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4. OS HIDROCARBONETOS E AS RELAÇÕES BOLÍVIA-BRASIL ATÉ 1985

4.4. A Bolívia e o Brasil nos Anos de Interlúdio (1938 a 1985)

4.4.3. Durante o Regime Militar (1964 a 1985)

Conforme Silva (2004) no início dos anos 60 o Brasil era visto como possuidor da mais moderna e diversificada estrutura industrial do mundo subdesenvolvido, tendo sido capaz de realizar com notável grau de sucesso a transição de um desenvolvimento industrial baseado no protecionismo às atividades voltadas para o atendimento exclusivo do mercado interno, para uma fase de abertura crescente ao exterior.

Dentro desse âmbito, no Governo de Jânio Quadros (1961) aconteceu um fato de suma importância: a instrução 204 da Sumoc de 1961 realizava uma reforma monetária e desvalorizava a moeda favorecendo as exportações. Era um indicador que o Brasil lograra êxito no processo de substituição de importações. Sintomático nesse quadro foi o lançamento da Política Externa Independente (PEI) através do qual o país passou a se preocupar em obter mercados internacionais para colocar seus produtos, aproximando-se à África, América Latina (através da ALALC), China, Europa do Leste e URSS.

Depois da renúncia de Jânio, o Governo João Goulart (1962/64) deu continuidade a PEI, mas isso mudou substancialmente em 31 de março de 1964 com golpe militar. Segundo Vizentini (op. cit.) a política externa sob o Governo Castello Branco (1964/67) voltou-se para o realinhamento com os EUA, abertura aos capitais externos, acordos bilaterais e abandono das iniciativas no âmbito da PEI e da OPA. Essa política externa visava atender os interesses da burguesia nacional internacionalizada construindo um modelo de desenvolvimento dependente e associado. Nele caberia ao Estado a tarefa de incrementar a expansão dos bens de capital, favorecer os capitais internacionais para a expansão dos bens de consumo para a classe média e deixando a produção dos bens de consumo popular para a insipiente indústria nacional. Como conseqüência o mercado interno seria insuficiente para absorver a produção, forçando a diplomacia a buscar mercados no exterior. Esse foi um dos motivos que levaram o Brasil a se reaproximar da América Latina.

Nesse ambiente as conversações com a Bolívia foram principalmente econômicas, envolvendo a ligação ferroviária, o comércio fronteiriço, a compra de látex e pela terceira vez aventou-se uma proposta de aproveitar os hidrocarbonetos bolivianos. Conforme Silva (2004) em 1965 formou-se um grupo de trabalho com a finalidade de propor ao Presidente a retomada das conversações visando à construção de um gasoduto entre Santa Cruz de La Sierra e São Paulo. Em 5 de novembro de 1965 esse grupo apresentou uma proposta recomendando o projeto com base nos seguintes argumentos:

1. O Brasil teria acesso a uma fonte de gás natural;

2. A matriz energética teria um complemento melhor com o gás, combustível mais barato, menos poluente e mais flexível no uso industrial e doméstico;

3. Melhorar-se-ia o perfil geoeconômico da região sudeste e centro-oeste, pois uma planta de fertilizantes poderia ser construída no Paraná;

4. Criar-se-ia uma fonte estável de divisas para a Bolívia, que poderia absorver a produção da indústria paulista;

5. Em Corumbá poderiam ser construídas usinas termoelétricas e uma usina de redução capaz de beneficiar o minério de ferro e manganês vindo de Urucum;

6. Poderiam ser construídas indústrias leves e usinas termoelétricas no eixo Campo Grande/Três Lagoas e oeste paulista;

7. A norte-americana Tennessee Gas interessara-se pelo projeto, o que facilitaria a obtenção do financiamento.

Também se argumentou que se havia intenção de interiorizar o parque industrial brasileiro esse projeto era uma boa alternativa porque o gasoduto poderia terminar em Bauru e daí ser dirigido para o Paraná e Triângulo Mineiro. Apresentado ao Conselho Nacional de Segurança o projeto foi bem recebido, mas depois de pedir vistas, o Marechal Costa e Silva objetou dizendo que era arriscado confiar o suprimento de gás a um país instável como a Bolívia, onde os problemas políticos poderiam levar a interrupção do fornecimento, paralisando o parque industrial paulista. Também alegou que era necessário preservar a estrutura de refino da Petrobras. Apesar da tentativa de se rebater esses argumentos, Castello Branco entendeu que era necessário uma análise mais aprofundada e nomeou um grupo de estudos que tinha à frente o General Ernesto Geisel. As negociações não foram concluídas e pela terceira vez adiava-se o projeto de vínculo com a Bolívia centrado nos hidrocarbonetos.

No governo Costa e Silva (1967/69) houve a ruptura com a diplomacia de Castello Branco. Sob o conceito de Diplomacia da Prosperidade foram retomadas as linhas gerais da PEI, voltando à política externa para a autonomia e o desenvolvimento. Para a América Latina isso significou uma redução das relações, que ficaram restritas ao âmbito da OEA e ALALC.

O Governo Costa e Silva foi uma época de definições importantes. Para começar, na Bolívia se confirmavam os temores expressos em 1965. O descontentamento e irritação social levaram a nova instabilidade política seguida do golpe do General Alfredo Ovando Candia (1969/70). A 17 de outubro de 1969 Candia baixava o Decreto Supremo 8.956 determinando

a segunda nacionalização do setor. O ato teve forte influência do líder socialista e então ministro dos hidrocarbonetos Marcelo Quiroga Santa Cruz97 e contou com apoio dos nacionalistas e partidos de esquerda. Dessa vez a prejudicada era a Gulf. A justificativa para a expropriação foi idêntica à utilizada para o caso da SONJ em 1937. A Gulf reagiu e conseguiu que o governo dos EUA retaliasse duramente os bolivianos: suas exportações foram bloqueadas, a construção do gasoduto com a Argentina foi suspensa (pela retenção de equipamentos na fronteira), os desembolsos do BIRD foram congelados. Os bloqueios foram suspensos depois que o Estado pagou uma indenização de US$ 78 milhões98.

Outra definição importante é que os militares passaram a desaprovar veementemente qualquer projeto externo envolvendo a Petrobras. Duas razões justificavam esta postura. A primeira delas era a visão política que tinham da estatal. Considerada altamente estratégica, ela estava fazendo jus à confiança que nela se depositava como garantidora do abastecimento interno, ainda mais num momento de grande crescimento econômico e grande demanda de combustíveis. Os militares sequer permitiam que ela fosse criticada e rechaçavam a idéia de sua exposição externa (Contreras, 1994).

A segunda razão é que o regime tinha outros planos para a Petrobras como vimos no capítulo 3: ela seria peça central para a consolidação do projeto nacional-desenvolvimentista, complementando o parque industrial através do “tripé econômico”, onde participariam o Estado como indutor do crescimento, capital privado internacional e capital privado nacional. Com a criação da Petroquisa (Decreto-Lei 61.981 de 28 de dezembro de 1967) a Petrobras era transformada no pivô dos interesses que giraram em torno da construção do setor petroquímico. Demandante de altíssimos capitais e conhecimento agregado a petroquímica absorveu toda atenção da Petrobras e não havia espaço para projetos paralelos.

Conforme Vizentini (op. cit.) no governo Médici (1969/74) foi implementado o projeto de Brasil Potência, através da Diplomacia do Interesse Nacional. Repressivo, formalmente pró-americano, mas desenvolvimentista, nesse período foi abandonada à solidariedade terceiro-mundista, a estratégia multilateral cedeu terreno ao bilateralismo e à via solitária, e as áreas de atrito com os EUA receberam maior atenção. Estabeleceu-se uma espécie de divisão entre multilateralismo, onde o Brasil buscava apoio quando não conseguia agir sozinho e o bilateralismo, quando havia aquela possibilidade.

97 Um dos principais intelectuais socialistas do país Santa Cruz escreveu os livros El Saqueo de Bolívia e El Gás

que ya no Tenemos. A mando do ditador Luis García Meza, Santa Cruz foi preso, torturado e assassinado em 17 de julho de 1980. Atualmente seu nome é um dos mais invocados por Evo Morales. 98 US$ 401,7 milhões em valores de hoje.

Nos anos 70 o êxito da política nacional-desenvolvimentista brasileira gerou enormes desconfianças na América do Sul e sérias tensões entre o Brasil e seus vizinhos porque o projeto do Brasil Potência implicava a afirmação sobre determinada área geográfica, evitando a constituição de governos hostis ao seu projeto.

Nessa época as estratégias do país foram orientadas pelas concepções geopolíticas gestadas na Escola Superior de Guerra pelo General Golbery do Couto e Silva. Concebidas no final dos anos 60 pregavam, entre outras, a ocupação do Centro-Oeste. Dentro dessa estratégia a idéia era implementar projetos compartilhando os recursos naturais com os vizinhos aumentando a desconfiança de que o Brasil tentava impor seu próprio “imperialismo”. A disputa emblemática foi a proposta de aproveitamento hidroelétrico no rio Paraná que originou o episódio conhecido como a "Diplomacia das Cachoeiras" envolvendo Argentina, Brasil e Paraguai e que resultou na construção de Itaipu.

Nesse âmbito as relações com a Bolívia foram importantes para não ceder mais terreno à Argentina (que estava concluído o gasoduto). Manteve-se um relacionamento satisfatório com o governo de esquerda do país e, ao mesmo tempo colaborava-se com as forças domésticas e internacionais interessadas em sua queda. Os laços foram estreitados depois que Hugo Banzer deu um golpe em 1971 e assumiu o poder. O Itamaraty articulou um programa de estágio e treinamento para instrutores de ensino técnico e formação profissional junto ao Senai, preparou (com o BNH) um projeto habitacional e articulou a criação de uma nova Comissão Mista Brasil-Bolívia.

No Governo do General Ernesto Geisel (1974/79) a gestão da política externa coube ao Chanceler Azeredo da Silveira que a orientou sob o conceito do Pragmatismo Responsável

e Ecumênico. Em linhas gerais percebeu-se que o país necessitava aprofundar suas relações exteriores, pois o capitalismo brasileiro atingira um nível de desenvolvimento que propiciava alto grau de inserção mundial. Foram aprofundadas as relações com a África, Europa Ocidental, Japão e Oriente Médio. Ao mesmo tempo, por motivos políticos e econômicos, foi reforçada a agenda cooperativa com a América Latina, frente à qual o Brasil abandonou o discurso ufanista e procurou estreitar os laços de cooperação.

A Bolívia continuou a ocupar espaço importante na agenda. Em 22 de maio de 1974 Hugo Banzer e Geisel assinaram um Acordo de Cooperação e Complementação Industrial onde foi feita à quarta proposta brasileira para aproveitamento dos hidrocarbonetos bolivianos (a terceira referente ao gás). Seria construído um gasoduto capaz de transportar 6,8 mm3/dia

de gás natural (quase idêntico ao gasoduto Argentina-Bolívia) durante 20 anos, mas desta feita o projeto malogrou por que:

1. Na linha das justificativas apresentadas para rejeitar o projeto de 1965, os militares não queriam envolver a estatal num projeto altamente duvidoso e com um país sabidamente instável. A questão ferroviária e as estatizações de 1936 e 1969 eram três maus precedentes; 2. Pessoalmente Geisel não acreditava no potencial gasífero da Bolívia e era contra a construção do gasoduto;

3. A Petrobras não tinha interesse no projeto. O General Geisel comandara a estatal entre 1969/74, não tolerando interferência na sua gestão, voltada para a consolidação da estrutura vertical da Petrobras, construção do Sistema Petrobras e, depois de 1972, procurar e produzir petróleo em áreas favoráveis no exterior com objetivo assegurar o abastecimento interno a preços constantes. Geisel também criou um grupo de trabalho (que controlou a estatal até 1985), que o substituiu e manteve suas diretrizes (Contreras, 1994);

4. Era época do “milagre brasileiro”, cabendo ao petróleo o papel de destaque na matriz energética brasileira e não havia espaço para o gás natural. A necessidade de petróleo foi reforçada após o choque de 1973 tornando obsessão a conquista da auto-suficiência;

5. A Petrobras não tinha as mínimas condições tecnológicas e financeiras para desenvolver um projeto gasífero;

6. Os bolivianos eram contra, alegando que a exportação de gás natural para o Brasil comprometeria o processo de industrialização nacional, além do que havia incerteza quanto à capacidade da Bolívia em atender a demanda brasileira e o bom momento no cenário petrolífero internacional estimulava a exportação de petróleo, não de gás natural.

Em agosto de 1977 Banzer visitou Brasília onde foram assinados cinco acordos e convênios. Um deles autorizava a YPFB a operar no Brasil. Posteriormente, em Outubro de 1978, foi firmada uma nova ata de intenções sobre o gás natural boliviano aonde o Brasil importaria 13,32 mm3/dia, mas o projeto não avançou basicamente pelos mesmos motivos que inviabilizaram o acordo de 1974.

O Brasil também assinou o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA, 1978) com a Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, com objetivo de completar as políticas de povoamento e desenvolvimento da área, que vinham sendo implantadas com o fim de contrabalançar o crescente interesse internacional pela região. Desta forma, procurava- se romper o isolamento da zona amazônica dentro do próprio território nacional e ao mesmo tempo reforçar sua vocação regional. Do lado dos vizinhos amazônicos observaram-se

algumas resistências iniciais ao TCA, especialmente por parte da Venezuela, porque se temia que esta iniciativa prejudicasse outros projetos cooperativos, em particular o Pacto Andino.

No governo Figueiredo (1979/85) a política externa denominou-se Universalismo, com o esforço da manutenção das linhas gerais do Pragmatismo Responsável ao mesmo tempo em que tentava manter a autonomia do país após o segundo choque do petróleo e da crise da dívida. Pela primeira vez a intenção brasileira de priorizar a América Latina, presente nos discursos desde 1964, saiu da retórica para tornar-se realidade. Crucial nisso foi o entendimento com a Argentina (Tratado Itaipu - Corpus de 1979).

Com a Bolívia em 9 de fevereiro de 1984 os presidentes Siles Zuazo e Figueiredo renegociaram o projeto para a construção do gasoduto ligando Bolívia e Brasil, prevendo que o volume importado pelo Brasil ficaria entre 8 e 13,32 mm3/dia, mas desta vez, segundo a YPFB, as negociações não avançaram devido ao desacordo sobre o preço do gás natural.