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4. OS HIDROCARBONETOS E AS RELAÇÕES BOLÍVIA-BRASIL ATÉ 1985

4.3. As Primeiras Disputas Pelos Hidrocarbonetos Bolivianos

4.3.1. Os Hidrocarbonetos na Bolívia Até o Final da Guerra do Chaco

Não se pode dizer que o conhecimento do petróleo é novo para os bolivianos. Ao chegar ao Alto Peru em 1533 Francisco Pizzaro encontrou uma refinaria primitiva em funcionamento montada e operada pelos incas, que recolhiam o petróleo de uma fonte natural, armazenando-o em vasilhas. Conforme o relato de Eduardo Ramos, o petróleo era usado como calafetante, tinta, combustível, material de construção, em rituais religiosos e “como

elemento medicinal e de prazer com o qual fabricavam uma espécie de goma de mascar que chamavam de ‘chicle” (O’Connor, 1962, pág. 234). Sob a administração espanhola o conhecimento se perdeu e foi apenas em 1896 que Manuel Cellar descobriu acidentalmente o primeiro manancial de petróleo em Mandiyuti.

A primeira grande petrolífera chegou ao país em 16 de novembro de 1921 quando a SONJ criou uma subsidiária boliviana. Esta descobriu petróleo em escala comercial na região de Campo Bermejo em 1924. Porém, logo surgiu um problema técnico para a SONJ: como escoar os hidrocarbonetos bolivianos? A saída pelo porto de Arica (Chile) só seria possível após a normalização das relações entre os dois países, mesmo assim seria necessário construir um oleoduto de 1.482 km cruzando a Cordilheira dos Andes, onde a altitude pode chegar a 3.600 m. Aqui outro problema, o frio, que chegava a -40oC, podia congelar o óleo e romper o duto, tornando sua operacionalização tão onerosa que seria anti-econômica. O transporte pelo rio Paraguai também é problemático: só pode ser feito em períodos de cheias (entre abril e agosto) através de chatas rebocadas num percurso de 3.500 km até a foz 84.

84 Até hoje só existe uma solução adequada para o problema: os hidrocarbonetos bolivianos só podem ser escoados a preços competitivos através de dutos que cortem a Argentina ou o Brasil.

Essa última solução era a menos problemática. Um oleoduto cortando o Gran Chaco ligando os campos ao Rio Paraguai resolveria, mas a Bolívia não aceitou as exigências de passagem do governo paraguaio. Para agravar a situação a arqui-rival da Standard, a Royal Dutch/Shell, dominava as regiões meridionais do Chaco impedindo sua passagem.

As diferenças entre Bolívia e Paraguai não eram novas e giravam em torno do Gran Chaco (ou Chaco Boreal), uma região árida e despovoada, então território boliviano. Os bolivianos ressentiam-se da ocupação irregular pelos paraguaios que também bloqueavam o acesso da Bolívia ao rio Paraguai, sua única saída aquaviária desde a perda do litoral. Por sua vez os paraguaios, que tiveram sua economia arruinada pela Guerra do Paraguai (1865/70) ocuparam o Chaco para cultivar erva-mate (produto base da sua economia) e a perda do território poderia significar o colapso da sua economia. Se não bastasse tudo isto se acreditava que a área era rica em petróleo. A disputa envolvendo a SONJ e a Royal Dutch foi o ingrediente que faltava para o início da Guerra do Chaco (15/06/1932 a 12/06/1935).

A Guerra do Chaco ocorreu num momento particularmente ruim para o Brasil por dois motivos. Primeiro, as forças do país estavam voltadas para as questões internas numa tentava de rearticular sua estrutura econômica/política/social desestruturada pela crise de 1929. Segundo, depois do fim melancólico do ciclo da borracha e do fracasso da ferrovia Madeira- Mamoré a Amazônia caiu na estagnação econômica sem que os brasileiros fossem capazes de encontrar uma alternativa econômica para a região. Frente a esses problemas o Brasil optou pela neutralidade, apenas monitorando os movimentos dos beligerantes (Chiavenato, 1980).

Em contrapartida a Argentina tinha motivos para tomar partido e o fez em favor do Paraguai. Disputando com os brasileiros a proeminência sobre a região os argentinos desejavam obter o controle do petróleo boliviano, aumentando sua influência no Chaco e na Bacia do Prata. Se não bastasse isso a Argentina tinha interesses petrolíferos particulares. A SONJ teve seus ativos expropriados na Argentina em 1922 (em favor da YPF) e desde então ambas travavam uma batalha jurídica onde sobraram trocas de acusações, insultos, boicotes e embargos. Ao apoiar os paraguaios os argentinos esperavam atrair a simpatia da Royal Dutch/Shell na tentativa de enfraquecer a influência da SONJ na região. Isso não apenas afastaria um desafeto como também poderia abrir a possibilidade da YPF assumir o controle do petróleo boliviano (O’Connor, 1959 e Guilherme, 1959).

Durante a guerra a Argentina também assumiu a liderança nas negociações de paz, secundada pelo Brasil. Daí surgiu o grupo de mediação ABCP (Argentina, Brasil, Chile e Peru), ao qual se uniram Estados Unidos e Uruguai. Findas as hostilidades o grupo convocou

a Conferência de Paz conduzida em Buenos Aires entre 1935/38. Para o Itamaraty, a atuação do Brasil na Conferência representou uma oportunidade de aproximação com os vizinhos.

Contrário ao arbitramento da Liga das Nações (de onde se retirara em 1926), o Brasil defendeu a tese de que cabia aos países do continente encontrar uma solução para o conflito e, uma vez aceita esta, alinhou-se com as posições do governo norte-americano defendo a idéia de criar uma zona intermediaria entre as fronteiras dos beligerantes.

Os resultados do conflito foram terríveis para dois países já pobres. A Bolívia perdeu 57.000 soldados; uma área de 235.000 km² e a saída para o Rio Paraguai em definitivo. O Paraguai ganhou a guerra e os poços de petróleo da SONJ85 mas perdeu 43.000 soldados e contraiu uma dívida de US$ 140 milhões (Chiavenato, op. cit.).

Com a Bolívia necessitando desesperadamente de dinheiro e investimento para a recuperação, ela aceitou iniciar conversações com a Argentina. A Conferência de Paz foi conduzida em Buenos Aires e em breve uma comissão argentina chegava ao Chaco para estudar os problemas econômicos da região. Em novembro de 1935 esta comissão apresentou um informe que alertou a marinha argentina:

“Hoy, debemos importar, como se ha sostenido muchas veces, una enorme cantidad de petróleo para la gente de la República. Hoy, importamos de México y de Perú, países distantes e incontrolables; mañana, debiéramos reemplazar esa importación con la del producto boliviano (...) no con la intención de terminar el comercio, sino con la de contrabalancear en cantidad y calidad nuestras propiedades petroleras y las crecientes necesidades del futuro”. O informe concluía que: “las rutas de

comunicación argentinas están destinadas a desarrollar el Oriente boliviano, y absorber su comercio”. (Las relaciones de la Argentina con Bolivia y Paraguay <http://www.argentina-rree.com/9/9-051.htm>, 2005. s/pág.).

As tratativas entre Argentina e Bolívia começaram em setembro de 1936 com as discussões sobre a possível construção de uma ferrovia entre Yacuiba (Argentina) e Santa Cruz de la Sierra (Bolívia). Em meio às negociações os bolivianos realizaram a primeira nacionalização dos hidrocarbonetos. Em 21 de dezembro de 1936 o governo do General David Toro determinava que todas as concessões petrolíferas caducariam em 13 de março de 1937 quando os ativos das petroleiras (diga-se SONJ) passariam sem indenização para o controle de uma estatal, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB). Os bolivianos justificaram o ato acusando a SONJ de evasão fiscal, fraude contábil, contrabando

85 Em 1944 a Chevron e a Unocal receberam permissão do Paraguai para realizar pesquisas de lavra no Chaco Boreal. 5 poços foram abertos e lacrados e em 6 de outubro de 1944 os paraguaios, através do Decreto- Lei no 5.449 concederam as duas companhias a exclusividade de E&P durante 60 anos sobre 80.000 km2. As pesquisas nesta área só puderam ser retomadas em 6 de outubro de 2006 (Chiavenato op. cit.).

de petróleo e ingerência na política local86. Na verdade o ato tinha motivações bem mais complexas, a começar pelas relações Argentina-SONJ (O’Connor, 1959 e 1962).

Ao acenar com um possível acordo ferroviário/petrolífero os argentinos abriram a perspectiva de romper o isolamento político/econômico da Bolívia, num momento que ela precisava de renda para enfrentar a crise econômica e honrar dívidas de guerra. Mas a SONJ já havia sinalizado aos bolivianos que não aceitaria aumento de impostos e jamais participaria de um acordo com os argentinos. Para piorar a situação, havia agora o bloqueio total do Chaco e era claro que nem os EUA (em crise e sob o New Deal), nem Chile (por ser muito débil) e nem o Brasil (por ter seus próprios problemas) se interporiam a Argentina. Assim, nada mais restava a Bolívia senão assumir o controle do seu petróleo e aceitar a oferta argentina. Porém, a SONJ não desistiu e conseguiu cobrar dos bolivianos uma indenização de US$ 1,7 milhões87.

Daí em diante as negociações argentino-bolivianas progrediram. Em 17/09/1937 os países fechavam dois acordos, um regulamentando o tráfego fronteiriço e outro para estudar o traçado de uma ferrovia entre Yacuíba e Santa Cruz de la Sierra. Em 19/11/1937 era fechado um acordo sobre o transporte de petróleo. Por este tratado a Argentina comprometia-se a: 1) auxiliar a Bolívia a desenvolver suas jazidas petrolíferas; 2) armazenar e transportar o petróleo boliviano através da Argentina, sem cobrar tarifas; 3) controlar os depósitos e caminhões usados no transporte de petróleo entre os dois países; 4) deter o monopólio sobre o transporte de petróleo e derivados que lhe pertenciam; 5) importar da Bolívia 2.220.000 bpa; e 6) considerar como petróleo boliviano apenas o produzido pela YPFB.

Três países logo se alarmaram com o acordo. O primeiro deles foi os EUA. O subsecretario de Estado norte-americano avisou que a Argentina estava comprando petróleo de um país que não detinha a posse legal dos seus poços, alertando-a para não cometer um ato que os EUA considerariam “inamistoso”. Entretanto, nessa época Roosevelt tinha outro problema para resolver: recuperar a economia do país e assim não interveio.

O segundo país incomodado foi o Paraguai porque o tratado de vinculação ferroviária entre Yacuiba y Santa Cruz previa um traçado que devia passar por um território então ocupado por forças paraguaias, que seria objeto nas negociações de paz. Para contornar o problema os argentinos tiveram que fechar um tratado comercial com os paraguaios.

86 As mesmas razões seriam invocadas para justificar as nacionalizações de 1969 e de 2006.

87 A SONJ utilizou sua influência política junto ao Departamento de Estado para pressionar a Bolívia. A indenização (US$ 21,233 milhões em valores atuais) foi paga em 1942.

O terceiro país foi o Brasil, de longe a parte mais interessada por quatro motivos. Primeiro eram pelos motivos geopolíticos já expostos anteriormente e nesse caso a Argentina estava conseguindo implementar a sua política para o Prata. Em segundo lugar o Brasil ainda devia parte da indenização acertada em 1903, o que poderia ser utilizado como justificativa para a Bolívia fazer algum tipo de reclamação. O terceiro motivo era que o projeto desenvolvimentista conduzido pelo Estado Novo necessitava de superávit de petróleo para implantar a política de industrialização. Nessa época a pesquisas de lavra de hidrocarbonetos no Brasil haviam se mostrado decepcionantes. Em contrapartida, pelos conhecimentos geológicos da época, acreditava-se a Bolívia tinha grandes jazidas de petróleo (Hage in: Haag, 2006). O quarto motivo era de ordem interna. Havia uma preocupação constante do governo Vargas com a possibilidade das forças de oposição utilizar os países limítrofes para suas atividades políticas. Este tipo de atitude manifestou-se em 1932, durante a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Os revoltosos paulistas atuaram nos países vizinhos, especialmente os que possuíam fronteiras com o Paraná e Mato Grosso, utilizando esse caminho para passagem de armas em troca de café, via porto de Buenos Aires.

Em 21 de agosto de 1938 em Buenos Aires era fechado o Tratado de Paz, Amizade e Limites entre Bolívia e Paraguai aumentando a urgência brasileira. A necessidade de bloquear a Argentina ao mesmo tempo em que viabilizava o seu próprio projeto nacional e resolvia antigas pendências levou o Brasil a propor o primeiro acordo com a Bolívia tendo como assunto os hidrocarbonetos. Nasceu daí o Tratado de Roboré (nome da cidade boliviana onde o foi assinado) com a Bolívia de 25 de novembro de 1938. Nele o Brasil fazia praticamente as mesmas ofertas da Argentina: 1) a Bolívia concedia ao Brasil uma área de 34.000 km2 entre as províncias de Cochabamba e Potosí para explorar petróleo; 2) o Brasil criaria uma autarquia que seria responsável por instalar e explorar refinarias, criar meios de transporte e distribuir no mercado brasileiro o petróleo importado e seus derivados, dando preferência sempre, em igualdade de condições, ao petróleo boliviano; 3) seria construída uma ferrovia entre Santa Cruz de la Sierra e Santos, por onde os bolivianos poderiam escoar seus produtos e o seu petróleo sem tarifas; 4) os custos bolivianos da ferrovia seriam arcados pelo Brasil em troca do abatimento das pendências do Tratado de Petrópolis; e 5) em troca dos débitos bolivianos contraídos com a construção da ferrovia o Brasil aceitava o petróleo a ser explorado.

O acordo com a Bolívia dificilmente deixaria de estabelecer um vínculo estrutural com esse país em função da própria configuração da indústria petrolífera que, como vimos no capítulo 2, é grande demandante de capitais, tecnologia e conhecimento técnico, sendo quase

impossível isolar completamente países produtores e consumidores, além do que, a dupla natureza dos hidrocarbonetos o torna imensamente estratégico. Por isso, operações conduzidas pelos mesmos capitais em países diferentes resultam na interdependência, que é estrutural e politicamente mais profunda do que a no caso de uma ligação ferroviária (Sampson, op. cit.; Yergin, op. cit. e Cechi op. cit.).

Não foi o que aconteceu nesse momento. Conforme Minadeo (op.cit.) o Tratado de Roboré era uma peça de ficção porque o Brasil de então não dispunha de capitais para tal empreitada e estava iniciando seu processo de industrialização (o que absorvia toda a atenção interna), além disso, o país não tinha qualquer conhecimento técnico na área petrolífera e nem mesmo uma companhia capaz de conduzir uma integração da espécie proposta.