• Nenhum resultado encontrado

PARTICIPAÇÃO, GOVERNAÇÃO E INCLUSÃO: OS CONTRIBUTOS DA

REDE DE CIDADES SAUDÁVEIS NO

DOMÍNIO DA SAÚDE E DO TRABALHO

Paulo Nuno Nossa Assistimos a uma mudança sem precedentes nas estruturas demográficas regionais, convergindo para um estadio de envelhecimento que paulatinamente se instala em diferentes regiões do globo (Figura 1). Na generalidade das sociedades desenvolvidas, o aumento progressivo da longevidade é alcançado, em simultâneo, pela consolidação de um perfil de baixa fertilidade, marcado por um Índice Sintético de Fecundidade (ISF) inferior ao necessário para assegurar a substituição de gerações (2,1) o que, sem se considerarem outras alternativas, como por exemplo “imigração de substituição”, ditará não só uma demografia progressivamente mais envelhecida mas também uma diminuição absoluta de efetivos populacionais.

124

Este cenário de envelhecimento consolidado está para além da transição demográfica clássica que a precedeu. No final da década de 1980, autores como Lesthaege; van de Kaa (1986) caracterizaram aquilo que ficou conhecido por Segunda Transição Demográfica (STD), um processo ocorrido nas sociedades desenvolvidas a partir da década de 1970, marcado por um drástico e estrutural declínio da fecundidade (baby bust), aumento consistente da esperança de vida, associada a uma nova e diversa valoração social da conjugalidade, marcada pelo adiamento sistemático do casamento e, em alguns casos, com uma deliberada desvalorização da paternidade, assumindo os diversos arranjos conjugais uma progressiva autonomização face à função reprodutiva, exaltando a relação celebrada entre o par ou sequência de pares:

Figura 1 – Perspetiva temporal associada ao aumento do envelhecimento demográfico (≥ 60 anos).

Fonte: NIH; NIH;WHO (2011).

A motivação para a paternidade é a autorrealização do adulto e a sua escolha corresponde apenas a um estilo de vida particular em concorrência com vários outros. O elemento altruísta com foco na prole não desapareceu, mas a relação da díade do adulto

125

ganhou maior proeminência. (LESTHAEGHE, 2014, p. 18112).

Este contexto, socialmente menos prescritivo e mais valorizador da independência dos sujeitos, suportado por uma crescente secularização e afirmação simétrica de direitos, não só acompanha quantitativamente a maior expressão do envelhecimento, mas também nos alerta para aspetos qualitativos inerentes a uma “nova senioridade” que, progressivamente, ganha relevância demográfica e financeira. Tendencialmente, nas sociedades desenvolvidas, estes “novos idosos” são mais instruídos e mais tolerantes, menos preocupados com a sua sobrevivência material, mercê da proteção até aqui provida pelo Estado Social. São mais conscientes dos seus direitos, socialmente mais exigentes e tendencialmente mais participativos, podendo assumir diferentes estilos de vida ao longo do seu percurso, aspirando dilatar no tempo os seus níveis de autonomia (residencial e relacional) e de privacidade conjugal (LESTHAEGHE, 2014), também percetíveis na assunção de novas formas familiares que podem ir desde a família nuclear às famílias monoparentais, ou ainda indivíduos que vivem sós e que, apesar desta sua condição de mono-residentes, podem manter relações de conjugalidade – é o caso das partes que vivem em casas separadas, os chamados LAT (Living

Apart Together).

O atual aumento do envelhecimento demográfico, embora não ocorra exclusivamente em contexto urbano, acompanha o crescente ritmo da urbanização da população mundial. Pela primeira vez na história da humanidade, mais de metade da população mundial vive em áreas urbanas (54%, 2014), uma proporção que se estima venha a

126

aumentar para 66%, em 2050, crescendo a um ritmo de 1,84% ao ano até 2020 (WHO, 2016).

Dados disponibilizados pela OCDE (2015) informam que no período 2001-2011 o número de idosos (65+ anos) aumentou em todos os países que compõem a organização, evidenciando um crescimento mais significativo nas áreas metropolitanas 23,8%, face aos 18,2% observados nos restantes territórios ainda que, em termos médios, a presença de idosos seja ligeiramente menor nos centros urbanos propriamente ditos (14,5%) quando comparados com áreas mais periféricas (15,6%), não sendo, todavia, esta distribuição regionalmente homogénea (Figura 2).

Figura 2 – Evolução dos grupos funcionais da população (< 5 anos, 65+ anos).

127 O aumento estrutural do envelhecimento coloca às sociedades desafios específicos e urgentes em diversos domínios, entre os quais no domínio da saúde e da atividade laboral, merecendo uma abordagem diferenciada e inteligente em termos de políticas públicas. Desejavelmente, as populações mais idosas devem ter condições para acederem a programas promotores de saúde e bem-estar que lhes permitam a manutenção de uma vida saudável e ativa, satisfatoriamente inseridas no ambiente físico e social onde escolheram viver, ao mesmo tempo que registam evidência favorável da sua inclusão e participação.

Ao longo deste texto abordaremos a emergência e aplicação de alguns conceitos e políticas orientados para a persecução de um envelhecimento ativo, optimizador das condições de saúde e de participação dos mais idosos e que passam por uma alteração dos paradigmas de gestão da saúde, a par de uma (re)definição do paradigma laboral e das culturas organizacionais subjacentes ao trabalho. Discutir- se-ão estratégias de governação em saúde, mais participativas e inclusivas para com os mais idosos, também estimuladas pelo projeto europeu Cidades Saudáveis (1988) que, desde a sua Fase V (2008-2012), têm como um dos principais alvos a colaboração na construção do conceito de uma cidade amiga dos idosos (Age-friendly Cities), observando e sublinhando o envelhecimento como um “triunfo civilizacional”, reclamando responsabilidade política na criação de ambientes favoráveis para os idosos (JACKISCH et al., 2015), parceiros válidos na comunidade local, nas famílias e na sociedade em geral (WHO, 2015).

128

Tomando como referência os países desenvolvidos, desde o final da década de 1980 que se confirma a transição das condições de saúde, materializadas pela consolidação da transição epidemiológica na sua fase mais evoluída (fase IV), marcada pela importância crescente da gestão da cronicidade da doença, associada ao adiamento da progressão de patologias degenerativas e pelo aumento das patologias sociais [acidentes, suicídios, homicídios] (OLSHANSKY; AULT, 1986), o que implicaria significativas mudanças na resposta social organizada (Figura 3).

Figura 3- Principais causas de morte em países com elevado rendimento (2012, óbitos 100.000 hab.).

Fonte: WHO, 2014.

Compreende-se a ênfase dada à criação, promoção e manutenção de contextos de saúde, principalmente em territórios urbanos, tanto mais que se reconhece que as determinantes estruturais

129 das desigualdades em saúde congregam fatores individuais (posição social, educação, ocupação, rendimento), bem como fatores de contexto os quais nos interessa discutir: políticas públicas para a saúde, políticas de mercado de trabalho vigentes e o impacto que umas e outras detêm na construção de ambientes favoráveis à saúde.

O crescimento urbano e a dinâmica epidemiológica subjacente à industrialização e pós- industrialização, foram mutuamente condicionados pelas sucessivas vagas de crescimento económico e mutação tecnológica que, de um modo continuo, têm moldado a demografia e epidemiologia urbana, colocando novos desafios à gestão da saúde pública. Assim, era natural que até ao século XIX os departamentos de saúde pública detivessem ampla autoridade na gestão das cidades, não havendo tradição de uma gestão da saúde apartada da restante gestão territorial. Por exemplo, o Conselho de Saúde de Nova Iorque, em 1849, dispunha de amplos poderes “para fazer ou fazer com que fosse feito qualquer coisa que no seu entender, pudesse ser adequada para preservar a saúde da cidade “ (ROSENBERG, 1962

apud WHO, 2012, p. 39). A perceção das vantagens

decorrentes de uma atuação integrada no domínio da saúde também esteve presente na Alemanha até meados do século XX, onde o Ministério Federal da Saúde só emerge como pasta autónoma em 1961, passando posteriormente por uma série de mudanças necessárias para garantir uma abordagem integradora no domínio da juventude, da família e das mulheres, assumindo-se novamente como pasta ministerial separada em 1991 (WHO, 2012).

Reconhecendo a necessidade de uma gestão integrada das questões de saúde, associadas ao

130

benefício da persecução deste objetivo, privilegiando as comunidades em detrimento da abordagem individual, compreendendo e interpretando os contextos locais, a Carta de Ottawa (1986) assumiu que a defesa e promoção da saúde das pessoas deveria ser orientada para o contexto de vida quotidiana, indicando 5 áreas indispensáveis para a construção de políticas públicas saudáveis: promover uma política pública a favor da saúde; criar condições favoráveis; fortalecer a participação da comunidade; melhorar a capacidade individual; reorientar os serviços de saúde. Posteriormente, as recomendações presentes na Declaração de Adelaide (WHO, 1988) estimularam esta perspetiva integradora: “Políticas públicas de saúde são caracterizadas por uma preocupação explícita pela saúde e pela equidade em todos as áreas das políticas e por uma prestação de contas (accountability) no impacto na saúde”.

Ao enfatizar-se a importância de atuações concertadas no domínio da saúde, de modo a que se ganhasse eficiência e eficácia, estimulou-se a emergência de formas de governação inovadoras na gestão e promoção da saúde, reintroduzido o lugar como uma categoria fundamental nas políticas públicas. Como evidenciado noutros textos, o projeto europeu das Cidades Saudáveis (CS, 1987) concretiza este desafio e, de algum modo, retoma a prática de uma gestão holística da cidade e da sua responsabilidade na prossecução das condições de saúde e de inclusão, sublinhando a importância da ação local e das ligações que a gestão e promoção da saúde detêm com o planeamento urbano, zoneamento, construção/adequação de espaços verdes, habitação, transportes, entre outros (MARQUES DA COSTA, 2013). Como sublinha Tsouros (2000), subjacente ao conceito de Cidade Saudável está um processo

131 aspiracional, dinâmico e inacabado uma vez que, uma Cidade Saudável não é aquela que alcançou um nível de saúde específico, mas sim a cidade que, consciente do seu nível de saúde, desenvolve esforços para melhorar de um modo contínuo. Takano (2003) reforça esta perspetiva enfatizando as vantagens de uma integração de políticas responsabilizadoras desta ação à escala local:

O princípio das Cidades Saudáveis está a ser desenvolvido como um pilar fundamental para o avanço da saúde dos habitantes das cidades, principalmente à escala municipal, assegurando a incorporação dos aspetos relacionados com a saúde em todas as políticas e obras da cidade, incluindo os níveis de desenvolvimento, planeamento e gestão urbana; i.e., como uma estrutura municipal para apoiar a saúde dos munícipes… (TAKANO, 2003, p. 6. Tradução livre).

Através das diferentes fases de desenvolvimento deste projeto, é possível observar uma elaboração ambiciosa, mas atenta, das necessidades de saúde dos residentes urbanos, tendo em conta as mutações demográficas associadas ao crescente envelhecimento. Neste contexto, deve sublinhar-se o compromisso plasmado na fase IV do projeto, onde emerge a adesão para com estratégias promotoras de saúde e de bem- estar, tendo em linha de conta a consolidação das principais características da STD, criando condições para um envelhecimento saudável (healthy ageing):

Gerar um compromisso político forte e local, introduzindo políticas e processos de planeamento que garantam uma abordagem holística e equilibrada para o desenvolvimento de saúde, cuidados e necessidades das pessoas idosas. (WHO, 2003, sp. Tradução livre).

132

Perante a prevalência do envelhecimento demográfico à escala local e regional, mais impactante em meios urbanos, impõem-se uma abordagem específica e dedicada às necessidades dos mais velhos, como fica explícito nos três temas chave desenvolvidos na Fase V (2009-2013): 1- Criação de ambientes de prestação de cuidados e de apoio; 2- Vida saudável; 3- Ambiente e desenho urbano saudável. De um modo particular, dentro do Eixo 1, os objetivos específicos traçados sublinham a necessidade de se alcançarem ambientes que, intencionalmente, promovam práticas inclusivas nos diversos domínios, enfatizando a necessidade de se programarem e operacionalizarem respostas que abranjam as necessidades e expetativas de todos os sujeitos, particularmente dos grupos que sucessivamente evidenciam vulnerabilidade, como são os mais jovens e os mais idosos:

• Melhorar os resultados em saúde para todas as crianças: providenciar cuidados precoces a todas as crianças com o objetivo sistemático de melhorar as suas vidas; Investir no desenvolvimento precoce na infância é uma das melhores maneiras de reduzir a desigualdade em saúde;

• Cidades amigas das pessoas idosas: introduzir políticas e planos de ação holísticos que abordem as necessidades de saúde dos idosos, enfatizando a sua participação, capacitação e autonomia (living independent), ambientes físicos e sociais de apoio seguros e acessíveis (WHO, 2009).

133

INCLUSÃO E PARTICIPAÇÃO DA PESSOA