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1.3 POLÍTICAS CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA E DE INOVAÇÃO

1.3.2 Políticas Industriais na prática

Apesar de ser possível encontrar um papel teórico para o Estado, até mesmo na abordagem neoclássica, isso ignora o fato de que a intervenção do Estado nas atividades econômicas é anterior ao capitalismo em si. A rigor, isso nem seria chamado de intervenção, pois não havia tal distinção. Alguns exemplos dessas políticas no pré-capitalismo são trazidos por Lundvall e Borrás (2006). Cimoli e outros (2017) refletem questões mais contemporâneas em postura crítica a abordagem de falhas de mercado. Aqui serão discutidas políticas aplicadas no pós-guerra, que estão mais intimamente conectadas com o surgimento dos parques tecnológicos e da ideia de Estado mínimo que marcou os últimos 40 anos do debate econômico. A respeito disso, Etzkowitz e Brisolla (1999, p. 337) afirmam que “The nature,

timing and mix of interventionist policies are more important than the argument between having an industrial policy or letting the market rule” 42. Nesse sentido, há duas dimensões a

serem exploradas, a primeira trata da sua transformação ao longo do tempo, enquanto a segunda trata das diferentes contextualizações dessas políticas.

Em relação a primeira dimensão, é importante notar que é durante o período do pós- guerra que são constituídas as principais instituições supranacionais contemporâneas, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essas instituições supranacionais se tornaram “oráculos” de sugestão e difusão de políticas públicas, que objetivam crescimento econômico e estabilidade mundial (FRIEDEN, 2008). Em função disso, a discussão feita por Lundvall e Borrás (2006) acerca dos relatórios da OCDE servirá de base para a apresentação das transformações das políticas no tempo. Como destacam os autores, a OCDE teve influência crescente no debate as políticas industriais e de desenvolvimento. Essas políticas podem ser entendidas como políticas de inovação e, como lembram os autores, elas cobrem uma diversidade de iniciativas. Para ilustrar, tome os casos do Japão e da Itália no pós-guerra. Ambos realizaram o desejado catching-up com as economias desenvolvidas. O caso do Japão é o mais notório e discutido, pois seu ponto de partida era ainda inferior ao italiano. Além disso, o seu desenvolvimento chegou a rivalizar tecnologicamente com os EUA, no final da década de 1980. Detalhando um pouco mais, percebe-se que, diferente do caso italiano, o Japão desenvolveu, além de uma indústria de base, uma nascente indústria de semicondutores, automóveis e eletrônicos, que foram setores dominantes da economia global na segunda metade do século XX. Como ressaltam Cimoli e outros (2017), uma série de políticas intervencionistas fortaleceram a consolidação do CNI japonês e o seu êxito influenciou o leque de políticas sugeridas por entidades supranacionais e lideranças locais mundo afora.

Lundvall e Borrás (2006, p. 602) separam três grandes grupos distintos de políticas, detalhados no Quadro 2. Os autores destacam que essa distinção não implica uma cronologia rígida, pois diferentes composições dessas políticas teriam sido adotadas pelos países ao longo dos anos. Apesar disso, a discussão dos autores remete a uma mudança no entendimento de quais deveriam ser o enfoque de políticas industriais ao longo do tempo.

42 Tradução própria: “A natureza, a precisão e o conjunto de políticas intervencionistas são mais importantes do que a argumentação entre ter uma política industrial ou deixar a lei do mercado.”

Quadro 2 - Política científica, tecnológica e de inovação

Fonte: Baseado em Lundvall e Borrás (2006, p. 628)

Para contextualizar essas diferentes abordagens de políticas industriais, Lundvall e Borrás (2006) analisaram relatórios da OCDE, de 1963 até 2001, em especial aqueles contendo os discursos organizados pelo secretariado nas reuniões da instituição. Segundo os autores, embora esses discursos não contenham sentido prático para os países, trazem consigo a reflexão de novas ideias. Assim, os grupos analisados pelos autores apresentam, também, uma cronologia específica. Essa cronologia se inicia com a inserção da política científica como um dos objetivos econômicos. Na discussão é destacado o posicionamento inicial pró- ciência do relatório da OCDE, de 1963, um esforço que parece querer reproduzir o sucesso americano. Para ilustrar, Teece (2010) destaca que, nos EUA, os principais laboratórios de pesquisa já estavam presentes no final do século XIX e, embora fossem menos de três mil, em 1930, passavam de 30 mil depois de 1940. Como lembra Teece (2010), no período pós- guerra, havia um consenso em torno de projetos “empurrados” pela ciência. Para Lundvall e Borrás (2006), contribuiu para essa consonância o contexto mundial do pós-guerra e de Guerra Fria. Os autores ressaltam que os objetivos dessas políticas científicas misturavam objetivos econômicos, prestígio nacional, cultural, valores sociais e segurança nacional. São destacados dois importantes debates: o primeiro era sobre o quanto de progresso científico representaria o progresso geral; enquanto o segundo discutia qual o grau de obediência da ciência ao Estado, ou ao capital, ou, ainda, se ela deveria ser totalmente autônoma. A

demanda por autonomia acadêmica seria necessária devido ao valor de longo prazo da pesquisa básica, e nela poderiam ser desbravadas novas fronteiras tecnológicas. Ao mesmo tempo, uma ciência crítica seria um importante elemento da democracia moderna, enquanto outra questão fundamental seria se uma “boa pesquisa sempre será uma pesquisa útil?” (LUNDVALL; BORRÁS, 2006, p. 607)

Entrando na década de 1970, esses objetivos se moldam para a necessidade de envolver os cidadãos com as novas tecnologias. Lundvall e Borrás (2006) ressaltam o início de uma preocupação com um otimismo acrítico com a ciência. Sob um contexto de desaceleração econômica e insatisfações sociais e ambientais, o relatório da OCDE, de 1970, começava a se desprender da ciência e migrava na direção da tecnologia, objetivando processos de mudança técnica (LUNDVALL; BORRÁS, 2006). Assim, o esforço científico, por si só, não era mais suficiente, precisava ser direcionado. As políticas tecnológicas eram atreladas a setores, em especial os baseados em ciência: energia nuclear, tecnologia espacial, computadores, farmacêutico e engenharia genética. A ideia que se formava era que novas tecnologias abriam novas oportunidades de rápido crescimento. O que, para os autores, era alimentado por um infinito de possibilidades trazidas da ficção (científica). Nesse contexto, a produção de tecnologias (fronteira tecnológica) deveria ser feita pelos países desenvolvidos, enquanto os países em desenvolvimento fariam o esforço de alcançá-los.

Technology policy means different things for catching-up countries than it does for high-income countries, the focus will be on establishing a capacity in producing the most recent Science-Based Technologies, as well as applying these innovations. In smaller countries it might be a question about being able to absorb and use technologies as they come on the market. (LUNDVALL; BORRÁS, 2006, p. 608) 43.

Os autores também lembram que políticas comuns optavam pela definição de tecnologias estratégicas, ideia que estaria relacionada com dois alunos de Schumpeter: Perroux e Hirschman. Além disso, a Guerra Fria teria servido de motivação para a difusão de políticas tecnológicas entre países europeus e do Japão. A desaceleração, iniciada em 1970, transforma-se em estagnação em 1980, com a adoção de uma política fiscal restritiva em um ambiente de desemprego. Em meio a esse contexto, o relatório da OCDE, de 1980, já abandonava a perspectiva tecnológica e focava no esforço de mudança técnica (LUNDVALL;

43 Tradução própria: “Política tecnológica tem diferentes significados para países em desenvolvimento do que para os países de renda elevada. Para esses, o foco será no estabelecimento da capacidade de produzir tecnologias baseadas nos avanços mais recentes da ciência, bem como aplicar essas inovações. Em países menores pode se questionar se são capazes de absorver e utilizar as tecnologias que chegam ao mercado.”

BORRÁS, 2005). Teece (2010) ressalta que houve uma frustração com os resultados da ciência nos anos de 1980 e 1990, e que isso teria sido consequência do aumento da competição global ocorrida a partir de 1970. Ou seja, o estímulo ao progresso científico aumentou a competição a nível global, diminuindo os retornos sobre o investimento em ciência. Teece (2010) também destaca a baixa velocidade de conversão dos produtos e a apropriação de tecnologias por parte dos concorrentes, como motivações adicionais para a “descrença” na ciência. Como lembra o autor, nos anos 1980 e 1990, se estabelece uma nova forma de organização da pesquisa. As grandes empresas descentralizaram o esforço de pesquisa, estabelecendo diversas alianças para agilizar processos. Em alguns casos, delegando a produção da pesquisa básica para as universidades.

Em 1990, o relatório da OCDE já trazia como objetivo principal a inovação e focava na importância das instituições para o seu desenvolvimento (LUNDVALL; BORRÁS, 2006). Lundvall e Borrás (2006) destacam uma divisão de abordagens bastante familiar aos economistas: de um lado havia o posicionamento em favor do livre mercado, com a manutenção da concorrência e de investimentos públicos restritos a educação e regulamentação; do outro, uma visão sobre as condições estruturais que focava em setores e tecnologias específicas. Outra forma de denominar essa visão sobre as condições estruturais é através dos sistemas de inovação, que começavam a ser difundidos e, mesmo, aceitos nas instituições supranacionais.

Encerrando a leitura dos relatórios da OCDE, os autores destacam que o surgimento de uma “nova economia” 44 foi interpretada como de potencial para promover mudanças

estruturais nas formas de produção e de organização da sociedade, a partir das novas tecnologias, do computador pessoal e da internet. Segundo os autores, essa foi uma das motivações para a ampla aceitação do conceito de inovação no círculo teórico dos economistas e do fim do constrangimento para lidar com ele 45, ao menos do ponto de vista mais ortodoxo.

Em complemento a essa composição histórica, tratando da dimensão contextual, existem as diferenças presentes em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Mesmo entre países desenvolvidos, há diferenças na adoção das políticas. Bianchi e Labory (2006) apontam que as políticas antitruste na Europa e nos EUA diferem, devido a características geográficas. Enquanto a Europa sofreu um processo de otimização de recursos escassos, nos EUA isso não

44 Apontada por Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve (FED) à época. 45 Esse comentário acerca do constrangimento é uma adição própria.

foi necessário. O crescimento americano foi impulsionado pelo livre empreendedorismo, compondo diferentes formas organizacionais. Isso favoreceu a concentração em setores cruciais e inibiu a atuação governamental contra monopólios, pois essa ação era contrária à cultura do livre empreendedor. As primeiras ações de combate ao monopólio foram tomadas somente em 1890, seguida de outras ações em 1914, 1930 e 1950. Os autores defendem que as normas antitruste acabaram, não só, evitando monopólios, mas, também, orientaram o crescimento das grandes empresas americanas. Respectivamente, induzindo a fusão em empresas nacionais, com o ato de 1914, a criação de conglomerados com diversos campos de atuação, no ato de 1930, e a internacionalização, no ato de 1950, para evitar que o poder no mercado local pudesse ser visto como ação monopolística. Também é enfatizado pelos autores que as políticas antitruste americanas foram acompanhadas de políticas de “sustentação de demanda” pública para uso civil ou militar, especialmente em áreas de forte inovação tecnológica. O setor financeiro teria atuado como ambiente de seleção das iniciativas empreendedoras (BIANCHI; LABORY, 2006, p. 7–8).

Na Europa, as políticas antitrustes eram antagônicas as aplicadas nos EUA, pois os mercados nacionais não eram grandes o suficiente para garantir eficiência (escala), o que tornava a competição do interesse nacional – levando às políticas de campeões nacionais. Nesse sentido, os autores destacam uma forte atuação de governos europeus na indução da industrialização, bem como na adoção de campeões nacionais no pós-guerra, de maneira a competir com a ameaça representada pelas multinacionais americanas. Nesse sentido, a política industrial europeia foi contrária à americana, onde a prática monopolística seria um “crime” per se 46 (BIANCHI; LABORY, 2006, p. 11).

Um argumento a ser levantado aqui é que as políticas industriais pouco se valeram de uma justificativa teórica para a sua aplicação. Ou melhor, valeram-se da discussão teórica disponível para dar caráter técnico a um interesse objetivo. Esse interesse variou ao longo do tempo, a depender dos atores e das demandas existentes no período. Relaciona-se com isso, a dicotomia entre muito Estado e pouco Estado que, como referenciado em diversos autores no início da discussão, pouco importa para uma política efetiva. Uma provocação interessante seria se é possível fazer essa distinção entre Estado e setor privado.