação jurídica à danosidade ambiental: contribuição para o delineamento de um microssistema de responsabilidade. 380 f. Tese (Doutorado em Direito). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016, p. 86.

246 PORFÍRIO JÚNIOR, Nelson de Freitas. Responsabilidade do estado em face do dano ambiental. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 55, ressalta que permanece, todavia, o desafio de adequar a solução para as situações de autoria difusa, em que o dano resulta de comportamentos sociais massificados, tal qual se dá com o uso de veículos automotores.

247 BENJAMIN, Herman. Responsabilidade cível pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, vol. 9, p.13 jan. 1998, manifestando-se sobre as dificuldades na determinação dos autores das ações danosas em matéria ambiental afirma que não é raro o dano ambiental deixar de se manifestar de imediato, atuando no plano intergeracional, sendo suas consequências mais terríveis detectáveis somente no futuro. Assim ocorre, p. ex., com a exposição in utero e com a degeneração genética. O comportamento danoso, dessa maneira, atinge até aqueles que ainda não nasceram ou sequer foram concebidos. Num tal cenário de causa-efeito de grande complexidade, fica inviabilizada a determinação ex ante dos sujeitos atingidos, bem como a avaliação da magnitude do dano, dano esse que é coletivo, envolvendo sujeitos presentes e futuros, vítimas desprevenidas e inconscientes, por isso mesmo, completamente indefesas, da degradação ambiental.

248 CRUZ, Branca Martins. Responsabilidade civil pelo dano ecológico: alguns problemas. In NERY JÚNIOR, Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade (Orgs.). Doutrinas Essenciais: Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, Vol. VII, p. 994.

indivisível, as disposições inerentes à responsabilidade civil utilizada na tutela de interesses individuais não podem se aplicar livremente. Precipuamente, quanto à avaliação, o dano ecológico se deve basear no valor ético-social que o meio ambiente representa249, e assim sendo, sua avaliação deve se distanciar da posição individual do demandante, independente do dano por si sentido.

Feitas as devidas considerações, em sede de danos ambientais a complexidade na determinação dos seus autores e vítimas prenuncia a não menos complexa tarefa de determinar o nexo de causalidade entre a ação e o dano, indispensável para fundamentar a responsabilidade do autor pelos prejuízos decorrentes de sua ação.