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3 IMINÊNCIAS DO CORPOMENTE NA ARTE: PISTAS PARA UMA GENEALOGIA

3.5 PRESENÇA CONVITE

A possibilidade do artista em chamar a atenção do espectador para o que ele está realizando no aqui-agora é entendida, nesta pesquisa, como a busca por uma presença-convite, que tem chances de provocar transformação nas energias do espectador, do modo que Barba (2010) expõe, a partir do momento em que ele aceita o convite. Porém, ao considerarmos que ambos os corpos envolvidos na relação são afetados, a emergência de acontecimento passa a ser uma responsabilidade partilhada. O velho dito popular: “quando um não quer, dois não brigam”, pode ilustrar essa ideia de partilha e de emergência de acontecimento na relação presencial entre artista e público, o que leva à dedução de que a presença, como Eugenio Barba a aborda, poderia instaurar a relação, mas não necessariamente mantê-la.

Barba considera a relação com o público uma forma de manutenção da vida do ator/bailarino na cena. Porém, se transferíssemos essa possibilidade de alimentar o que há de vida para a experiência partilhada entre as presenças, com seus níveis de energia, ao invés de considerarmos que o público pode alimentar a vida do artista em cena, a noção de presença seria diluída em favor do que poderia emergir de potência no encontro, na relação entre artista e público. Aparentemente, ao artista cabe a preparação para a relação, o convite, mas não somente a ele poderia caber a responsabilidade de gestão dessa experiência que é compartilhada, pois se a arte da presença leva em conta as relações que se configuram no aqui-agora, as implicações da presença do espectador devem ser consideradas, assim como o próprio Barba assume, ao afirmar que o espectador exerce influência nas ações do ator.

Eugênio Barba acredita na manutenção pelo ator da tensão, da atenção ao público, e aos elementos circundantes, que, postos em prática, possibilitariam uma “comunhão perceptiva”, a qual tem em Jerzy Grotowski (1968) um fundamento:

[...] o teatro pode existir sem maquiagem, sem figurino especial, sem cenografia, sem um espaço isolado para a representação (palco), sem efeitos sonoros e luminosos, etc. Só não pode existir sem a relação ator – espectador, de comunhão perceptiva, direta, viva (GROTOWSKI, 1968, p. 2).

Por outro lado, as exposições de Barba que encarregam o ator de atribuições relacionadas a controle, a domínio do corpo, das energias, e da cena, se observado a partir da crença de que seria possível determinar o que o espectador deverá sentir, parece contradizer o que poderia ser compreendido por comunhão, do modo que Grotowski (1968, p. 2) a expõe. Este último esclarece que a comunhão é exigente de uma capacidade de “despojamento”, de “desnudamento” do ator. Nesta pesquisa, o despojamento que parece pertinente ao artista seria o de uma presença impositiva em favor da escuta, na experiência partilhada.

Segundo Barba e Savarese (1995), a articulação de elementos favoráveis à manutenção da vida na cena torna divina sua interpretação, porque parece negar sua condição terrestre. Esse aspecto, recorrente na pesquisa de Barba, merece atenção, pois no contexto atual, por mais que se pretenda uma experiência artística intensa, a criação de uma aura divina ao artista aparece justamente como um invólucro que des-convida o espectador a atividade, uma vez que sua tarefa parece ser somente a de admirar essa figura divina. Como facilitar a configuração de um ambiente de partilha em um cenário de territórios tão claramente demarcados?

Apesar de ter desenvolvido modos de fazer específicos relacionados ao “treinamento” do ator que, dentre outras coisas, favorecem a ideia de domínio do corpo, e as possibilidades de condução das percepções do espectador, Barba reconhece atualmente que “a matéria-prima do teatro não é o ator, o espaço, o texto, mas a tensão, o olhar, a escuta, o pensamento do espectador. O teatro é a arte do espectador” (BARBA apud FÉRAL, 2001b, p. 4 da tradução). Tal afirmação permite observar a tendência de Barba ao reconhecimento de que ao teatro importa a relação entre ator, espectador.

Jaeger (2006), ao incursionar na fenomenologia da percepção para tratar das possibilidades relacionais, afirma que sentidos e cognição se retro-afeccionam. Assim, não somente a cultura seria capaz de formar os padrões, mas também o modo peculiar de cada indivíduo que, à sua maneira, percebe o ambiente e cria sua teia de sentidos. O artista é esse ser humano, sujeito à ordem social e aos eventos biológicos tanto quanto o espectador, por mais que as conexões e respostas possam ser diferentes. Muitas vezes, as respostas aos estímulos não serão apreensíveis de modo

consciente, assunto sobre o qual o filósofo José Gil (2004) trata com mais abrangência, e que trarei no decorrer desta dissertação.

Já em Damásio (2011), observei que a relação interdependente do esquema corporal é um caminho pertinente ao objeto de minha pesquisa, pois conhecer o funcionamento do corpo aparece como uma forma de aguçar a percepção e apreender as informações pelos sentidos84. Percebo

que essa seria uma possível efetividade da presença a partir da escuta, ou seja, partindo do entendimento de escuta como forma de percepção das relações propostas no ambiente em que o corpo está. E neste contexto, a noção de corpo, mente e alma separados não vigora, daí a utilização do termo embodiment.

A noção de embodiment é tratada por Jaeger (2006) para entender a constante reorganização do esquema corporal85, que se altera

a cada nova situação e ambiente. Nesse contexto, a noção de presença em relação se aproxima também de uma reconfiguração desse esquema corporal, com constantes atividades incorporadas que constituem nossas experiências de percepção. Portanto, a conexão com o ambiente seria capaz de alterar o estar no mundo, e assumir tal relação seria, então, um modo de estar aberto e atento ao que ocorre.

Neste capítulo da dissertação, procurei possibilidades de abordagem da presença a partir do entendimento de corpo no ato relacional, iniciando este percurso de observação em práticas e discussões do início do século XX que inauguravam uma abordagem da relação 84 Trago essa referência de experiências na educação somática que pude vivenciar durante o percurso da graduação em Artes Cênicas na Universidade Estadual de Londrina com a Prof. Tereza Margarida Morini Vine entre os anos de 2004 e 2007 e com a Prof. Marila Velloso no curso “Sistema Fluídos”, realizado em 2006 pela Porto Rebouças – Estufa Multidisciplinar, com carga horária: 20h). Dentre outras abordagens do movimento o Body-Mind Centering <http://www.bodymindcentering.com/bonnie-bainbridge-cohen> era um meio de desenvolvimento das dimensões da percepção. Estudávamos com frequência a constituição corporal através do acesso a imagens e, na relação do toque, ou do movimento individual. Havia nesse processo o convite a reconhecer a estrutura do corpo conectando esses estímulos sensoriais ao movimento.

85 O esquema corporal, para o filósofo francês Merleau-Ponty (1994), seria a maneira de expressão do corpo no mundo, não se tratando de uma mera reunião de órgãos.A espacialidade do corpo diz respeito a uma dinâmica de funcionamento como espacialidade de situação, que se refere ao que ocorre no momento em relação com ambiente em uma perspectiva dinâmica.

entre artista e público, mais direcionada às ações físicas e aos aspectos sensoriais desse encontro presencial. Ainda perseguindo possibilidades relacionais entre artista e público, abordei a capacidade de gerar empatia, buscando entender os deslocamentos e acomodações que podem ocorrer ao artista da presença em ação, por uma perspectiva que considera a probabilidade de tanto o artista quanto o espectador serem afetados no encontro da arte da presença. Observei, nesta parte do percurso, que a presença do artista estaria bastante vinculada à possibilidade de conexão com o ambiente, e que a noção de vitalidade associada à presença poderia ser efeito de uma constante reorganização do esquema corporal em relação com esse ambiente. A presença como energia e dilatação também foi problematizada neste capítulo, onde questiono a possibilidade de domínio e imposição da figura aurática do artista sobre o espectador, apresentando com alternativa a abordagem de uma técnica de construção de presença ao artista, mais como possibilidade de emergência de uma presença-convite, capaz de favorecer o compartilhamento da experiência artística e não determinar como ela será.