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CAPÍTULO 5 RELATOS DAS EXPERIÊNCIAS DOS PSICÓLOGOS

5.3 Os primeiros impactos do ingresso no campo

Quando assumiram a função, os psicólogos se depararam com uma realidade de trabalho bem diferente da que haviam imaginando, em decorrência de vários fatores descritos e rememorados por todos eles nas entrevistas, exceto pelo profissional contratado no período posterior. Esses aspectos, tais como as condições físicas e materiais precárias de trabalho, a ausência de uma estrutura que garantisse a privacidade no atendimento prestado à população, a

equipe reduzida, a produção em massa de cadastros, a fiscalização, dentre outros, produziram sensações como a de “estar perdido”, de conflito, dúvidas, e, até mesmo, a indignação.

É importante ressaltar que essa situação correspondeu ao período de reestruturação da Assistência Social do município de acordo com as normas do SUAS. Assim, esse relato mostra tanto os impactos iniciais do ingresso em um campo de trabalho desconhecido, quanto a trajetória de um sistema da política pública recém-nascido e em implantação nos diversos municípios do país. Sendo que esses, dependendo da gestão, do número de habitantes, da verba destinada a essa área, da sua história política, podem encontrar-se mais “atrasados” em relação à outros ou organizados de uma maneira diferente e/ou mais eficiente do que outros.

Desse modo, os participantes da pesquisa explicaram que, em 2009, os CRAS estavam instalados em um espaço provisório que era compartilhado com outros serviços e programas da Assistência Social, como o CREAS e a Central de Cadastros. Segundo Aline e Malu, a arquitetura do local lembrava a de um salão de festas, sem divisórias ou paredes e com várias mesas dispostas umas ao lado das outras, onde os atendimentos eram realizados simultaneamente. Essas condições físicas impossibilitavam a preservação do sigilo no acolhimento das famílias, o que elas consideravam como uma falta de respeito à população atendida.

Quando eu cheguei [...] olhei e pensei “Ah, não sei onde atender aqui, né...?” [lugar] tudo aberto, com uma mesa aqui, uma mesa ali e outra mesa ali. “Como você conversa com alguém?”. Não tinha condição de atender as pessoas naquela situação, você estava atendendo e eu te ouvia de lá. Era horrível. Deplorável. Estava me incomodando e incomodando as pessoas. Totalmente sem estrutura [...] Não tem condição! Isso é tudo contra o que a gente... tanto pra Psicologia como Serviço Social, que a gente aprendeu de respeito a quem você tá atendendo”. [...] Essa foi a primeira dificuldade, a segunda é que, quando eu cheguei, só tinha eu de técnica, a coordenadora e alguns estagiários. MALU Quando a gente chegou, a realidade era muito diferente do que a gente imaginava, [...] a gente ficava assim: “Meu Deus, que é isso?! Como a gente vai conseguir trabalhar nesse lugar aqui?”, de materiais, era muito pobre [...] me senti muito incomodada de não ter um canto [...] Era muito misturado, as coisas do atendimento junto com as nossas coisas [...] não foi fácil. A escuta das famílias, era no meio ali... porque não era fechado. [...] então, vindo da Psicologia, a questão do sigilo, de poder ouvir a pessoa, de estar num ambiente que propicie que ela conte as coisas dela, não tinha nada disso. ALINE

É possível que esse desconforto impactasse mais nos profissionais que tiveram uma formação predominantemente clínica, que enfatiza um modelo de atendimento baseado no setting terapêutico, do que nas famílias atendidas. Por isso, nos primeiros dias de trabalho desses profissionais nessa Secretaria, esse foi um dos aspectos que mais fizeram eles se sentirem deslocados.

É claro que é importante dispor de um espaço privado para dialogar sobre assuntos mais íntimos, inclusive isso está previsto nas normativas do SUAS16 referente às instalações do CRAS. No entanto, é importante lembrar que a atuação do psicólogo no CRAS não se restringe ao acolhimento, pois engloba, por exemplo, as atividades grupais e as visitas domiciliares.

Além disso, Malu relatou que seus nove ou dez primeiros meses de trabalho estiveram voltados para a inclusão de um grande número de pessoas no programa Renda Cidadã de transferência de renda, como uma produção em massa de beneficiários.

[...] era só renda cidadã, renda cidadã, renda cidadã, e a gente trabalhava naquela situação precária [...] acabava sendo um atendimento superficial, era bem ruim. Nossa, atendia em massa, era muita gente, muita! MALU

Algo parecido fez parte das minhas experiências em outras prefeituras, nas quais compreendi que o Estado ou o Governo oferece para os municípios certo número de vagas em seus programas sociais e exige o preenchimento dessas vagas como metas. Um processo que envolve questões políticas-partidárias, como cooperação ou oposição, assim como, o repasse de recursos. Desse modo, os dados quantitativos acabam tornando-se mais importantes do que a qualidade e/ou efetividade desses programas. O que também favorece medidas descabidas, cujos fins (preencher vagas) justificam os meios, tais como aproveitar bancos de dados e/ou cadastros e beneficiar pessoas que nem haviam procurado pelo programa.

Ainda, em relação aos programas de transferência de renda, Aline também apontou que havia uma prática de verificar se a família possuía ou não os bens materiais que havia declarado para obter o benefício financeiro dos programas sociais e que isso lhe “deu uma confusão danada na cabeça”, porque deixava tênue a linha divisória entre proteção e vigilância.

Era uma época que o Tribunal de Contas da União tinha muitas visitas [...] pra verificar se o que a família declarou era aquilo, então era uma coisa bem investigativa, sabe? [...] mas aí passou [...] hoje é outra coisa também [...] a gente parava nosso trabalho pra fazer isso, pra investigar. “Ah, tem geladeira de inox?” Sabe? Umas coisas assim, que eram muito chatas e a gente ficava em um papel... como que a gente consegue acompanhar e ao mesmo tempo fiscalizar, né? Não dá, ou é pra você criar vínculo ou pra romper com eles. ALINE

16

De acordo com as Orientações Técnicas para o CRAS (BRASIL, 2005; 2009), essa unidade de referência deve ser

instalada, preferencialmente, em um prédio estatal. No entanto, se no território não houver essa disponibilidade, podem ser utilizados imóveis cedidos ou alugados e até mesmo compartilhados, desde que o CRAS possua uma entrada própria, com espaço e equipe exclusivos para o desenvolvimento dos serviços ofertados por esse equipamento. Além disso, propõe que o espaço físico do CRAS deve dispor de: uma recepção, salas de atendimento, salas para uso coletivo, sala administrativa, copa e banheiros. O mais importante é que o espaço possibilite o desenvolvimento dos serviços ofertados pela proteção social básica, especialmente o PAIF.

Esse cenário de funcionamento da assistência no município pesquisado, descrito até então, fora modificado a partir de 2010, quando a Secretaria de Assistência Social instalou os CRAS nos prédios estatais que estavam sendo utilizados por uma espécie de Poupatempo.

De acordo com Pedro, esses núcleos ofereciam serviços de caixa eletrônico, correio e emissão de documentos, para a população localizada nas regiões com mais dificuldades de acesso ao centro da cidade. Mas, com o desenvolvimento dos bairros, esse serviço foi considerado desnecessário e então os CRAS, que já existiam desde 2005/2006, ocuparam esses prédios que foram reformados para atender as exigências normativas do SUAS, de modo que atualmente possuem a configuração descrita no início desse capítulo.

Pedro, Aline e Malu relataram que nesse processo de mudança também houve a contratação dos funcionários que faltavam para compor a equipe mínima dos CRAS que já funcionava há sete anos. Assim, conforme eles foram acompanhando a organização, a reforma do espaço e a situação inicial geradora de sofrimento deixou de existir, “a gente conseguiu se encontrar” (ALINE).

A gente desceu em 2010 pra cá [...]. Pra você entender a minha angústia, quando eu entrei aqui eu olhei e falei: “Não acredito, tem parede!” [...] Saiu o espaço, aí ficamos com a equipe completa e isso se estabilizou, agora esse prédio é da prefeitura [...] tem uma estrutura razoável [...] a gente conseguiu melhorar a qualidade de atendimento [...] embora eu ache que deveria ter mais salas de atendimento, duas é muito pouquinho [...] é bom ter um lugar fixo, porque a população sabe aonde ir. MALU

Todas essas situações vivenciadas nos primeiros meses de trabalho geraram, conforme expresso por eles: “angústia”, “incômodo” e a sensação de estar perdido em relação ao campo e, principalmente, quanto ao próprio fazer, que lugar ocupar? Para lidar com essas situações diante do novo campo de atuação, como a maioria dos entrevistados ingressou no mesmo período nos CRAS do município, eles criaram um grupo de estudos sobre o fazer do psicólogo nesse equipamento de Assistência Social.

5.3.1 “O que é o psicólogo na Assistência?”

Conforme expressou Aline “a gente chegou junto, assustado, com medo” e juntos eles puderam compartilhar seus medos, dúvidas, inquietações e a sensação de “não saber nada”. O grupo de estudos foi o que mais os ajudou a permanecerem no CRAS até que as situações fossem se ajeitando.

a gente foi aprendendo junto, o que é CRAS, o que faz. [...] a gente tem até um vínculo mais assim, porque foi significativo, as dúvidas eram iguais. [...] a gente estava mais agoniado [...] E as coisas foram se estruturando. Fizemos cursos na área, que a própria secretaria dispõe, a gente foi se juntando [...] A gente pegava um texto e ia ler [...] a partir de alguns materiais a gente foi conversando sobre o que a gente vivia. O legal é que era cada um de um CRAS [...] hoje a gente parou de ir, na verdade, um tanto, porque essas angústias diminuíram. Aos poucos a gente foi se apropriando mais, isso é importante. ALINE

No entanto, os encontros eram realizados fora do período de trabalho e em outro espaço público, na praça de alimentação do shopping. Assim, como eles trabalhavam em períodos diferentes, alguns de manhã, outros à tarde, era difícil manter a regularidade dos encontros. Por esse motivo e também pela apropriação gradual do trabalho que gerou maior autoconfiança e clareza sobre seu fazer, as reuniões deixaram de acontecer. Luiza também mencionou que os seminários organizados pelo CREPOP favoreceram a redução da angústia diante do trabalho a ser desenvolvido no CRAS.

[...] era injusto, porque a gente estava estudando fora do horário de trabalho, super difícil [...] a gente não conseguia se encontrar, um [psicólogo] trabalhava de manhã, outro à tarde [...] quem ficava de manhã, tinha que ficar esperando... Então, não dava. [...] A gente queria institucionalizar o encontro. ALINE

A gente acabou enfraquecendo [os encontros], uma, porque acho que a gente começou a ficar melhor resolvido, então, aquela necessidade que existia de poder entender qual era nosso papel, o que a gente ia fazer, acho que isso já está melhor e o outro problema é o horário, porque uns saem às duas, outros às cinco, então é difícil encontrar um dia pra isso. [...] antes a gente dava um jeito, porque a angústia era maior, acho que também quando surgiu o CREPOP a gente começou a ir nesses encontros e deu uma acalmada. LUIZA

Além do grupo de estudos, Luiza e Aline também buscaram informações diretamente nos órgãos representativos da profissão, participando de encontros, seminários, palestras e grupos de estudos promovidos pelo CRP, pelo CREPOP e pela Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social (DRADS) para compreender o papel do psicólogo na Assistência Social.

Nossa, eu fui buscar um monte de coisa, porque eu precisava [...] de uma resposta, eu fui ao CRP umas duas, três vezes, “o que é o psicólogo na Assistência? O que é o psicólogo na Assistência?”, pra ver se eu conseguia enxergar aquilo, porque eu não tinha base nenhuma, faculdade não tinha, não tinha nenhum estágio, nada, de repente estava ali como técnica, e aí? Vou fazer o que todo mundo fala o que eu tenho que fazer? Mas como eu vou fazer? Qual que é o meu olhar? Eu tinha muito essa angústia, depois você vai fazendo, você vai adaptando [...] ALINE.

Embora Aline tenha afirmado que acabou se adaptando ao trabalho na prática, essas iniciativas revelam a importância da promoção institucional de espaços de trocas e discussões

pertinentes ao trabalho, bem como da participação dos funcionários em cursos, palestras e eventos internos e externos que favoreçam o aprimoramento profissional.

5.3.2 Percepções sobre os documentos normativos

Nesse grupo, para discutir sobre o papel que deveriam desempenhar no CRAS, eles estudaram a LOAS, o Guia de Referências Técnicas para a Atuação do Psicólogo elaborado pelo CREPOP, a NOB-RH, a tipificação, o guia de orientações do PAIF, bem como foi recuperado alguns textos de Psicologia Social que já conheciam, como os de autoria de Silvia Lane.

Em relação aos textos normativos, quatro dos colaboradores mencionaram que os consideram mais situados no universo conceitual, do que na concretude do dia a dia.

No entanto, Luiza e Thaís compreendiam que, embora distantes da realidade, esses materiais serviam para orientar e inspirar as ações em direção ao horizonte ideal a ser alcançado, ou seja, que o texto não apresenta o que acontece, mas o que “está aí para ser implementado” (Thaís) e nesse sentido, contribuem com a prática.

Por outro lado, Bianca defendia que eles não dialogavam com a realidade, pois eram muito abstratos e não colaboravam para sanar as dúvidas sobre os procedimentos mais específicos e práticos. Desse modo, considerava que precisavam ser revistos a partir do conhecimento produzido no campo.

Acho que a gente carece de materiais para a atuação na assistência [...] as referências precisam ser revistas com os conhecimentos do que já está sendo feito na área, no dia a dia, aqui é tudo muito novo [...] Uma inquietação grande que eu tenho é quando eu pego o livreto de diretrizes lá do CRP e fico pensando na nossa prática. Não encontro nada que seja familiar com as atividades que a gente desenvolve. Eles falam muito em linhas gerais e eu fico tentando ligar isso com alguma coisa da nossa prática [...] quando eles fizeram o material poderiam ter um conhecimento um pouco melhor de como funciona o CRAS pra, pelo menos, a gente fazer algum link com as nossas atividades, porque, quando eu leio, faço um esforço danado para entender o que eles estão falando. E, se você deixa muito aberto e vago, cabe tudo nessa caixa. Fico tentando fazer essa ponte, eles estão falando do quê?... atendimento? visita? BIANCA

Enquanto, Aline, coloca que embora ela ansiasse muito por uma “cartilha” que orientasse seu trabalho quando chegou, ela acabou aprendendo muito mais com a prática.

[...] a gente precisa de um parâmetro e a gente da Psicologia quase não tem parâmetro pra nada [...] agora, como fazer, o que é no dia a dia, não tá explicando, isso você vai

aprendendo e se adaptando conforme você vai fazendo, mas ele ajudou [material do CREPOP]. ALINE

Nesse sentido, quando os documentos foram elaborados pelo CFP e pelo CREPOP, a inserção do psicólogo na assistência ainda era muito recente e havia poucas pesquisas sobre o tema. Por isso, os textos oferecem diretrizes e parâmetros ético-políticos para o trabalho.

As questões relativas às dúvidas, dificuldades, contradições e/ou aspectos favoráveis à atuação no campo foram e vêm sendo problematizadas ao longo desse processo, a partir dos encontros e seminários promovidos por diversos órgãos representativos, por pesquisas acadêmicas de diversas regiões do Brasil, bem como das realizadas e divulgadas pelo CREPOP.

Até aqui foram apresentadas algumas das situações que fizeram parte da trajetória deles no CRAS. A partir do item seguinte, serão relacionadas às questões que perpassam suas práxis no momento em que foi realizada a pesquisa.