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2.1 O Meio Ambiente: Noções Preliminares

2.1.2 A tutela legislativa do meio ambiente

É indispensável identificar o conceito adotado pelo sistema normativo brasileiro, tanto nos termos na Constituição Federal, quanto no ordenamento infraconstitucional.

Tomando-se por base uma evolução no tempo da legislação ambiental brasileira, a definição de meio ambiente precedeu aos ditames constitucionais de 1988.

No passado, mesmo na inexistência de previsão constitucional voltada para a proteção ambiental, a matéria foi regulamentada através de diferentes diplomas normativos. Leis e regulamentos, na medida do possível, supriam as lacunas das constituições, ainda que de forma fracionária e de modo que esse cuidado se voltasse preponderantemente para o combate à poluição e para a tutela dos recursos naturais. No ordenamento brasileiro, isso pode ser percebido através do Código Florestal153 de

152 BRANCO, Murgel. Conflitos conceituais nos estudos sobre meio ambiente. Estudos Avançados. São Paulo, vol. 9, n. 23, p. 231,1995.

153 BRASIL. Lei n. 4.771 de 15 de setembro de 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4771.htm. Acesso em 13 ago. 2019.

1965, da Lei de Proteção à Fauna154 e da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente de 1981. Mesmo sem dispor da força normativa que a constitucionalização das normas empresta, todas elas exerceram importante papel. No seu tempo estavam entre as leis mais arrojadas em matéria ambiental, e, até hoje são consideradas inovadoras e modernas.

De forma especial, a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81) foi pioneira na proteção sistêmica do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Além disso, aventurou-se na elaboração de um conceito legal firmado em seu artigo 3º.155

Para alguns autores, a falta de rigor e de clareza, comprometia o entendimento do meio ambiente em uma perspectiva globalizante, posto que ao se referir às “interações de ordem física, química e biológica”, deixou-se de lado e pendentes de tutela legislativa o meio ambiente artificial (urbano), cultural e do trabalho156. Destacando-se a inadequação do conceito legal, deve-se refletir que a definição de meio ambiente, que consta da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) é feita sobre a base de uma concepção confusa e que mistura elementos que, dificilmente, poderiam ser entendidos como aqueles que se encontram no entorno dos seres vivos. 157

É oportuno relembrar que a referida Lei n. 6.938/81, teve sua gênese em um período político peculiar, marcado pelo autoritarismo158, mas, efetivamente pode ser

154 BRASIL. Lei n. 5.197 de 3 de janeiro de 1967. Dispões sobre a proteção à fauna e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5197.htm. Acesso em 13 ago. 2019.

155 BRASIL. Lei n. 6.938/81 de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm. Acesso em 13 ago. 2019. A referida lei conceitua meio ambiente nos seguintes termos: Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I. meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas

156 BETIOL, Luciana Stocco. Responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente. Coleção professor Agostinho Alvim/coordenação Renan Latufo. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 22-23.

157 ANTUNES, Paulo de Bessa. Dano ambiental. Uma abordagem conceitual. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 108.

158 Oportuno salientar que muitas vezes a criação das leis ambientais atende a interesses econômicos ditados por relações internacionais. Não estão necessariamente relacionados com o binômio democracia/ditadura.

havida como o marco regulatório por excelência da questão ambiental, e, a exemplo das demais normas ambientais no Brasil, foi festejada no plano internacional.

Basta que se diga que o parágrafo primeiro do artigo 14, da referida legislação, objetivou a responsabilidade civil pelo dano ambiental e legitimou o Ministério Público para agir na cobrança de eventual reparação159, dentre uma gama160 de outras disposições protetivas da preservação ambiental.

Muito mais do que clareza nas definições legislativas, especialmente nessa Lei em comento que se propôs a regulamentar a Política Nacional do Meio Ambiente, as normas ambientais padecem de efetividade e não têm sido suficientes para harmonizar o crescimento econômico com a preservação da natureza. Assim sendo, tomando por base a realidade dos danos e desastres ambientais ocorridos no Brasil nas últimas décadas e a dinâmica que oportunizou sua eclosão e reparação, deve-se investigar bem além da tecnicidade da norma.

Certamente que concorre para uma frágil implementação da legislação ambiental brasileira, mazelas sistêmicas e técnicas. A título de exemplo Capelli161 elenca uma fiscalização inadequada de controle dos danos ambientais e a superposição de competências público-administrativas, seja localmente, seja na relação entre os entes federados, seja no isolamento existente entre órgãos que não buscam a cooperação e o trabalho conjunto, de modo a se criar certa nebulosidade quanto à pertinência da atuação pública no caso concreto.

Sobre a mesma matéria pode-se entender que acertou o legislador brasileiro em 1981 (Lei n. 6.938), pois, ao definir meio ambiente acoplou uma concepção mais

159 BRASIL. Lei n. 6.938/81 de 31 de agosto de 1981. O artigo em comento assim dispõe: Art. 14, § 1°: “§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente”.

160 BRASIL. Lei n. 6.938/81 de 31 de agosto de 1981. O artigo 9°dessa Lei arrola uma série de outras disposições protetivas, de onde se exara especialmente: o estabelecimento de padrões de qualidade ambiental, a avaliação de impactos ambientais;o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras; a criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público federal, estadual e municipal, tais como áreas de proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e reservas extrativistas e instrumentos econômicos, como concessão florestal, servidão ambiental, seguro ambiental, dentre outros.

161 CAPPELLI, Sílvia. Ação civil pública ambiental: a experiência brasileira, análise de jurisprudência. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 33, p. 184, 2005.

atual e vasta, que aceita vários elementos, em oposição ao conceito restrito de proteção aos recursos naturais.

A despeito da discussão, foi nos termos da Constituição Federal de 1988 que o meio ambiente alcançou o status de bem público, mas, de uso comum, a demandar novos arranjos de proteção e assunção de reponsabilidades.

De acordo com o texto constitucional de 1988, a tutela do meio ambiente está permeada, em sua gênese, pelo conteúdo da Declaração do Meio Ambiente adotada pela Conferência da Nações Unidas em Estocolmo162, e é possível observar que vários preceitos nela contidos têm por finalidade garantir uma política ambiental que tenha por objetivo contemplar tanto as presentes quanto as futuras gerações, tarefa essa que o legislador constitucional delega tanto ao Estado quanto à coletividade. A despeito de opiniões divergentes, pode-se considerar a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre meio ambiente humano, como marco do surgimento do Direito Ambiental Internacional, bem como do direito ambiental brasileiro.

É possível deduzir da análise dos vinte e seis princípios de proteção ambiental contidos nessa Declaração que seu conteúdo foi de fundamental relevância na construção do capítulo que tutela o meio ambiente na Carta brasileira de 1988. As Constituições precedentes não se reportaram à matéria, possivelmente porque vigoraram durante um período em que o cenário internacional voltado para outras prioridades políticas e econômicas se mantinha inerte. Essa, portanto, foi a primeira constituição brasileira a mencionar a expressão “meio ambiente”163, e diga-se, por oportuno, o fez por intermédio de todo um capítulo dedicado à temática. Ademais, a Constituição Federal de 1988, através do artigo 225, caput, e de seus sete parágrafos estabeleceu o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito. Uma interpretação sistemática da Constituição induz à conclusão de que se trata de um direito fundamental, posto que a CF/88 elenca no rol dos direitos fundamentais,

162 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 86, credita ao Princípio I da referida Declaração (“o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio, cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras), o reconhecimento desses direitos do ponto de vista internacional. Além disso, insere nessa concepção a preocupação com as gerações presentes e futuras.

163 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 132.

constantes do artigo 5º, “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”164, sendo forçoso entender que não pode haver vida onde inexistam condições ambientais mínimas para sua preservação, interpretação essa reforçada pelo art. 5°, § 2° da CF/88 que institui espécie de cláusula aberta de identificação de direitos fundamentais, para além do rol expressamente previsto no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) da respectiva Carta.

Para além dessas características, não se infere da norma constitucional uma definição do que vem a ser meio ambiente, pois, o que se tem, de acordo com o artigo 225 da Constituição Federal de 1988, é que

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo ou preservá-lo para as gerações presentes e futuras.165

Por outro lado, a opção por uma abordagem aberta da matéria não lhe obscureceu a importância. Ao contrário. A temática permeia diferentes pontos da teia constitucional.

Com base no conteúdo da Constituição percebe-se uma preocupação nitidamente focada no homem. Mesmo se admitindo reflexos de um antropocentrismo alargado, quando se cuida de um equilíbrio ecológico que, para existir pressupõe a proteção de todos os componentes na natureza, o conceito é eminente humano, pois é para os homens que se destina o direito fundamental ao já citado equilíbrio e a uma sadia qualidade de vida.

Outro aspecto do texto constitucional a merecer destaque é o enfoque inovador que o legislador emprestou à prática da solidariedade. Ao impor à coletividade conjuntamente com o Estado, o dever de defender o meio ambiente, estabeleceu a necessidade de uma cidadania participativa que não somente exige da coletividade uma responsabilidade social no uso racional dos bens, como também outorgou a esses bens a natureza de bens de interesse público, ao invés de bens públicos.

164 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em 20 ago. 2019.

Essa categorização do bem ambiental como um bem de uso comum do povo faz com que ele passe a ser visto como um macrobem (é assim que a legislação pátria o caracteriza166). Por sua vez, o macrobem ambiental é composto de vários bens singularizados, que por sua vez, são objetos de tutela jurídica específica. Essa complexidade impôs a necessidade da afastá-lo de uma visão de bem público estrito senso, posto que, se internamente, esse bem está sujeito a apropriação particular e individualizada, analisando-o na sua feição integral, ele pertence a toda a coletividade. Esse entendimento que transcende a ideia de direito difuso, cuja tutela jurisdicional cabe exclusivamente ao Poder Público, empresta ao meio ambiente juridicidade em si mesmo. Canotilho167 pontua que em uma perspectiva publicística, notadamente no direito italiano, o regime jurídico do ambiente fundamenta-se na premissa do ambiente como um bem público atípico, posto que de uso comum, bem como na proteção do ambiente como função essencialmente pública. Os denominados interesses difusos se transmutam em uma nova espécie, a saber, a dos interesses públicos, e sua devida publicização, que demanda novos arranjos processuais e procedimentais destinados à defesa de tais interesses.168

Portanto, concordando com Rodrigues169 que “só podemos efetivamente desvendar os contornos de uma categoria jurídica se cotejarmos sua conformação normativa com sua configuração empírica”, mesmo nos termos de uma Constituição de feição social, conceituar meio ambiente conformando-o ao gesso de uma estrutura não é missão pacífica quando se pensa em sua complexidade. Contudo, de tudo quanto se expôs, verifica-se que na legislação brasileira o princípio que norteia a proteção ambiental é o da reparação integral (envolvendo interesses individuais, coletivos, patrimoniais e morais), levando a crer que o citado ordenamento reconhece

166 De acordo com o Art. 3º da Lei n. 6.938/81: - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

167 CANOTILHO, José Joaquim. A responsabilidade por danos ambientais: uma aproximação juspublicística. In: AMARAL, Diogo Freitas; ALMEIDA, Marta Tavares (coords.). Curso sobre Direito do ambiente. Lisboa: Instituto Nacional do Ambiente, 1994, p. 33.

168 AFONSO, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 56. Alega existir uma outra categoria de bens, os bens de interesse público, no qual se incluem tanto os bens públicos quanto os privados. Para ele se insere nessa categoria de bens o meio ambiente cultural e o natural. A inusitada classificação demanda um peculiar regime jurídico relativo a seu gozo e à sua disponibilidade, bem como uma forma de intervenção e de tutela pública diferenciada.

169 RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.7.

autonomia jurídica ao meio ambiente, nos termos da lições de Benjamin170, como um “macrobem, imaterial, inapropriável, indivisível e independente dos microbens que o compõem (água, solo, flora, fauna, dentre outros)”.

Por essa visão pode-se concluir que o meio ambiente equilibrado é tema que transcende não somente o plano das presentes gerações, mas extrapola o direito nacional dos Estados soberanos171, alcançando toda a humanidade, sendo que a sua acepção em sentido jurídico, no ordenamento brasileiro pode ser alinhavada em algumas premissas172: conceito amplo composto dos elementos naturais, culturais e artificias que envolvem a vida; bem de uso comum do povo, mas de interesse público; direito fundamental intergeracional do homem, tudo devidamente embasado em uma visão antropocêntrica atualizada que tenha por fim não apenas o aproveitamento do homem, mas, ao lado de seus interesses, a preservação do sistema ecológico em si mesmo.

Feitas as devidas considerações do viés normativo que tutela o meio ambiente no Brasil, passa-se a examinar o conteúdo do dano ambiental, considerado em sua complexidade e evolução, posto que o dano, como elemento essencial à pretensão indenizatória está circunscrito pelo conteúdo que se outorgue ao meio ambiente.

Portanto, o dano deve ser descortinado em todas as suas camadas e, como pressuposto fundamental da obrigação de reparar, precisa ser compreendido para que se possa analisar como e porque acontece, se é possível evitá-lo, mas, primordialmente, se é viável a implementação de um seguro ambiental obrigatório, com vistas a mitigar os prejuízos oriundos de sua ocorrência.