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1 DA PRESENÇA DA BAILARINA QUE ACONTECEU COMO OUTRAS PRESENÇAS

95) lança a possibilidade de entendermos “como as diferentes práticas de escuta se articulam com as experiências que fazemos de nós mesmos no

2.4 PRESENÇA E OUTROS SENTIDOS

Muitas possibilidades de presença insurgem no contexto relacional e, possivelmente, várias delas não serão contempladas nesta dissertação, mas uma possibilidade que menciono constantemente é a presença tangível, buscando argumentos que não dividam substancialmente o corpo e a consequente abordagem das relações com as coisas do mundo. Gumbrecht (2010) é um dos autores que abordam a relação entre e presença e sentido, propondo tal questionamento, e aproximando a ideia de presença à experiência tangível, apoiando-se entre outras teorias, na filosofia de Martin Heidegger (1889 – 1976). Um dos argumentos de Gumbrecht faz referência à fissura, à distância que se criou entre as Humanidades53 e as coisas do mundo – tangíveis –, a partir

da tradição de interpretação dos fenômenos, com a vigência do império do sentido na sociedade contemporânea. Gumbrecht (2010) questiona a tradição de interpretação como base para a abordagem e entendimento

53 O autor faz referência a Heidegger ao manter a grafia da palavra Humanidades.

das coisas todas do mundo, perdendo-o ao vê-lo por representação e não por experiência.

Imagem 6 – Trabalho de Manuel Alves Pereira – La chute (2004) – C-print sobre Dibond, 105 x 75 cm

Fonte: <http://highlike.org/?s=Manuel+Alves+Pereira&x=0&y=0> Para que seja possível traçar um caminho acerca dos argumentos de Gumbrecht (2010), abordarei os aspectos relacionados a essa ideia de interpretação. O autor, ao afirmar que a tradição de interpretação dos fenômenos tem referência no império do sentido, abre uma fenda relativa à diferenciação entre sentido e significado, o que se explicita em uma discussão convocada pela brasileira Adrea Daher54 no jornal O Globo.

Gilles Deleuze (2007, p. 71) é um autor que observa a definição de sentido como relação paradoxal ao afirmar que:

54 A professora de Teoria e Metodologia da História da Universidade Federal do Rio de Janeiro Andrea Daher publica uma resenha no Jornal brasileiro O Globo tecendo uma crítica sobre o livro Produção de Presença, de Gumbrecht, em 19/02/2011, o que é replicado por esse autor em 26/02/2011 e treplicado por Daher em 05/02/2011 no mesmo jornal.

a lógica dos sentidos vê-se necessariamente determinada a colocar entre o sentido e o não- senso um tipo original de relação intrínseca, um modo de co-presença que, por enquanto, podemos somente sugerir, tratando o não senso como uma palavra que diz seu próprio sentido.

Já o significado estaria ligado, segundo Deleuze (2007, p. 72), à ordem do conhecido, da não-contradição: “O interesse das determinações de significação é o de engendrar os princípios de não-contradição e de terceiro excluído [...]”. Para Deleuze (2007, p. 71), os paradoxos, como no caso da relação entre sentido e não-senso, operam na gênese da contradição.

O elemento paradoxal é não-senso sob as duas figuras precedentes. Mas as leis normais não se opõem exatamente a essas duas figuras. Estas figuras, ao contrário, submetem as palavras normais dotadas de sentido a estas leis que não se aplicam a elas: todo o nome normal tem um sentido que deve ser designado por outro nome e que deve determinar disjunções preenchidas por outros nomes. Na medida em que estes nomes dotados de sentido são submetidos a estas leis, eles recebem determinações de significação [grifo do autor].

Assim, se considerarmos esse último argumento de Deleuze, podemos abordar a questão do sentido conforme Gumbrecht (2010) o apresenta, como o efeito de submissão às leis que distanciam a abordagem do sentido como relação paradoxal, e o aproxima das determinações de significação. Para Gumbrecht, quanto mais nos aproximamos da tentativa de interpretar os fatos por essa via do significado, mais nos distanciamos da presença tangível. Não podemos ignorar, por um lado, toda uma herança na arte fundada na articulação de significados, que convida a decifrar, a interpretar os dados a partir de referências comuns. Um exemplo disso estaria nos códigos gestuais da dança clássica, que sugerem determinados estados de ânimo, a partir de movimentos culturalmente

decifráveis para um grupo específico de pessoas. Por outro lado, esta pesquisa direciona o olhar para uma produção contemporânea em arte que já não se desenvolve somente baseada na articulação de significados, ao tratar a noção de afeto mais próxima da tangibilidade da presença. Tais conjeturas favorecem a experiência que não se funde somente nas proposições que convocam as operações intelectuais – separando corpo e mente –, mas que convida ao comprometimento de toda essa estrutura complexa que é o corpo, em relação com o ambiente.

Dewey (2010, p. 89) contempla uma abordagem da arte como ação, como possibilidade de se ter (grifo meu) uma experiência singular. Para esse autor, “as oposições entre mente e corpo, alma e matéria, espírito e carne, originam-se todas, fundamentalmente, no medo do que a vida pode trazer”. O risco, como afirma o coreógrafo Alejandro Ahmed [informação verbal]55, é um mecanismo de ativação da presença,

e coloca, tanto o artista quanto o espectador, no aqui-agora.

Dewey atribui o afastamento material entre obra de arte e público ao resíduo de uma educação moralista, que reforça a distância entre o corpo e o meio. Um diagnóstico desse contexto é apresentado por Gumbrecht (2010) ao observar uma necessidade de aproximação entre corpos, ou entre corpo e objeto, através da violência, do sexo, e de outras violações, que denotam um desejo de contato não trancendente com as coisas do mundo, buscando essa noção de existência no que é palpável.

O interesse, na produção artística, em provocar o espectador por meio do apelo sensorial, também pode ser observado sob esse ângulo de busca por uma palpabilidade das relações. Em práticas artísticas como as do francês Olivier de Sagazan, cujo interesse é o de afetar o espectador ao explorar a desfiguração56; o performer “rasga” a imagem já construída

da figura humana, agumentando que “se nosso cérebro não encontra sentido para uma coisa, ele entra em conflito” [informação verbal]57. Esse

55 Em entrevista concedida no dia 13 de dezembro de 2012.

56 Esse artista utiliza o barro para desfigurar sua face, criando formas diversas na presença do público, em uma composição associada a um quadro vivo, aludindo a uma pintura que sai da tela. Um exemplo do trabalho desse artista pode ser conferido em: <http://www.youtube.com/watch?v=s-S862p69B0> acesso em: 07/08/2013.

seria um exemplo de experiência que se aproxima da noção de presença tangível, e que residiria então nesta provocação – por vezes violenta – às reações físicas no corpo de quem faz, e de quem assiste (que também o faz de outro modo).

Gilberto Icle (2011, p. 10) afirma uma necessidade nas artes presenciais de voltar a atenção à tangibilidade da presença, propondo como alternativa “suspender os efeitos dos significados como única tarefa e caminho para pesquisar as práticas performativas”. Os efeitos de significados estariam ligados a essa cultura de racionalização58, dos

fatos. À arte caberia subverter essa ordem.

Gumbrecht (2010, p. 45) questiona a importância atribuída à interpretação, e seus “suportes metafísicos”, que divide a humanidade em um “conjunto de disciplinas”. É possível observar, com isso, os resquícios de uma herança dualista, que valorizou a racionalização e nos afastou do mundo físico, como nos mostra o autor:

De modo muito esquemático, essa nova visão moderna, em que a cultura ocidental começa, ao longo de séculos, a redefinir a relação entre a humanidade e o mundo pode ser descrita como uma intersecção de dois eixos. Um eixo horizontal coloca em oposição o sujeito, observador excêntrico e incorpóreo, e o mundo, um conjunto de objetos puramente materiais, que inclui o corpo humano. O eixo vertical será portanto, o ato de interpretar o mundo, por meio do qual o sujeito penetra na superfície do mundo para extrair dele conhecimento e verdade, um sentido subjacente. Proponho que como atividade integrante do Projeto Interfaces Desfigurativas, contemplado no Prêmio Funarte Petrobras de Dança Klauss Vianna – Evento organizado por Elisa Schmidt. Nesta ocasião também frequentei a oficina Matéria-prima com Olivier De Sagazan, que aconteceu entre os dias 12 e 14 de junho de 2013 nas dependências do Jurerê Sports Center em Florianópolis.

58 Meyer (1998) traz a referência do sociólogo francês Edgar Morin. Segundo ele, a razão se liga à coerência e à logicidade, distinguindo racionalidade e racionalização. A racionalidade seria o jogo entre a criação de estruturas lógicas e sua aplicação sobre o mundo, dialogando com o mundo real. Meyer afirma que a racionalidade pretende esgotar logicamente a complexidade do real, já a racionalização “consiste em querer encerrar a realidade numa sistema coerente”, sendo que tudo que contradiz esse sistema dito coerente é afastado (MORIN apud MEYER, 1995, p. 102).

essa visão de mundo seja chamada de campo hermenêutico [grifo do autor] (2010, p. 50). Como observa Gumbrecht (2010, p. 62), “o papel do observador, surgido no início da era moderna como elemento-chave do campo hermenêutico, era apenas encontrar a distância apropriada em relação aos objetos”, o que teria permitido ao sujeito a percepção das muitas possibilidades de olhar um mesmo objeto. Fato que, segundo o autor, destruiria a crença nos objetos de referência, afastando o observador da relação tangível com o mundo. As implicações da interpretação, da valorização do que a coisa representa e não do que a coisa é (ou poderia ser), encontram reverberação nesse contexto de distanciamento da referência material das coisas.

Gumbrecht (2010, p. 62) apresenta então um observador de segunda ordem, “que haveria de dar forma à epistemologia do séc. XIX” como “um observador condenado, mais que privilegiado a observar a si mesmo no ato da observação”. Este, por sua vez, redescobriria “o corpo humano e os sentidos como parte integral de qualquer observação de mundo”. A experiência presencial na arte, do modo que pretendo contemplar nesta dissertação, tem argumentos no contexto relacional entre o ver/sentir o que existe no ambiente, que implica também perceber-se no ato de apreensão.

Ao tratar da arte da presença como experiência de produção, e trânsito de afetos e afecções, esta apreensão do mundo pelos sentidos, pelo contato, aparece como potência na relação entre o artista e público. As vivências com os artistas pesquisadores dos grupos Cena 11, La Pocha Nostra e AND Lab, que serão relatadas ao longo desta dissertação, são exemplos bastante consistentes dessa abordagem do corpo em relação, o que me permitiu conexões acerca da presença que parecem se distanciar, cada vez mais, de uma cultura da interpretação, em favor da emergência de afetos e afecções no ato tangível do encontro entre artista e público. 2.5 PRESENÇA TANGÍVEL E(M) RELAÇÃO

Em seus escritos, Gumbrecht (2010, p. 81) propõe “reestabelecer contato com as coisas do mundo fora do paradigma sujeito-objeto (ou numa versão modificada desse paradigma) tentando evitar a interpretação”.

O autor afirma que a metafísica “atribui ao sentido dos fenômenos um valor mais elevado do que à sua presença material” (2010, p. 14). Deste modo, ao produzirmos dizeres que ratificam a figura aurática do artista, ao valorizarmos a obra de arte como fruto de um tipo de conhecimento misterioso e intangível, ou que se vincula a uma genialidade, também provocamos distanciamentos entre a proposição artística, e a experiência como trânsito de afetos.

Gumbrecht (2010, p. 29) observa a possibilidade de contaminação pela vivência partindo da discussão evocada por Walter Benjamin, afirmando uma obra que “celebra o toque físico imediato dos objetos culturais”, ao invés de tentar ser filosófica. Benjamin (1987) observa a perda da aura na produção moderna, que ocorre diante do desenvolvimento de tecnologias de reprodução. Com essa mudança, valores atribuídos à exclusividade da feitura manual, por exemplo, se perdem, pois a obra poderia ser reproduzida infinitamente, de modo a comprometer até a noção de autoria59. Diante desse fato, que reações seriam possíveis aos

artistas de modo a se configurarem novos parâmetros de relação entre arte e público? A noção de aura como uma atribuição misteriosa, e a do artista como uma figura aurática, já não parece ser o que determina a potência relacional de um trabalho artístico na contemporaneidade.

Essa situação da produção artística na modernidade, conforme foi exposto por Benjamin (1987), põe em xeque algumas verdades institucionalizadas nas relações que atribuem juízo de valor à arte, o que já no início do século XX começa a ser questionado com as mudanças na produção pelos artistas de vanguarda. O próprio esquema de atribuir juízo de valor aos trabalhos, determinando o que é ou não obra de arte, ganha fissuras no posicionamento de artistas como Marcel Duchamp60.

No teatro, a exacerbação da figura aurática do artista, do conceito de

59 A aura é definida pelo autor como atribuições vinculadas à singularidade de uma figura, composta de elementos espaciais e temporais, e que conservam um caráter misterioso. Benjamin (1987) constata que a reprodução não consegue manter um elemento importante da obra de arte: o aqui-agora, que lhe confere autenticidade, e que tem o caráter de permitir que a obra se refaça historicamente a cada novo ambiente.

60 Marcel Duchamp foi um pintor, escultor e poeta francês inventor dos ready made que se descreve pela utilização de objetos industrializados como estratégia de produção na arte conceitual.

dilatação e de presença nesse âmbito impositivo, destoam de um movimento em favor da aproximação dos aspectos sensoriais da relação entre artista e público.

Simon O’Sullivan (2011, p. 10) convida a olhar a arte e seu poder estético – relacionado às sensações –, em um sentido imanente à noção de afeto, questionando: “qual a natureza dos afetos que a arte vem produzindo?”. A partir de uma leitura de Espinosa, que traz o afeto como o efeito que outro corpo tem sobre o meu corpo – e neste aspecto o objeto artístico poderia ser inserido –, O’Sullivan afirma que os afetos não têm relação com “conhecimento e significado”, uma vez que ambos ocorrem “em um registro diferente, asignificante”[grifo do autor][tradução minha]61.

Aparentemente, há uma radicalidade na abordagem da noção de afeto, em favor do distanciamento do significado. Parece-me apropriado pontuar, nessa discussão, que a relação corpo-mente ocorre em um nível de complexidade e de interdependência que não se sustenta na divisão entre essas dimensões. No ato de supervalorizar as atribuições do corpo em percepções que descartam as atribuições da mente – como se fosse possível perceber somente por uma parte desse corpo –, nos arriscamos a criar outra dicotomia. Para Espinosa, à razão seria atribuída uma capacidade de mediar os efeitos dos afetos. Jaquet (2011) esclare a proposição de Espinosa (1992) expondo que os afetos ativos seriam as ações, e os passivos seriam as paixões. De acordo com Jaquet (2011, p. 94), Espinosa oferece uma visão mais unificada do homem, ao reconhecer que os afetos ativos e passivos incorrem em uma espécie de negociação entre essas duas atribuições: “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes”.

Para O’Sullivan (2011, p. 17), a função da arte estaria em “mudar nosso registro intensivo, reconectar-nos com o mundo” [tradução minha] 62. Se considerarmos que uma das principais características da

experiência artística é a possibilidade de alteração do nosso modo de perceber o mundo, e de nos percebermos nele, a ocorrência do afeto desvinculada de estruturas fixas de significados – que cerceiam as

61 “[...] los afectos no tienen nada que ver com el conocimiento y el significado, en tanto ellos ocurren en un registro diferente, asignificante”.

possibilidades de invenção de mundo –, parece pertinente. Na arte, a subversão de convenções preestabelecidas pode ser também uma possibilidade relacional.

Icle (2011, p. 19) pondera que: “dar significado ao mundo e às coisas do mundo não é suficiente para compreender a experiência da presença, o ritmo que move e anima corpos em ação durante uma performance”. Como ignorar a presença tangível, os corpos vivos, em movimento, no teatro ou na dança? A noção de presença que Gumbrecht (2010, p. 9) aborda está relacionada com “o que ocupa lugar no espaço, com o que é tangível aos corpos, e não apreensível por uma relação de sentido”. A produção de presença, nestes termos, liga-se aos eventos e processos capazes de intensificar o impacto dos objetos presentes sobre corpos (GUMBRECHT, 2010). Poderia então a presença tangível, que Gumbrecht (2010) pleiteia, se configurar na arte a partir da proposição do sujeito da experiência de Bondía?

O ato de estar aberto às conexões com as coisas do mundo se sustentaria, neste contexto, em um estado de escuta, um estado que permitiria ao artista uma visão menos parcial e contaminada de conceitos previamente construídos, que definem como as coisas são, uma vez que ao nos apegarmos às atribuições de significado, não permitimos que as coisas (e o mundo) sejam percebidas (os) de outro modo. Esse estado de escuta se aproxima do ato de re-parar, abordados por João Fiadeiro e Fernanda Eugénio (2012), o que implica na observação atenta ao devir nas proposições relacionais entre pessoa, objeto e ação, em um jogo que se alimenta na geração e na gestão de afetos63. A relação nas artes

presenciais poderia ser compreendida como compartilhamento, nessa experiência do encontro que pode, por sua vez, provocar transformações nos corpos envolvidos, configurando o acontecimento.

Neste primeiro capítulo o leitor pôde observar a tentativa de traçar uma espécie de itinerário para a compreensão de alguns termos recorrentes nesta dissertação. Tal iniciativa se sustenta no desejo de aproximação com uma noção de presença relacional. Para isso, foram expostas algumas proposições de Espinosa sobre afeto; de Benjamin

63 No quarto capítulo desta dissertação as questões trazidas por Fernanda Eugénio e João Fiadeiro serão ampliadas.

sobre experiência; de Dewey sobre experiência na arte; de Bondía sobre o sujeito da experiência e o refinamento da escuta; de Deleuze sobre sentido; e de Gumbrecht sobre presença tangível.

Imagem 7 - Anotações a partir de leituras do livro Produção de Presença de Gumbrecht do dia 29 /04/2013.

3 IMINÊNCIAS DO CORPOMENTE NA ARTE: PISTAS PARA