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CAPÍTULO I- SAÚDE E DESCENTRALIZAÇÃO DE SERVIÇOS EM TERRITÓRIOS

4. Políticas públicas no âmbito da saúde

O desenvolvimento das políticas sociais ao nível local produz possibilidades inovadoras na gestão pública que permitem consolidar a democracia. Entende-se por políticas sociais um conjunto de medidas sociais e económicas implementadas de acordo com a conjuntura económica do país, visando a proteção social e o melhoramento das condições de vida, nos domínios da saúde, educação, segurança social, emprego e habitação (Menezes, 2010). A proteção social é considerada um compromisso coletivo, de forma a que as necessidades dos membros de uma comunidade sejam asseguradas (Rodrigues, 1995, cit. in Rodrigues, Samagaio, Ferreira, Mendes, & Januário, 1999). Na área da saúde, as políticas públicas expressam a capacidade do Estado em assumir o respeito pelo direito à proteção da saúde da sua população (Guerra, 2016).

As políticas sociais na saúde são um conjunto de medidas sociais, económicas, e políticas implementadas num determinado território pelo governo, que tem como objetivo principal atenuar no âmbito de forma a possibilitar o acesso à saúde por todos os indivíduos independentemente da capacidade contributiva, atenuando, assim, eventuais situações de injustiça e desigualdade (Costa, 2014).

A partir dos finais do século XIX, a área da saúde sofreu progressos significativos devido ao avanço da medicina através da implicação do Estado na proteção da saúde pública (Guerra, 2016). Neste contexto, surgiu em diversos países a primeira fase de organização dos sistemas de saúde, assente numa lógica de prevenção, diagnóstico, tratamento, vigilância e cuidados de reabilitação. Esta nova lógica de atuação profissional privilegiava não somente o tratamento médico, como também a influência dos serviços sociais e educativos (Guerra, 2016). A organização e implementação dos sistemas de saúde em vários países ganharam maior relevância, com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 1948, e a criação da OMS no mesmo ano (Guerra, 2016).

Durante a segunda metade do século XX, a atuação da ONU guiou-se pela lógica de garantia e respeito pelos direitos humanos. Paralelamente, o direito à saúde foi potenciado no Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), no ano de 1966, com base no artigo 12.º: alínea 1) os Estados devem reconhecer o direito de toda a pessoa usufruir do melhor estado de saúde física e mental possível; e alínea 2) para a concretização desse direito, os Estados devem implementar medidas que assegurem a melhoria da higiene do trabalho e do meio ambiente e criem as condições necessárias para assegurar a assistência médica em caso de doença a todos os indivíduos (Guerra, 2016).

A Constituição da OMS (1948) representou um outro mecanismo de incentivo direcionado para o direito à saúde e para a adoção de políticas de proteção à saúde por parte dos Estados, tal como se pode comprovar no seguinte excerto:

os países membros são obrigados a respeitar a respetiva Constituição ao declarar que gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição económica ou social. A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados (Constituição da OMS, 1948, p. 1).

Neste contexto, a definição de saúde inscrita pela OMS compreendia a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença” (Guerra, 2016, p. 181). Esta definição de saúde evidenciou o afastamento do modelo biomédico baseado somente em critérios biológicos de saúde e na adoção das dimensões psicológica e social como critérios de avaliação do estado de saúde (Guerra, 2016).

Após a constituição da OMS, foi realizada a Declaração de Alma-Ata no ano de 1978, no sentido de reafirmar a responsabilidade dos Estados pela saúde das suas populações. Esta declaração proclamou as seguintes metas para o ano de 2000: que todas as populações do mundo atingissem um nível de saúde que permitisse alcançar um nível social e económico de vida adequado e produtivo; que fossem proporcionados cuidados de saúde primários eficazes, bem como educação generalizada para a saúde direcionada para os meios de prevenção e informação (Branco & Farçadas, 2012).

No contexto da UE, a proteção da saúde foi também assumida com elevada importância através do artigo 35.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, no ano de

2000 (Guerra, 2016). Posteriormente, através do artigo 168.º, alínea 1, do Tratado de Lisboa declarou-se que “na definição e execução de todas as políticas e ações da UE será assegurado um elevado nível de proteção da saúde” (Tratado de Lisboa, 2007, p. 154).

Assim, a segunda metade do século XX ficou marcada pela garantia de que os Estados acolhiam as premissas formuladas pela ONU, a OMS e a UE. Em Portugal, importa destacar, que a consagração do direito à saúde foi assegurada nos anos de 1976 e 1979 na CRP (1976), através do artigo 64.º alínea 1 e 2, em que o Estado assumiu a responsabilidade exclusiva pela garantia do direito à proteção da saúde (Lopes, et al., 2012). Até 1990 predominou o SNS consubstanciado em princípios básicos de gratuitidade, universalidade e benefício dos serviços de prevenção, ambulatório e cuidados de reabilitação, em que o Estado era o responsável pela prestação total de cuidados de saúde. Em 1990 com a Lei n.º 48/90, de 24 de agosto - Lei de Bases da Saúde, foi introduzida uma reforma que teve como objetivo a continuação do SNS, ainda que com várias mudanças significativas, em função da incapacidade financeira de sustentação

do SNS (Carreira, 1996 cit. in Rodrigues, Samagaio, Ferreira, Mendes, & Januário, s.d.). As mudanças significativas do SNS assentaram em três parâmetros: o primeiro

parâmetro consistiu em novas fontes de financiamento, através da participação financeira dos utentes (taxas moderadoras); o segundo parâmetro foi a implicação das entidades privadas na promoção dos serviços de saúde, de acordo com a Lei 48/90, de 24 de agosto e o decreto-lei n.º 11/93 de 15 de janeiro; por fim o terceiro parâmetro compreendeu a responsabilização conjunta dos cidadãos, setor público e setor privado na procura e prestação de cuidados de saúde, o que consequentemente provocou e ainda provoca o enfraquecimento e a redução do papel do Estado enquanto financiador e prestador direto de cuidados de saúde à população (Rodrigues et al., s.d.). Posto isto, estes parâmetros podem gerar desigualdades sociais, no que corresponde ao acesso aos cuidados de saúde,

reforçando situações de vulnerabilidade e exclusão social (Rodrigues et al., s.d.). Atualmente, o paradigma em vigor é a procura obrigatória da saúde pelo indivíduo

e a redução do papel protetor do Estado. A par disto, têm ocorrido várias transformações, tais como a nova relação entre os cidadãos e os contextos de saúde, no sentido da aproximação ao sistema de saúde, a promoção da literacia em saúde e as decisões políticas dos serviços de saúde baseadas em propósitos de eficiência e eficácia económica. Estas alterações têm mesmo suscitado a necessidade de redefinir o próprio conceito de saúde (Guerra, 2016). Deste modo, o modelo de Meikirch do autor Bircher (2005) definiu a

saúde como “um estado dinâmico de bem-estar caraterizado pelo potencial físico, mental e social que satisfaz as necessidades vitais de acordo com a idade, cultura e responsabilidade pessoal” esta definição recente é divergente da definição de saúde inscrita pela OMS (Bircher, 2005, p. 335).

O modelo de Meikirch defende que a saúde e a doença dependem exclusivamente do indivíduo, reafirma a importância de avaliar a saúde através de dimensões biológicas e atribui ao indivíduo a responsabilidade máxima da manutenção do estado de saúde. (Guerra, 2016).

O PNS (2012) reafirmou a importância da responsabilidade do indivíduo pelo seu estado de saúde através de um dos eixos estratégicos, designadamente a cidadania em saúde. Para o alcance da cidadania em saúde é necessário o reforço da responsabilidade do indivíduo em contribuir para a melhoria da saúde individual e coletiva e a promoção de uma lógica contínua de desenvolvimento interligada à difusão de informação e conhecimento e à participação ativa do indivíduo e comunidade (PNS, 2012). No que concerne às orientações para a cidadania em saúde a nível político, os decisores devem desenvolver intervenções direcionadas para os sistemas de informação e monotorização, avaliação e identificação de boas práticas e promoção da investigação; a nível organizacional, as organizações devem promover, monitorizar e avaliar o exercício de cidadania no processo de tomada de decisão e no desenvolvimento estratégico, através da auscultação regular das necessidades, expetativas e satisfação dos usuários; a nível individual, os indivíduos por um lado, devem melhorar a literacia em saúde e a capacidade de executar as responsabilidades e os direitos bem como cumprir os deveres em saúde e por outro lado, devem assumir a responsabilidade pela promoção da saúde, adoção de estilos de vida saudáveis e participar nas decisões relacionadas com a saúde individual e coletiva (Guerra, 2016).

O atual paradigma de corresponsabilização do indivíduo no seu estado de saúde remete para questões a ter em atenção: (i) a origem das desigualdades em saúde e (ii) o futuro das políticas de saúde baseadas numa lógica que julga como imorais os indivíduos não cumpridores dos comportamentos saudáveis. Neste sentido, paira a interrogação “ todo este magma cultural e ideológico responsabilizador do indivíduo é assim tão neutro como se pretende ou se, pelo contrário, não servirá uma estratégia política de retração do Estado Social?” (Guerra, 2016, p. 189).

A partir da década de 1980, devido aos problemas que se foram agravando ao longo dos anos, vários países da Europa desenvolveram transformações ou reformas nos seus sistemas de saúde (Silva, 2012). Os problemas que se registaram ao longo dos vários anos relacionaram-se com (i) o envelhecimento da população europeia, que influenciou e continua a influenciar a capacidade da resposta tecnológica do sistema de saúde; (ii) com as expetativas dos cidadãos como consumidores de cuidados de saúde que influenciou e ainda influencia a estruturação das políticas de saúde; (iii) com a transformação dos padrões de doença, o que provocou uma redefinição dos serviços de saúde e quarto através

do crescimento das despesas e a eficiência microeconómica (Simões, 2009). Na Europa predominam, maioritariamente, dois modelos distintos de sistemas de

saúde: o modelo bismarckiano e o modelo beveridgeano. O primeiro modelo teve início no final do século XIX na Alemanha e foi adotado por outros países europeus (Áustria, Bélgica, França e Holanda). Assenta em seguros sociais obrigatórios para quem obedece aos requisitos de cobertura, sendo que os seguros são financiados por contribuições dos empregados e empregadores de acordo com o rendimento e o Estado tem como funções assegurar as contribuições dos desempregados e grupos vulneráveis, determinar os princípios gerais do funcionamento dos seguros sociais, aprovar as medidas de contenção de despesas, financiar os cuidados de saúde para os excluídos do sistema de seguros e ser responsável pela gestão dos hospitais públicos. É de destacar a aproximação aos valores

do mercado, com a utilização de mecanismos de tipo-mercado (Simões, 2009). O segundo modelo surgiu após a II Guerra Mundial no Reino Unido e estabeleceu

a criação do SNS assente na responsabilidade do Estado pela prestação de cuidados de saúde e na afirmação do princípio do acesso igual para todos os cidadãos. Este modelo de sistema de saúde adotado por alguns países europeus (Reino Unido, Portugal, Espanha, Irlanda, Suécia, Dinamarca e Itália) apresenta as seguintes características: baseia-se no princípio da cobertura universal; o financiamento advém dos impostos; os cuidados de saúde são tendencialmente gratuitos e o Estado representa a entidade central do sistema, porém estabelece parcerias com o setor privado e, à semelhança do modelo anterior, também executa a aproximação aos valores do mercado, com a utilização de mecanismos de tipo-mercado (Simões, 2009). Em vários países, como destaca Simões (2004), “a estratégia seguida foi no sentido da combinação de elementos dos dois modelos. Procurou-se uma utilização plural de incentivos típicos do mercado, com a manutenção da propriedade pelo setor público” (Simões, 2004, p. 64 cit. in Silva, 2012).