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Os impactos (inter)subjetivos da desigualdade social

Conforme explicitado, um dos pressupostos mais importantes da Psicologia Social Crítica refere-se a uma concepção de homem na qual as dimensões mente e corpo, indivíduo e sociedade, estão interligadas e se interpenetram mutuamente, opondo-se a uma falsa dicotomia.

Segundo Rey (2004, p. 124), essa dicotomia foi favorecida pela associação errônea do termo subjetivo com o de sujeito e sua experiência objetiva interna, bem como ao reflexo do externo, ao espiritual e ao oculto, “o simbólico substituiu o interno e reificou a ordem social”. Essa distorção provocou o desprezo dessa dimensão pelas ciências sociais até a primeira metade do século XX, na qual a Psicologia era dominada pela forma positivista e pela cognição social. Desse modo, ele aponta que o social “perdeu o sujeito e toda a produção psíquica que não fosse de ordem simbólica”.

No entanto, a Psicologia Social Crítica propôs, conforme elucidado na passagem anterior, uma categoria de homem, cuja psique incorpora um atributo social, o caráter subjetivo dos processos sociais. Desse modo, essa dimensão não é oposta ao objetivo (real), mas constituída a partir da objetividade dos sistemas humanos produzidos culturalmente. Daí se esvanece a dicotomia objetivo- subjetivo (REY, 2004).

Assim, o autor (REY, 2004) defende que a dimensão social dos processos psíquicos não corresponde nem ao individualismo, nem ao sociologismo, pois é um fenômeno não redutível a esses âmbitos. Mas, configura-se em um processo histórico e dialético, em cenários individuais e sociais, que operam simultaneamente dentro de um mesmo sistema.

Na perspectiva de Paulino-Pereira (2012), a Psicologia Social Crítica concebe o homem como um ser histórico, cujas ações e pensamentos modificam-se no decorrer do tempo e nas diferentes situações por ele vivenciadas. Processo que ocorre não apenas coletivamente, como também individualmente no modo como a pessoa se apropria dessas informações e as opera no mundo das sociabilidades; não apenas na dimensão supra ou macroestrutural, da ciência, da história, da economia e da política, como também no cotidiano, no dia-a-dia concreto da vida dos sujeitos. Portanto, o homem é a síntese desse devir, desse movimento de construção da cultura e de si próprio.

Para exemplificar o funcionamento de tal processo, de acordo com Bauman (1998) e Castel (2010), o sistema capitalista, em sua versão atual neoliberalista, gera: o consumismo; a competição; o hedonismo; o individualismo; a desfiliação cada vez mais acirrada, de gerações inteiras, para

sustentar esse funcionamento. Grupos que, na maior parte das vezes, são vistos ideologicamente como “inferiores”, pois não se esforçaram o suficiente. Ambos acrescentam a isso a insegurança perante a incerteza do presente, a qual Honneth (2003) denomina de sentimento de indeterminação.

[...] a desregulamentação universal [...] atinge uma vez mais proporções que o mundo de há pouco tempo, confiante em sua habilidade de autorregular-se e autocorrigir-se, parecia ter deixado para trás de uma vez por todas. [...] os efeitos psicológicos, porém, vão muito além das crescentes fileiras dos despojados e dos redundantes. [...] nenhum emprego é garantido, nenhuma posição é inteiramente segura, nenhuma prática é de utilidade duradoura (BAUMAN, 1998, p. 34-35).

Desse modo, o termo “(inter)subjetivos” foi utilizado no título para indicar que os impactos na dimensão afetiva de indivíduos e coletividades não se originam de entidades abstratas e conceituais, como “a desigualdade social” ou das paredes concretas das instituições, mas sim, das e nas relações entre as pessoas que ocupam os diferentes espaços e posições sociais, em contextos macro e micro sociais, nas horizontalidades e nas verticalidades, pois, são os próprios homens que estabelecem, mantém ou modificam os sistemas políticos, econômicos, educacionais estruturados de modo a gerar sofrimento para um classe ou grupos inteiros. Nesse panorama, as condições sociais provocam impactos subjetivos e intersubjetivos.

Esse fenômeno é foco de estudo de diferentes abordagens no campo da Psicologia Social Crítica, bem como levada em consideração por outras áreas do saber.

Nessa perspectiva, Axel Honneth (2003), fundado nos pressupostos da teoria crítica e nas concepções de Hegel e Mead, desenvolveu uma teoria sobre o reconhecimento intersubjetivo, apontando que a ausência ou negação das três modalidades que o compõe: o amor, o direito e a solidariedade, são determinantes no processo de individuação e correspondem a formas de desrespeito e de injustiça social que atingem a constituição psíquica dos sujeitos de modo bruto e integral, afetando a maneira como este se relaciona consigo mesmo.

[...] a reprodução da vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento recíproco porque os sujeitos só podem chegar a uma auto relação prática quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais (HONNETH, 2003, p. 155).

Assim, o autor define que os maus tratos corporais, como a agressão e a tortura, constituem a espécie mais elementar de rebaixamento pessoal, que fere profundamente a confiança aprendida através do amor, provocando uma perda de confiança em si e no mundo. De modo distinto, os dois outros padrões de desrespeito estão ancorados em um processo histórico. São eles: o desrespeito

jurídico e o solidário. O primeiro refere-se às situações de privação de direitos ou de desfiliação, quando o indivíduo compreende que não possui a propriedade elementar que o faz ser reconhecido como os demais membros de uma coletividade com autoridade de participação nesta. Uma forma de opressão que produz a restrição na liberdade, no acesso aos bens, aos direitos sociais básicos, ao convívio e a cultura e favorece a perda do autorrespeito.

Já o terceiro tipo de injustiça social (solidária), definido por Honneth (2003), corresponde às situações de “ofensa”, “degradação” ou “depreciação” de modos de vida individuais e coletivos, como a discriminação por gênero, raça, classe social, dentre outras, que ocasionam a perda da autoestima.

Desta forma, ele considera que a integridade de um ser humano depende desses três padrões de assentimento social. Sendo que, a ausência ou negação dos mesmos produz formas de desrespeito e de injustiça social que contribuem para a perda da autoconfiança, do autorrespeito e do autovalor conquistados intersubjetivamente. Para Honneth (2003), essas formas de desrespeito se objetivam em sentimentos como humilhação, vergonha, raiva e medo que podem ocasionar uma lesão capaz de desmoronar a identidade da pessoa inteira.

Por sua vez, Gonçalves Filho (1998; 2007) de uma perspectiva psicanalítica e marxista, descreve a humilhação social como uma modalidade de angústia resultante do impacto traumático das relações de dominação, que se manifesta no corpo, nos gestos, na imaginação e na voz dos sujeitos. Para ele, a situação de desfiliação provoca sentimentos de não terem direitos, de parecerem invisíveis, desprezíveis e repugnantes para os demais. Portanto, afirma que esse é um fenômeno ao mesmo tempo psicológico e político.

Enquanto, Sawaia (2009), a partir dos pressupostos da Psicologia Sócio-histórica e também inspirada em Vigotski e Espinosa, concebe que os impactos afetivos gerados pela desigualdade social, tais como o medo, a tristeza e a superstição, constituem a base afetivo-volitiva da servidão. Esses afetos podem produzir processos psicológicos poderosos para a reprodução das injustiças sociais. Assim, ela o denomina de sofrimento ético-político, pois pode ser evitado por meio da garantia de condições de vida e de relações sociais mais igualitárias. Desse modo, a autora sustenta que é a partir da subjetividade que o psicólogo pode agir.

Conforme explicitado, consideramos que além de produzir impactos subjetivos nos indivíduo injustiçados socialmente, o sistema de produção capitalista que perpetua a desigualdade social também incide nas sociabilidades, ou seja, nos modos de relações estabelecidas entre as pessoas que ocupam as diferentes posições sociais mediadas pelas condições socioeconômicas, raça, etnia, orientação sexual, gênero, dentre outros.

Nesse sentido, Gonçalves Filho (1998; 2007) aponta que os afetos que compõe a humilhação social podem ser produzidos de modo externo e objetivo, por meio de gestos e palavras que denotam ofensa, injúria, degradação, menosprezo; como internamente, em forma de angústia, raiva e medo. Além disso, ele ressalta que, nas relações onde a satisfação de um se faz no sofrimento e na submissão do outro, há preconceito envolvido. Preconceito que promove uma imagem do outro como inferior e serviçal.

Desse modo, podemos considerar que os estereótipos e os preconceitos são ferramentas ideológicas para a perpetuação do desrespeito ético-político.

De acordo com Crochik (1997), o receio ou rejeição daqueles que causam estranheza ou repulsa é menos produto daquilo que não conhecemos concretamente, do que daquilo que não queremos ou não podemos reconhecer em nós mesmos subjetivamente. O que implica no enrijecimento e no desprezo pela fragilidade própria e dos outros. Desse modo, o desrespeito e a violência dirigida às pessoas em situação de risco ou marginalização podem ser compreendidos como um mecanismo que têm a função de proteger a coerência da própria imagem ameaçada.

Assim, é possível considerar que a violência ou o desrespeito horizontal dirigido às pessoas procuram os serviços da Assistência Social14 podem funcionar como um mecanismo de defesa diante da temível realidade: na sociedade capitalista contemporânea não há lugar para todos. Desse modo, a qualquer momento, qualquer um pode ficar à margem e sofrer, igualmente, os impactos da situação de desfiliação.

Nesses termos, as pessoas em situação de pobreza podem estampar a falha e a selvageria do sistema do econômico vigente. Conforme expressou Bauman (2013, p. 152) “a visão dos destituídos é um lembrete oportuno a todos os seres sóbrios e sensíveis de que até mesmo a vida mais próspera é insegura e que o sucesso de hoje não é uma garantia contra a queda de amanhã”. Assim, todos sofrem, embora de modo vago e inespecífico, a ameaça de marginalização, situação produtora de humilhação e de destituição da dignidade.

As propostas de enfrentamento dessas situações elaboradas pelos autores mencionados, assim como por Paulo Freire (2008) e Maritza Montero (2006), diferenciam-se:

Paulo Freire (2008, p. 34), propõe que a luta pela humanização tem de partir dos “oprimidos” e dos que realmente se solidarizam com eles. Pois, eles quem sentem os efeitos da injustiça social, sabem profundamente o que é ser designado a ser menos e têm a necessidade de lutar pela liberdade. Assim, ele considera que, para atuar politicamente junto com as pessoas em situação de vulnerabilidade social, é preciso estabelecer com elas um diálogo crítico e libertador e

não utilizá-las como depositários da crença na liberdade. Pois, o “antidiálogo, a sloganização, a verticalidade e os comunicados”, transformam os sujeitos injustiçados em objetos de “domesticação” ou em massa de manobra.

Concepção que se aproxima da noção de fortalecimento, proposta por Montero (2006), em oposição a de empoderamento. Nesse sentido, a autora defende que a ideia de ser empoderado por alguém que detém o poder e irá doá-lo como um presente, moldando sua capacidade de domínio ou controle sobre sua vida, contrapõe-se a ideia de que o poder é um resultado de um processo coletivo advindo da reflexão, do diálogo e do movimento em prol das transformações sociais. Fortalecimento que pode ser favorecido pelo psicólogo.

Ainda, para Freire (2008), o reconhecimento da injustiça social é resultado da uma síntese racional que se estabelece através do diálogo livre, no compartilhamento de experiências, o que ele denomina de processo de conscientização. Através desse processo, as pessoas podem encontrar possibilidades de se inscreverem em uma luta pela sua afirmação como sujeitos inseridos no processo histórico. Assim, ele defende que o sentimento de desrespeito pode ser superado na medida em que se estabelece uma ação libertadora, na qual os sujeitos passam a crer em si mesmos.

De outro modo, Honneth (2003) considera que, como a experiência de desrespeito está ancorada nas vivências afetivas dos indivíduos, são justamente esses sentimentos que constituem a base motivacional e moral para a resistência, para o conflito ou mais precisamente, para o empreendimento de uma luta pelo reconhecimento. Pois, somente diante do desrespeito o indivíduo compreende que o reconhecimento social lhe foi negado injustificadamente e que ele necessita deste, impelindo-o a conquistá-lo. Segundo Honneth (2003, p.224), “a tensão afetiva em que o sofrimento de humilhações força o indivíduo a entrar só pode ser dissolvida por ele na medida em que reencontra a possibilidade de ação ativa”.

No entanto, ele ressalta que a injustiça social não necessariamente desvela-se em luta social, apenas o pode e isto depende do entorno cultural e político dos sujeitos atingidos, “somente quando o meio de articulação de um movimento social está disponível é que a experiência de desrespeito pode tornar-se uma fonte de motivação para ações de resistência política” (HONNETH, 2003, p. 224). Acrescenta ainda que a luta pelo reconhecimento jurídico e solidário se efetua no campo do direito, como as desveladas pelos movimentos feministas, ecologistas, raciais, homossexuais, regionais, dentre outros.

Sawaia (2009), assim como estes autores, considera que razão e emoção não são funções distintas e independentes, ao contrário, operam juntas e em simultâneo. Assim como Honneth (2003), ela defende que os afetos constituem uma dimensão importante para a ação transformadora, pois, enquanto efeitos da desigualdade, o que ela denomina de sofrimento ético-político, eles

bloqueiam a ação transformadora e podem manter a servidão. Nesses termos, ela afirma que é fundamental “elucidar o sistema afetivo/criativo que sustenta a servidão nos planos (inter)subjetivo e macropolítico, para planejar uma práxis ético/estética de transformação social” (SAWAIA, 2009, p. 364).

Desse modo, salienta que não basta atuar nos afetos para favorecer o fortalecimento subjetivo, mas sim, promover o conhecimento das causas comuns desses afetos, favorecendo a reflexão e a conscientização sobre a realidade social e o modo como esta impacta nas subjetividades. Assim, a tríade emoção-consciência-ação política constitui-se como um pilar para o combate à desigualdade social.

Nesses termos, Sawaia (2009, p.370) reforça que para fortalecer os sujeitos, o psicólogo também precisa favorecer os bons encontros, pois “somente quando a ignorância for experimentada como tristeza e pensar livre como alegria, das paixões passa-se à ação”. Fundamentada em Espinosa, a autora considera que as emoções alegres potencializam a autonomia. Além disso, ela sugere que o psicólogo propicie espaços para a criatividade, pois associada à felicidade ancoram a ação transformadora. Para ela, os homens só podem atingir um grau de liberdade se foram criativos.

[...] a emoção e a criatividade são dimensões ético-políticas da ação transformadora, de superação da desigualdade, e que trabalhar com elas não é cair na estetização das questões sociais, ou do solipcismo, mas sim um meio de atuar no que há de mais singular da ação política emancipadora.

A partir de outra vertente, Gonçalves Filho (2007) também enfatiza tanto a emoção no processo libertador quanto nas relações de solidariedade. Para ele, o sofrimento advindo da humilhação é exacerbado, pois carrega em si a história de uma classe, de um grupo e como a dominação é enigmática, a angústia daí resultante diz respeito a uma experiência emocional pouco elaborada, interpretada e simbolizada. Dessa forma, o autor considera que, apenas quando o sujeito reconhece esse sofrimento originário, através de um trabalho interno de digestão, que precisa ser realizado pelo diálogo, em companhia de outros, na pluralidade, na igualdade de participação, de direitos e com a valorização das contribuições de cada um, esse caminho poderá ser a cura da humilhação social.

Gonçalves Filho (2007, p. 20), ainda considera que o poder de agir ocorre na ressignificação das situações, rompendo o enigma paralisante. Na “capacidade de juntos interrompermos o automatismo social, cancelando opressões, fundando uma república e organizando formas salutares para o trabalho de todos e cada um”. Ele afirma que o poder de agir, a recuperação da dignidade, consiste na capacidade de doar-se para os seus, ou seja, na capacidade de estabelecer relações

solidárias. Desse modo, essa compreensão se aproxima do conceito do reconhecimento solidário e do jurídico elaborado por Axel Honneth (2003).

Essas perspectivas, embora sustentadas por diferentes vertentes teóricas, esclarecem alguns dos elementos que podem ser imprescindíveis no processo de superação da situação de vulnerabilidade social, oferecendo assim, importantes contribuições para a práxis do psicólogo.

A partir do que fora discutido, o fortalecimento pode ser gestado, a partir das coletividades, das trocas horizontais, do diálogo livre, do reconhecimento intersubjetivo, da compreensão do caráter comum das injustiças sofridas e da relação entre os afetos tristes provocados por elas e o sistema econômico e social dominante. Também apontam que a luta em prol de mudanças sociais têm de partir das pessoas que estão nessa base estrutural, o que também requer a conscientização, a elaboração afetiva, a liberdade e a criatividade. Todos esses requisitos podem ser compreendidos como experiências subjetivas potencializadoras.