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4. OS HIDROCARBONETOS E AS RELAÇÕES BOLÍVIA-BRASIL ATÉ 1985

4.4. A Bolívia e o Brasil nos Anos de Interlúdio (1938 a 1985)

4.4.1. Sob o Tratado de Roboré (1938 a 1958)

Por 20 anos o relacionamento Bolívia-Brasil foi conduzido no âmbito do Tratado de Roboré. Nesse período enquanto inúmeros problemas emperraram o andamento da questão dos hidrocarbonetos, foram implementados outros dispositivos do Tratado.

No primeiro período Vargas (1930/45) quase toda atenção da política externa voltava- se à obtenção de vantagens comerciais barganhando principalmente com a Alemanha e EUA, sendo que obter uma siderúrgica era o maior de todos os objetivos. Depois do advento da Segunda Guerra Mundial, além da natural preocupação com um conflito de tais dimensões, o Brasil conseguiu negociar a siderúrgica com os EUA em troca de, entre outras coisas, a seção de bases militares no nordeste.

Mesmo tendo estas prioridades, o Brasil procurava manter o bom relacionamento com os países sul-americanos e nesse sentido tentou aproximar-se dos bolivianos, mesmo após o acordo Argentina-Bolívia. Uma das demandas do Brasil era que os bolivianos definissem qual a área da concessão coberta pelo Tratado de Roboré já que a região prometida aos brasileiros era a mesma prometida à Argentina. Enquanto os bolivianos não resolviam à questão, o Brasil continuou construindo a ferrovia acertada apesar das dificuldades em importar trilhos dos EUA durante a Segunda Guerra. Em 1943 o Brasil aceitou como pagamento da parte

boliviana os estudos geológicos da SONJ que indicavam reservas cujo valor seria de US$ 901.788.000,0092. Daí para frente o Brasil custeou sozinho a ferrovia.

Sob o Governo de Eurico Gaspar Dutra (1945/50) a diplomacia brasileira alinhou-se completamente aos EUA, esperando tirar algumas vantagens como aliado preferencial. Entretanto, a situação não era a mesma de pré-guerra: era época de Guerra-Fria e os EUA não estavam dispostos a fazer concessões ainda mais porque o Brasil não tinha quem usar como contraponto (a não ser a URSS). Nesse contexto, na América do Sul houve apenas algumas conversações. Uma delas foi sobre a concessão petrolífera acordada em Roboré. Em 1950 a Bolívia decidiu que ao norte do rio Parapeti a área era para o Brasil ao sul para a Argentina.

No segundo Governo Vargas (1951/54), com a indústria siderúrgica já em pleno funcionamento e o país necessitando de petróleo, voltou o interesse brasileiro sobre os hidrocarbonetos bolivianos. A proposta foi bem recebida pelo governo de Víctor Paz Estenssoro, que precisava de dinheiro. Assim, a reaproximação se fez com as Notas Reversais de 17 de janeiro de 1952 onde o Brasil conseguiu que a Bolívia delimitasse precisamente a área reservada aos futuros trabalhos de empresas brasileiras para os quais ambos os países concordaram em contribuir com US$ 1 milhão cada, ficando o Brasil responsável por adiantar a parte correspondente à Bolívia.

Pouco depois a Bolívia entrava em convulsão. Sob pressão dos sindicatos e partidos de esquerda, em 31 de outubro de 1952 Paz Estenssoro proclamava a Revolução e era publicada a Ata de Independência Econômica da Bolívia, que promoveu uma série de reformas, entre elas a agrária e a nacionalização das minas de estanho93. Mas o ambiente era pouco propício para uma revolução com matizes esquerdistas. Conforme Bandeira (2006a) a Bolívia dependia do mercado norte-americano para as exportações de cobre e estanho e o clima de Guerra Fria impunham cautela e moderação. Alguns dias depois, num discurso diante da COB Estenssoro amenizou o furor dos mais exaltados ao lembrar que:

“É possível dizer que podemos fazer um túnel para sair além dos mares e vender nosso estanho. É uma frase bonita que arranca aplausos, mas a realidade é outra, porque necessitamos de dólares para a nossa subsistência” (Bandeira, 2006a).

92 Hoje: US$ 9.883.596.480,00.

Com isso o presidente deixava claro que a Bolívia não era uma ilha, que era necessário comercializar o estanho e o país enfrentava embargos do Chile e do Peru, de cujos portos dependiam suas exportações.

Paz Estenssoro não se enganou. Ao contrário de 1937 os EUA não estavam dispostos a tolerar desafios e reagiram fazendo pressão através do preço do estanho. Em busca de fundos, Paz Estenssoro sinalizou para o Brasil com a possibilidade de um novo acordo ferroviário- petrolífero e em 12 de agosto de 1953 eram assinadas novas Notas Reversais sobre o Tratado de 1938. Desta feita cada país dobrava o valor prometido pelas Notas de 1952, ou seja, US$ 2 milhões94 cada, ficando o Brasil novamente responsável pela parte boliviana.

Para a Bolívia a boa vontade do Brasil foi de pouca valia. Sem coesão interna e com os problemas econômicos se avolumando em 1953 o governo Paz Estenssoro foi obrigado a capitular frente aos EUA e logo depois deu uma concessão de 200.000 km2 as petrolíferas norte-americanas em troca de uma ajuda de US$ 22 milhões95. Isso neutralizou a investida brasileira. Depois da morte de Vargas o governo Café Filho, francamente pró-americano, liquidou a proposta, quando o Ministério da Fazenda informou ao Itamaraty que não poderia fornecer o dinheiro (Bandeira, 2006a).

Para consolidar o domínio das petrolíferas norte-americanas em 29 de outubro de 1956 era promulgado o novo “Código del Petróleo” boliviano, também conhecido como “Código Davenport” por ter sido redigido em New York pelo advogado Henry Holland, especializado em assuntos petrolíferos. Ele determinou que as empresas seriam taxadas em 18%, podendo reter 82% dos lucros96. O artigo 21 desse código protegia os interesses norte-americanos. Por ele ficava proibida a atuação de petrolíferas estatais e para-estatais na Bolívia. O dispositivo jurídico tinha um alvo: impedir que a recém-nascida Petrobrás e a YPF (leia-se Brasil e Argentina) atuassem na Bolívia (Mascarenhas, 1959).

Com a concessão em mãos e protegidas pelo novo código as petrolíferas norte- americanas iniciaram as operações, mas o insucesso das pesquisas de lavra fez com que elas se retirassem até restasse apenas a Gulf Oil Co. Os estudos da Gulf logo mostraram que a Bolívia era rica sim em hidrocarbonetos, não sob a forma de petróleo, mas sob a forma de gás natural, não obstante existia um empecilho: as jazidas estavam a uma profundidade média de 3.445 m. Como a YPFB não tinha condições de explorá-las o governo entregou-as a Gulf Oil, que em 1961 confirmou a existência de campos de gás em Caranda, Colpa e Rio Grande.

94 Hoje: US$ 13.460.000,00. 95 Hoje: US$ 134.600.000,00.

Entrementes, em 1955 a ferrovia Santa Cruz de La Sierra-Santos estava quase pronta (ver mapa 3.4 nos anexos). Conforme Minadeo (op. cit.), a Bolívia não tinha como pagar sua parte, assim em 1956 o presidente eleito Hermán Silles Zuazo visitou o Brasil e confirmou a validade do Tratado de 1938, mas insistia em sua atualização. A idéia dos bolivianos era trocar sua parte da dívida na ferrovia por uma concessão petrolífera em que o Brasil aceitasse como pagamento o petróleo a ser descoberto. Dessa aproximação surgiu a Comissão Mista Permanente Brasil-Bolívia.

No caso dos hidrocarbonetos o governo brasileiro solicitou a Petrobras à definição das bases para as novas negociações, que não se afastaram do espírito do Tratado de 1938, mas tinham reais vantagens práticas. O empecilho era o artigo 21 do código do petróleo boliviano, mas Zuazo deu garantias de que iria suprimi-lo. Ante essas perspectivas o presidente da Petrobras, Idálio Sardenberg, foi a Bolívia, mas a recepção foi péssima (Minadeo, op. cit.).

A resistência boliviana em aceitar um acordo com o Brasil tinha um fundamento. Por essa época já era visível para todos os vizinhos que o Brasil podia ser pobre, mas era desproporcionalmente grande quando comparado a eles. Conforme Hage (op. cit.) a negociações que estabeleceram as fronteiras do país quase sempre acabaram em favor do Brasil, gerando desconfiança de um “imperialismo” velado, desconfiança aumentada quando o Estado Novo (decretado em 11 de novembro de 1937) adotou abertamente uma política de industrialização. Daí em diante nunca cessou o temor de que o Brasil exercitasse uma “divisão do trabalho latino-americana”, em que ele exportasse produtos manufaturados e forçasse os sócios a se concentrar na exportação de produtos primários. Esses sentimentos foram mais bem expressos em 1952 quando um deputado boliviano declarou:

“Señores Disputados: um vecino poderoso confiado quizá em su própria fuerza

pretende desconecer al derecho, pero el pueblo boliviano debe asumir uma defensa heróica de sus atributos.” (Hage in: Haag, op. cit, s/pág.)

Os bolivianos demonstraram abertamente que consideravam a perspectiva da presença de uma companhia brasileira como prova do expansionismo do Brasil. Além disso, diziam através da imprensa que seria mais difícil expropriar o patrimônio de uma estatal do que de uma companhia privada, como acontecera com a SONJ em 1937 (Minadeo, op.cit.). Em tal ambiente os negócios não prosseguiram. Caberia ao Governo JK retomar as conversações.