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Pessoal policial enquanto cidadão Afinal, duas ou a mesma realidade?

12.10 A nossa posição: participação cívica e política do elemento policial

12.10.1 Pessoal policial enquanto cidadão Afinal, duas ou a mesma realidade?

Aristóteles, ainda antes da era de Cristo, levantou a dúvida de saber se, uma vez determinadas as funções ou profissões indispensáveis à subsistência de uma Cidade226, ou de uma sociedade política, estas deveriam ser desempenhadas, indiferentemente, por todos, se deveria acontecer que todos fossem simultaneamente artistas, militares, membros da Assembleia ou Juízes, ou se, por outo lado, seria mais conveniente especializar cada um, ou ainda, deixar certas tarefas comuns, enquanto as demais serem próprias de determinadas personalidades. A tal dúvida, o próprio autor apresenta respostas possíveis, mas tão ambíguas quanto a essência da questão: “o problema não é tratado de uma maneira uniforme em todos os governos”. O mesmo autor acrescenta ainda que é desta diferença que provém a distinção das formas de governo. Se nas democracias todos têm acesso a todas, sem exceção, nas oligarquias sucede o inverso227.

Não deixará de ser curioso, que já à época, embora prevalecessem as rudes separações entre os cidadãos e os escravos, e entre aqueles e os trabalhadores mecânicos ou do comércio (com o argumento de que para servir a sociedade civil seria indispensável usar do tempo livre, que naqueles casos era consumido na sua maioria pelo desempenho do seu ofício, e por se tratarem de trabalhos considerados não virtuosos), o autor defendia que os homens da guerra, os membros do Conselho, que deliberavam acerca do interesse público, e os juízes, que se pronunciavam acerca do direito, constituíam os principais membros do Estado.

Vejamos que ao longo do curso da História, as primeiras formas conhecidas de polícia, ou da função policial, eram desempenhadas pela própria pessoa, ainda mesmo de ser considerada cidadã. Se sabemos já o que se entende por polícia, lato sensu, verificamos que assenta a definição essencialmente num conceito de segurança e bem-estar. Ora, nas sociedades primitivas, a segurança de cada um dependia, em primeira instância de cada um na sua singularidade. Cada cidadão tinha que se defender a si próprio, na ausência de magistrados ou de um exército, como passou a verificar-se nas sociedades políticas. Como nos revela Aristóteles228 os homens reuniram-se em sociedade, “não unicamente para viverem em conjunto, mas sim para bem viverem em conjunto”. Mas mesmo após a evidência da existência de sociedades políticas, Aristóteles considera que os homens que as constituíam,

226 A saber, 1º víveres, 2º artes e ofícios, 3º Armas, 4º Numerário, 5ºMinistros e 6º Conselhos e Tribunais. 227 Cfr. Aristóteles, op. cit., pp. 74 e ss.

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quando geograficamente maios distantes entre si “fizeram o contrato de não se prejudicarem uns aos outros nas suas relações e até de pegarem em armas para a defesa mútua”. Com esta demonstração, pretendemos apenas realçar que, na sua génese, aos homens encarregados pela segurança e bem-estar não estava vedada qualquer direito de cidadania, ou seja, desde juízes, a magistrados, ou homens de segurança, todos eram cidadãos de uma sociedade de pleno direito, todos dispunham da mesma capacidade interventiva.

Por seu turno, Cícero era claro nas suas palavras, reiterando que se a lei é o vínculo da sociedade civil e o direito igual para todos, “de que forma pode a sociedade dos cidadãos ser mantida se não é semelhante a condição dos cidadãos? Se de facto não convém igualar a fortuna de cada um, se não pode ser semelhante o talento de todos, pelo menos devem ser semelhantes entre si os direitos daqueles que são cidadãos do mesmo Estado. o que é de facto uma cidade senão uma sociedade de direito dos cidadãos?”229

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No que concernia à divisão ou acumulação de funções, Aristóteles defendia, claramente, que deveriam confiar-se funções distintas a pessoas diversas. No entanto, ressalvava que era de todo conveniente que essas funções fossem transmitidas a uns e outros em função do tempo, ou seja, considerava que “não podem continuar sempre numa situação de dependência pessoas que são senhoras de usar a força ou de impedir que a usem contra elas, porque pertence ao poder militar conservar o Estado ou derrubá-lo”. O autor entendia, assim, que a única boa alternativa seria confiar as duas partes do governo aos mesmos indivíduos, não ao mesmo tempo, mas em épocas diversas, de acordo com o seu mérito. “Em primeiro lugar, o comando da força militar, para defender o Estado; em segundo lugar, na idade madura, a autoridade para o governar”. Aristóteles considera que uma distribuição deste género, não só respeita os ditames da natureza, como concorre para a dignidade do Estado.

Aristóteles vai mais longe ainda, e diz que a ordem pública (a qual se divide entre deliberação sobre os negócios do Estado e julgamento das contestações privadas) “seja devidamente administrada, tornam-se necessárias pessoas versadas o direito e na política”. Para este autor, “parece, e é mesmo opinião de muitas pessoas, que várias destas funções são compatíveis; que se pode, por exemplo, ser simultaneamente soldado e trabalhador ou artista, e que a mesma pessoa pode, da mesma forma, ser Conselheiro de Estado, Senador e Juiz” 230.

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Marco Túlio Cícero, op. cit., p. 104.

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Como refere Miguel Morgado no comentário aos Dois Tratados do Governo Civil, de Locke, “quando estamos perante uma pluralidade de alternativas é que muitos fenómenos (…) se revelam como o que verdadeiramente são”231

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E Locke aperfeiçoa o dito, referindo que “tudo o que for reconhecidamente benéfico para a sociedade e para o povo em geral, de forma justa e duradoura, encontrará sempre a sua justificação. E quando o povo escolhe os seus representantes segundo regras justas e inegavelmente iguais, adequadas à estrutura originária do governo, não se pode duvidar de que se trata da vontade e de um ato da sociedade, independentemente de quem autorizou ou pôs em marcha o procedimento” 232.

Tal só significa que apenas depois de se dar ao polícia a capacidade de participar, de intervir, depois de analisar o resultado da sua ação, saberemos se foi verdadeiramente útil e salutar o seu contributo, ou se, pelo contrário, foi nefasto.

Se recordarmos Antunes Dias quando refere que Cidadão é aquele com capacidade para decidir, deliberar e governar e que princípio fundamental da cidadania é o poder de proporcionar às pessoas, quaisquer que sejam as suas crenças, a sua idade, o sexo, a cor de pele ou a religião, os mesmos direitos básicos233, não restarão dúvidas que, no nosso humilde entender, o elemento policial deve gozar, de pleno direito, da condição de cidadão que lhe está subjacente. Diferente consideração sobre a participação político-partidária do pessoal policial seria desfigurar tao mui nobre condição de cidadão. Antes de nascer o polícia nasceu o cidadão, e a atividade policial, enquanto atividade profissional, permite-se, quer a garantir o bem-estar da sociedade e a sua boa ordem e tranquilidade, como a garantir economicamente a subsistência dos seus funcionários.

Não deverá ser olvidado, em momento algum, que não obstante a nobreza e sensibilidade da missão policial, o seu desempenho confere uma remuneração, a qual permite ao seu trabalhador integrar-se na sociedade e desenvolver uma vida condigna consoante os seus pares. Enquanto atividade profissional não foi concebida para menosprezar ou dotar os seus membros de menores capacidades interventivas na sociedade, antes pelo contrário, confiou-lhe poderes e deveres de a proteger, com a vida se preciso for. Entendemos como total contrassenso, por um lado dar-lhe tamanha responsabilidade, e por outro, duvidar da sua condição, restringindo-lhes direitos básicos de cidadania. Não deve ser esse o espírito das leis

231 Miguel Morgado, in John Locke, op. cit., p. XIV. 232 John Locke, op. cit., p. 339.

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consagradas. Não é essa a confiança que todo um povo encerra na atuação dos homens e mulheres agentes da Polícia de Segurança Pública.