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3 IMINÊNCIAS DO CORPOMENTE NA ARTE: PISTAS PARA UMA GENEALOGIA

3.3 OUTRAS PRESENÇAS

Suzanne M. Jaeger (2006, p. 122) situa algumas conexões, acerca da presença, que vão além do potencial de domínio técnico do artista. De acordo com a autora, a presença pode ser definida como uma configuração e reconfiguração de uma força em resposta ao ambiente, o que exige do artista capacidade de escuta, consciência de si e do que o cerca, considerando nessa relação o modo singular de cada corpo agir e reagir.

Philip Auslander80 (apud JAEGER, 2006) afirma que Stanislavski,

Beltolt Brecht81 (1898 – 1956) e Grotowski perceberam que a presença do ator

não se daria apenas com a incorporação de uma persona que não é ele, mas sim com a apresentação autêntica do self do ator, em contraposição à cultura de massa. De acordo com Jaeger, as mídias alteram as percepções e o esquema corporal, de modo diferente da presença ao vivo. O surgimento dessa requer um modo reconhecível de estar no mundo, mas também requer o poder de se concentrar na singularidade do momento, pronto para seus deslocamentos, acomodações e adaptações, que pertencem ao desafio da ação, o que ocorre com completo engajamento do corpo no momento presente. A audiência perceberia isso, e todo esse desencadeamento de percepções manteria viva a performance, com aquela qualidade especial que alguns performers possuem, e que chamamos presença de palco (JAEGER, 2006).

Ao tratar da presença, Fischer-Lichte (2011) faz um paralelo entre as abordagens do corpo fenomênico e do corpo semiótico direcionando uma discussão acerca da presença que considera o ambiente:

A presença não é uma qualidade expressiva, e sim puramente performativa. Gera-se por meio de processos específicos de corporização que o ator engendra em seu corpo fenomênico ao ponto de dominar o espaço e prender a atenção dos espectadores [grifo meu] (FISCHER- LICHTE 2011, p.197) [tradução minha]82.

80 Professor da Faculdade de Literatura, Mídia e Comunicação, Georgia Tech, em Georgia – EUA.

81 Dramaturgo, poeta e encenador alemão.

Em Fischer-Lichte (2011) e em Jaeger (2006) é possível identificar que ainda há essa consideração do potencial de encantamento que o artista pode exercer sobre o público, como resquícios de manutenção de uma espécie de aura, da presença entendida como poder de prender a atenção do outro, e se alimentar na relação. O argumento em favor da abertura, para o alimento das presenças na relação, pode ser observado em uma abordagem da presença do artista como convite ao jogo, à partilha, e a configuração do acontecimento nesse encontro, é o que parece estar mais presente em práticas contemporâneas, como as que descrevo neste estudo – Cena 11, La Pocha Nostra e AND Lab. Buscar formas de deixar os afetos mútuos emergirem entre essas presenças, em suas diferenças e semelhanças, pode ter como consequência a potencialização do encontro. O ato de imposição do artista sobre o público não tende a permitir, de certa forma, uma troca. Estabelecer a figura aurática imprime uma noção de inacessibilidade, de algo inatingível.

Rancière (2010, p. 108) afirma que a condição do espectador como aquele que olha “é uma coisa ruim”, uma vez que “olhar é considerado o oposto de conhecer” e “o oposto de agir”. Ao considerarmos o espectador como passivo, “desprovido de qualquer poder de intervenção” o trânsito de afetos e afecções não é favorecido. Rancière (2010, p. 109) ressalta que se deve buscar um teatro “sem espectadores”, tornando-os “participantes ativos numa ação coletiva em vez de continuarem como observadores passivos”. Diante dessa afirmação, o autor reconhece um antagonismo na legitimação da prática teatral, declarando que:

[...] Por um lado, o espectador deve ser libertado da passividade do observador que fica fascinado pela aparência à sua frente e se identifica com as personagens no palco. Ele precisa ser confrontado com o espetáculo de algo estranho, que se dá como um enigma e demanda que ele investigue a razão deste estranhamento. Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador passivo e assumir o papel do cientista que observa fenômenos e procura suas causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero observador que performativa. Se genera por médio de processos específicos de corporización com los que el actor engedra su cuerpo fenomênico em tanto que dominador del espacio y acaparador de la atención de los espectadores”.

permanece parado e impassível diante de um espetáculo distante. Ele deve ser arrancado de seu domínio delirante, trazido para o poder mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de fazer as vezes de observador racional pela experiência de possuir as verdadeiras energias vitais do teatro (RANCIÈRE, 2010, p. 109).

Entrevistei a um casal de cegos, que cantava em uma das ruas no centro de Florianópolis, Maria e Mauri, e ao contar sobre seu ofício, um deles disse: “Somos em dois porque é difícil manter a alegria sozinho”[informação verbal]83. A alegria nesse caso é o tipo de afeto/

presença que mantém seu sustento, pois é o que faz com que os passantes percebam que eles estão ali, a propor uma experiência artística, mas, ao mesmo tempo, essa alegria é o que surge da relação entre os dois artistas, é o convite aos passantes que, ao aceitá-lo, também alimentam suas alegrias/presenças. Esses são Maria e Mauri:

Imagem 8 - Foto do casal Maria e Mauri durante uma entrevista à equipe do blog Artes Urbanas de Florianópolis no dia 22 de abril de 2013.

Fonte: Acervo blog Artes Urbanas. Disponível em: <http://www.artesurbanas. com/2013_04_01_archive.html>. Acesso em 20/01/2013

83 No dia 30/04/2013 eu e Michele Louise realizamos entrevistas com alguns artistas de rua no centro de Florianópolis, perguntando acerca das noções de presença e cibercultura. Esta ação fez parte das experimentações que desenvolvemos sobre nossas pesquisas no primeiro semestre de 2013.

Fischer-Lichte (2011), ao trazer a questão da performatividade e do corpo fenomênico, contempla o corpo em devir, o que muitos artistas e teóricos consideram em suas práticas. Parece um momento adequado para apresentar um pouco das técnicas desenvolvidas por Eugenio Barba, que se direcionaram mais especificamente às questões da presença. Os princípios desenvolvidos por esse encenador, se reelaborados a partir de um contexto atual de abordagens da ação corporal, aparecem como possibilidade de refinamento da percepção, que poderá facilitar a relação entre artista e público, ao se identificar os afetos no ato com o outro:

Com frequência chamamos esta força do ator de presença [grifo do autor], mas não se trata de algo que está, que se encontra aí à nossa frente. É contínua a mutação, o crescimento acontece diante de nossos olhos. É um corpo em vida. O fluxo constante de energias que caracteriza nosso comportamento cotidiano foi re-direcionado” (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 54).

E se essa noção de presença fosse apenas o convite à experiência? E se transferíssemos a potência do que se chamou obra de arte para o que surge na relação entre os corpos que fazem parte de um mesmo ambiente? Conquistar essa qualidade de presença diferenciada implicaria, ao invés de ser a diferença, em deixá-la emergir, perceber quando ela surge como um acontecimento, próxima à ideia de presença, possível de se observar na pesquisa de Eugénio e Fiadeiro (2012). A atribuição essencial do artista passaria então à capacidade de compartilhar experiência e articular possibilidades poéticas emergentes no jogo. E para que essa presença se transforme em convite ao outro, a apreensão de um modo de fazer é imprescindível. Seria possível propor relação sem uma aguçada percepção de si e abertura ao ambiente?

Na teoria apresentada por Eugenio Barba, a presença é entendida como um diferencial que o artista deve possuir diante de um público, e para isso a fuga às convenções comportamentais, a quebra dos mecanismos usuais que o processo de inculturação encarregou-se de moldar, seriam um caminho para encantar o espectador na cena, como se observa nas afirmações de Barba e Savarese (1995). Os elementos pré- expressivos – energia, oposição, dilatação, equilíbrio, ritmo, omissão e

equivalência – servem ao treinamento do artista que tem essa noção de presença, a presença cênica como foco.

3.4 PRESENÇA COMO ENERGIA E DILATAÇÃO

“Como se tornar vivo em cena? [...] Como fazer vibrar o que se poderia definir como o nó complexo de reações que é o teatro?” Eugenio Barba (apud FÉRAL, 2001b, p. 1 da tradução) traz essas questões para falar sobre sua prática, em uma entrevista concedida à Josette Féral intitulada Fazer teatro é pensar de modo paradoxal. Assumir que o trabalho do artista e do pesquisador em arte também compreende paradoxos é um modo de abrir espaço para descobertas entre uma coisa e outra, e no caso das artes presenciais, seria a possibilidade de operação no espaço do não saber, do inesperado, no espaço emergente da relação entre o artista e o público. Barba demonstra as possibilidades de consideração do paradoxo em alguns de seus textos, assumindo-os inclusive em seus procedimentos de criação. Para esse autor, uma das características do teatro seria “transformar sua própria anarquia numa disciplina que deixa marcas e ultrapassa o destino biológico daqueles que o fazem, e que termina quando termina a vida deles” (BARBA apud FÉRAL, 2001b, p. 1 da tradução).

A partir das exigências do ofício teatral, Barba desenvolve uma filosofia acerca da noção de presença, abordando-a com foco na questão da energia. De acordo com Barba e Savarese (1995, p. 81) “a tarefa de um ator e de uma atriz é descobrir as propensões individuais da própria energia e proteger suas potencialidades, sua individualidade”. A energia é definida por esses autores como a maneira de se exercer uma força, a qual o artista deverá dominar, transformando-a de modo que essa energia gerada no corpo afete o espectador. Barba (1994) não restringe a percepção de energia à materialidade do corpo, mas a defende também como pensamento, o que justifica toda uma elaboração em favor de uma aparente imobilidade dos atores carregada de intenção de movimento. A definição de energia que interessa a esse autor não está somente relacionada à força muscular e nervosa, mas a esse processo biológico do corpo que se converte em pensamento, e se dá a ver ao espectador.

As possibilidades de modelar conscientemente a energia do ator, e de provocar transformação nas energias do espectador (BARBA, 2010), aparecem como um forte impulso nas pesquisas de Barba e seus colaboradores, delineando o perfil do Odin Teatret em seus cinquenta anos de existência. A oposição é um dos elementos explorados na técnica desenvolvida pelo grupo, sob a intenção de oferecer o contrário, impor obstáculos à ação, o que tem herança na arte oriental, bastante valorizada por Barba ao perceber que a oposição é a base de toda a movimentação dos “atores/bailarinos” (BARBA; SAVARESE 1995, p. 176). A sugestão aqui é da imaginação de forças que puxam/empurram na direção oposta à qual se tenciona chegar. A consequência de imposição das oposições, na movimentação ou na inércia, é a dilatação de tensões, o que daria outro caráter à presença do artista (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 12-13). Dilatar significa ampliar, aumentar dimensões, o que se configura segundo o autor, em aumento de energia devido à excitação de partículas que se separam, atraem-se e se opõem com mais força (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 54). O resultado na dilatação seria mais vida ao ator/bailarino, o que poderia, consequentemente, capturar a atenção do espectador.

Dentre as possibilidades de modulação de energia e dilatação do corpo do ator, Barba apresenta o equilíbrio extra-cotidiano – também denominado por equilíbrio de luxo, ou equilíbrio precário –, que implica na busca por formas que rejeitam o equilíbrio “natural” do corpo (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 34), e que, segundo suas pesquisas, conferem ao ator uma percepção diferenciada de si, afetando, consequentemente, o que o corpo produz visualmente.

O princípio da omissão é empregado para eliminar objetos e acessórios utilizados na ação, e eliminar também ações e movimentos para que novas associações emerjam na reconstrução de sequências (BARBA; SAVARESE, 1995 p. 171), “a omissão do elemento visível torna independentes a ação e a posição: apesar de elas manterem toda a sua organicidade, podem adquirir uma nova dependência e, portanto, um novo significado [grifo meu]” (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 172). Essa seria uma forma de ressaltar apenas o que é essencial à ação, levando à cena somente o que há de mais interessante. A equivalência é a possibilidade de instaurar certo equilíbrio de forças na

ação, como empurrar algo imageticamente, e permitir que a tensão e a força apareçam em uma parte do corpo diferente da que estaria se algo realmente existisse. Barba explica a equivalência como algo distinto da imitação, pois como a própria palavra denota, a imitação é a tentativa de fazer igual ao real, enquanto a equivalência assume apenas a aparência utilizando alguns elementos da forma real. (BARBA; SAVARESE, 1995). O princípio das oposições – que sugere um corpo sempre vivo, utilizando as forças que puxam/ empurram em direção oposta à intenção –, o desconforto do movimento extra- cotidiano e o desequilíbrio são meios de controle do movimento. É como se essa fosse a forma de manter o ator “acordado para si”. Eugenio Barba trata a dilatação como forma de apresentação do corpo em vida, vida essa que não se resume em condição, mas em estado (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 54). O ritmo é também destacado no trabalho de Barba, uma vez que, segundo o autor, é ele quem dá a pulsação das ações do ator/bailarino e lhe confere o poder de esculpir o tempo, buscando a harmonia, fluidez e retenção da atenção do público (BARBA; SAVARESE, 1995 p. 211).

Três elementos são associados para a dilatação: 1 – alteração do equilíbrio cotidiano à procura do equilíbrio precário; 2 – utilização da dinâmica de oposições; 3 – uso de uma incoerência coerente. As ações, segundo Barba, devem manter os princípios de desperdício e excesso, isso deverá ocorrer na intenção de buscar o extra-cotidiano: enquanto habitualmente optamos pelo maior resultado com o menor esforço, temos a proposta de oposição às leis naturais, invertendo os meios, empenhando mais energia para uma movimentação mínima (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 55). Outra questão a ser observada é a possibilidade de identificação de características inerentes ao domínio de energia na movimentação extra-cotidiana, em uma situação de imobilidade do ator/bailarino, ou ainda, como esclarecem os autores, na mobilidade não representativa. Essa mobilidade não representativa seria um meio de evitar o exagero, o clichê, em favor da consciência do que acontece ao corpo e ao espaço, em uma percepção aguçada do artista; esta, por sua vez, influenciaria seu estado, transformando significativamente a relação com o público. Barba compreende a manutenção de energia na imobilidade como possibilidade de tornar viva a presença do ator, que não precisaria representar, mas estar na cena.

mostrar vitalidade, pois, para ele, a energia aparece até na movimentação que não é aparente. Imóvel, o ator/bailarino poderia ter maior moção de energia, permitindo sua circulação no corpo, graças às oposições que ampliam as ações: “A dança de oposições é dançada no [grifo do autor] corpo antes de ser dançada com [grifo do autor] o corpo [...] A energia não corresponde necessariamente ao deslocamento no espaço” (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 13). Assim como ocorre no ator, o espectador também gera e gere níveis de energia, transmitindo-a independentemente se sua atuação no encontro implica em movimento ou não.

Imagem 9 - Jan Fersley, Julia Varley, Sofia Monsalve e Iben Nagel Rasmussen, do Odin Teatret, em cena do espetáculo A Vida Crônica. Foto: Rina Skeel – Divulgação

Fonte: < http://www.odinteatret.dk/productions/current-performances/the- chronic-life.aspx>