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CAPÍTULO 3 – Discussão de medidas no processo de desenho do Sistema de Proteção Escolar e Cidadania

3.3. Medidas discutidas ao longo das consultorias da Fundap (2010-2013)

3.3.1 Primeira consultoria (2010-2011)

Segundo documentos consultados e relatos de entrevistas,113 no momento desta

primeira consultoria a SPEC solicitava a criação de um modelo de atuação regional para apoiar as escolas públicas estaduais na área de proteção escolar, o qual – como pode ser percebido pelos relatos de entrevistados – aproximava-se da ideia de equipes multidisciplinares de âmbito local instituídas pela Resolução SE nº 19:

[...] então a ideia era definir como seria possível criar equipes multidisciplinares nas Diretorias de Ensino para dar apoio às ações do diretor da escola, é isso... O psicólogo da equipe multidisciplinar ele não vai prestar atendimento clínico ao aluno, ao professor...ele vai ajudar o diretor da escola, eventualmente o professor, a entender uma situação, a diagnosticar uma situação e dar o encaminhamento adequado, utilizando a rede de apoio, a rede de proteção local; como seria a contratação disso, o perfil dessas pessoas, tudo isso a consultoria da Fundap buscaria modelar...

O que eles vieram demandar da Fundap [...] era, é colocar pessoas, assim advogados e psicólogos, essa era a primeira demanda, assim, “a gente precisa de gente que entenda que saiba conversar com essas pessoas nas escolas” e isso estava muito focado na ideia de psicólogos e advogados para terem essas pessoas na regional da Secretaria, para poder responder a esses episódios de violência, entendidos como esses mais graves que de fato desestabilizam o cotidiano escolar.

Durante a negociação desta demanda, a Fundap propôs que fosse realizado um projeto mais amplo e que o desenvolvimento do trabalho pudesse mostrar a necessidade de se ter ou não a alocação de pessoas com o perfil que estava sendo demandado pela FDE. Tendo sido aceita a proposta, o desenho do projeto acordado para esta primeira consultoria contemplou três objetivos centrais:

 sistematizar o conhecimento a respeito da questão da violência escolar e definir formas possíveis de preveni-la e enfrentá-la;

 definir e desenhar sistema de apoio às escolas para a prevenção e enfrentamento à violência escolar;

 produzir conteúdo sobre essa temática para capacitação à distância de profissionais da SEE. (FUNDAP, 2011).

No âmbito do primeiro objetivo, as atividades realizadas pela Fundap incluíram revisão bibliográfica sobre o tema e o levantamento de subsídios na comunidade escolar e de pais, a fim de ampliar a compreensão sobre os conceitos de violência e proteção escolar na

113 A partir de solicitação feita à Fundap e com autorização da Secretaria da Educação (Anexo 3), foi obtido acesso aos relatórios finais de ambas as consultorias realizadas e seus anexos, que consistem na maior parte dos produtos elaborados ao longo do trabalho realizado pela fundação.

visão destes públicos. Para obtenção destes subsídios, foram utilizadas três técnicas, a) grupos focais com supervisores, diretores de escolas e professores; b) pesquisa telefônica com a comunidade residente no entorno de escolas, com foco em pais de alunos; c) análise dos relatos até então coletados pela supervisão por meio do ROE. Como demostrado no relatório da consultoria, este esforço permitiu verificar que os conceitos avaliados – cujas definições não apareciam de modo claro nos documentos da política – remetiam de fato a concepções distintas por parte dos variados atores.114

Pautados pelas análises e reflexões advindas destes levantamentos, a Fundap e o Cebrap propuseram então um marco lógico para o projeto, definindo objetivos, estratégias e resultados esperados das ações subsequentes. Como aponta o relatório, este documento foi apresentado e validado pela Supervisão de Proteção Escolar e Cidadania e também pelos dirigentes das Diretorias de Ensino que seriam implicadas na etapa seguinte. Conforme a demanda inicial da supervisão e o segundo objetivo estabelecido no contrato, esta etapa constituiu-se na implementação de um projeto piloto para um sistema regional de apoio às escolas na área de proteção escolar.

O primeiro passo desta iniciativa foi o credenciamento de profissionais pela Fundap para constituírem as equipes de apoio nas Diretorias de Ensino. De acordo com o disposto no relatório e confirmado nas entrevistas, o perfil destes profissionais era bastante amplo, sendo aceitas pessoas de diversas formações. Os critérios de seleção envolviam apenas elementos como nível superior e experiência em projetos na área social e da infância e juventude, sobretudo voltados para prevenção da violência, resolução de conflitos e/ou sensibilização social.

Os credenciados iniciaram seus trabalhos em setembro de 2011, sendo alocados dois profissionais em cada uma das dez Diretorias de Ensino selecionadas. Segundo um dos entrevistados, estes profissionais tinham o objetivo de atuar como “nossos homens na Diretoria de Ensino, pessoas que iriam ficar lá para melhorar e ser o elo da secretaria com as

114 Para os professores, supervisores e diretores, a escola foi apresentada como o local que recebe uma violência produzida exteriormente, pela sociedade e pela família, e que se traduz principalmente em crimes, como depredações, furtos, roubos, invasão do espaço da escola, tráfico de drogas, agressões graves. Seguindo esta tendência, a análise dos registros feitos pelo ROE – preenchidos sobretudo por diretores – revela que o sistema vinha sendo usado basicamente para o relato de crimes patrimoniais. Já entre os pais, a questão do mau relacionamento entre estudantes, expresso por meio de brigas, foi considerado o problema mais comum de violência nas escolas, sendo a questão do relacionamento entre alunos e professores também mencionada como um problema (o que não aparecia no levantamento feito com a equipe escolar). Contrariamente aos dois primeiros levantamentos, os atos de violência contra o patrimônio e demais crimes de natureza grave foram pouco citados pelos pais como um problema de violência nas escolas.

Diretorias de Ensino na área de proteção”. No entanto, a definição da rotina e das atividades a serem desenvolvidas por estas equipes não tinha um enquadramento rígido, sendo também objetivo do projeto a construção do papel deste profissional a partir do trabalho de campo.

Como relata um dos entrevistados, a recepção das Diretorias de Ensino a estes profissionais não foi unânime, havendo diretorias bastante engajadas na proposta, diretorias que participavam das reuniões e discussões, mas não se envolviam concretamente, e diretorias que apresentaram clara resistência, não se dispondo a colaborar com o projeto:

A maior parte recebeu bem, a gente formou, mas [...] teve diretoria que deixou muito claro na reunião inicial que não ajudaria em nada. Deixou claro, até jogou limpo: “olha eu entendo que vocês estão trabalhando aqui”, falou pra gente, não falou nem pra secretaria [...], “entendo que vocês estão aqui, querem ajudar, mas a gente já viu inúmeros projetos, a gente já falou pra secretaria inúmeras vezes o que precisa e assim, não contem... tudo bem, esse credenciado pode vir, ficar lá, mas como a gente já sabe que esse projeto não vai dar certo...”, eles basicamente disseram: “não vamos cooperar”.

No sentido desta fala, e reforçando percepções já apresentadas no Capítulo 2, o entrevistado pondera que as resistências não foram diretamente ligadas à temática ou ao desenho do projeto, mas sim a um ceticismo na rede pública estadual de educação quanto a quaisquer propostas advindas de fora do próprio sistema de educação.

Apesar dessas diferentes posturas, o projeto piloto foi desenvolvido em todas as Diretorias de Ensino selecionadas, e contemplou três etapas: o diagnóstico das escolas, seu acompanhamento e a proposição de intervenções por meio de visitas sistemáticas e avaliação. Como forma de aferir o impacto do trabalho destes credenciados, foram definidos indicadores pautados nas atividades previstas e nos objetivos esperados. Estes indicadores referiam-se a aspectos como:

 Melhoria da qualidade e maior agilidade nas atividades de orientação e suporte por parte do nível regional (representado, neste caso, pelos credenciados).

 Aumento das demandas das escolas em relação às formas de atuação possíveis e adequadas em eventos que comprometem a segurança escolar.  Melhoria da atuação dos gestores das escolas no que diz respeito às ações

relacionadas à proteção escolar.

 Maior conhecimento e ou clareza em relação aos procedimentos a serem adotados nas escolas, seja do ponto de vista preventivo (com vistas à melhoria de clima e disseminação de uma cultura de paz), seja para dar respostas a eventos específicos.

 Maior conhecimento e ou clareza em relação a projetos capazes de promover a proteção escolar nas escolas.

 Maior conhecimento, acionamento e articulação com a rede de proteção à infância e juventude atuante no entorno das escolas.

 Maior e mais adequada utilização do sistema de Registro de Ocorrências Escolares (FUNDAP, 2011).

Após sete meses de desenvolvimento do trabalho, os indicadores foram avaliados por quatro meios de verificação: percepção dos diretores de escola, percepção dos dirigentes de ensino, percepção do credenciados e análise do ROE. Pelas análises apresentadas no relatório, é possível perceber que os diretores de escola foram os que avaliaram mais positivamente estes indicadores, apontando melhorias em todos eles. Da parte dos dirigentes e dos credenciados, as avaliações também foram sobretudo positivas, embora tenham sido feitas algumas ressalvas.115

Destaca-se deste trabalho a avaliação dos dirigentes de ensino de que seria importante ter uma função regional exclusivamente dedicada à proteção escolar, servindo como um canal de ligação entre as escolas e as Diretorias de Ensino. Para os dirigentes, esse profissional deveria ser alguém da própria rede pública estadual, ou que a conhecesse muito bem, e que tivesse uma formação humanista, com experiência na área de psicologia, projetos sociais ou assistência social. Seu tempo deveria ser dividido entre atividades como: identificação e disseminação de projetos e procedimentos entre as escolas; coordenação dos PMECs; participação nas reuniões pedagógicas das escolas; acompanhamento do ROE e articulação da rede de proteção.

Quanto ao cargo que deveria ter este profissional, os dirigentes sugeriram: a) um cargo novo; b) um Supervisor de Ensino (pela competência técnica e pedagógica, além da visão geral sobre a SEE e as escolas); c) um PCOP (por se mostrar bem preparado pedagogicamente para o trabalho),116 sendo esta última proposta a mais aceita. Sobre a forma de seleção, ela

deveria ser feita na própria rede, uma vez que a contratação via concurso poderia implicar uma má contratação em caráter definitivo, além de burocratizar o processo de escolha. Houve

115 De acordo com o relatório, alguns dirigentes manifestaram que a atuação dos credenciados não teria surtido muito efeito pois as atividades das quais eles se encarregaram já seriam feitas regularmente pela equipe da Diretoria de Ensino. Já entre os credenciados, as principais ressalvas relacionaram-se à falta de interesse e/ou de abertura a mudanças por parte de algumas escolas.

116 Como aponta Almeida (2014), a nomenclatura de Professor Coordenador da Oficina Pedagógica (PCOP) foi alterada em 2011 para a de Professor Coordenador de Núcleo Pedagógico (PCNP). Embora este novo termo tenha sido mencionado por parte entrevistados, optou-se nesta pesquisa por se manter o termo inicial, uma vez que esta é a nomenclatura utilizada no relatório da Fundap, concluído no início de 2011.

também a indicação de que seriam necessários mais de um profissional deste por Diretoria de Ensino.

Todas estas ideias foram analisadas e aperfeiçoadas pela Fundap, a qual sugeriu à FDE a ampliação do módulo de Professor Coordenador da Oficina Pedagógica em cada Diretoria de Ensino, para a contratação de um PCOP específico para a proteção escolar. Segundo um dos entrevistados, esta proposta teria sido considerada a mais viável por não implicar a criação de novos cargos – uma vez que já existia a figura do PCOP de Projetos Especiais –, mas apenas a contratação de mais profissionais para um cargo já existente. Como ressalta Scotuzzi (2012), para a Fundap, esses PCOPs teriam ainda sido julgados os mais adequados para a função por características como:

facilidade de incorporação da proteção escolar no cotidiano da rede, com a perspectiva de realização de oficinas pedagógicas com os PMECs e diretores, de modo a orientá-los e assisti-los; sua entrada e aceitação nas unidades de ensino estão garantidas pela função; tem conhecimentos pedagógicos e técnicos necessários para a gestão da proteção escolar nas DEs e a supervisão dos PMECs; há flexibilidade para a realização do processo de seleção de candidatos à função, permitindo autonomia e controle por parte das DEs; mantém-se o comprometimento de todos os supervisores com a questão da proteção escolar, sem desresponsabilizá-los. (SCOTUZZI, 2012, p. 142).

De acordo com os entrevistados, esta proposta foi acatada pela FDE, mas as novas contratações nunca foram autorizadas pela SEE. Segundo um destes atores, o principal entrave à implementação dessa medida teria sido o processo de reestruturação da secretaria que estava em curso: 117

isso nunca saiu do papel, e aí não saiu do papel porque no meio da estória começou a sair do papel a reestruturação da secretaria e parte da reestruturação, um dos capítulos, era a reestruturação das oficinas pedagógicas, núcleos pedagógicos. Então você não ia aumentar o módulo de uma coisa que você ia mudar, então a gente está há dois anos esperando mudar.

Outro interessante resultado desta consultoria refere-se a sugestões de aperfeiçoamento do sistema de Registro de Ocorrências Escolares (ROE). Segundo o relatório, apesar de o sistema estar em funcionamento havia cerca de um ano no momento da

117 Segundo publicação da SEE, o processo de reestruturação foi iniciado em 2008, a partir de um amplo diagnóstico e uma proposta de reforma administrativa da rede estadual feitos pela Fundap. Essa iniciativa culminou com o Decreto Lei nº 57.141, de 18 de julho de 2011, que introduziu diversas mudanças na estrutura e organização da SEE.

consultoria, ele ainda não havia sido completamente incorporado por uma grande parte dos gestores da rede pública estadual.

A análise feita a partir deste trabalho demonstrou que os principais entraves referiam- se a: a) resistência ou subutilização (por motivos como medo de expor os problemas da escola; pouco conhecimento sobre seus objetivos e modo de funcionamento; falta de prioridade, devido à falta de tempo ou a inexistência de suporte/retorno quanto aos registros); b) utilização inadequada (traduzida em uma vinculação equivocada entre o registro de ocorrências no sistema e o registro de Boletins de Ocorrência; restrição do uso do sistema apenas aos casos considerados graves; dificuldades técnicas em operar o sistema e dificuldades em relatar satisfatoriamente o que ocorreu e quais os encaminhamentos dados).

Diante dessas dificuldades e do impacto positivo verificado no volume e na qualidade das ocorrências a partir do trabalho dos credenciados,118 a Fundap sugeriu também à

Supervisão de Proteção Escolar e Cidadania a adoção de medidas como: a) intensificação da análise dos dados e do suporte às escolas, com um profissional que pudesse se dedicar às informações registradas, produzir diagnósticos e providenciar suporte e retorno às escolas quando necessário;119 b) um maior esforço de disseminação da ferramenta, com uma diretriz

sistemática da SEE conferindo peso institucional ao sistema e demonstrando que o ROE seria “uma forma de empoderamento e aprimoramento da gestão das próprias escolas, não apenas uma forma de controle” (FUNDAP, 2011, p. 61); e, finalmente, c) mudanças no formulário de registro, de modo a deixá-lo mais simples, mais próximo da realidade administrativa das escolas e menos ligado ao formato de ocorrências da área da segurança pública. Como será apresentado a seguir, parte destas sugestões foi acatada pela supervisão, e sua implementação constituiu objeto de um segundo contrato de consultoria.

Por fim, o terceiro objetivo deste trabalho de consultoria previa a produção de conteúdos sobre a temática da proteção escolar para capacitação à distância de profissionais da SEE. Esta atividade foi desenvolvida pela Fundap e pelo Cebrap em duas etapas.

118 Os indicadores avaliados que referiam-se ao ROE demonstraram que, após o trabalho dos credenciados, houve mais ocorrências reportadas e utilização do sistema por escolas que nunca haviam registrado

ocorrências; houve melhora na qualidade das ocorrências reportadas, com salto de mais de 50% na proporção de registros considerados com “qualidade”; e houve também melhora na proporção de encaminhamentos considerados satisfatórios às ocorrências relatadas (FUNDAP, 2011, p. 60).

119 Pelo relato de entrevistas, o esforço de leitura dos ROEs era feito até então no âmbito da SPEC, pela equipe técnica. No entanto, havia um filtro grande (e em alguma medida, com critérios pouco definidos) do que era tratado, devido à equipe ser muito reduzida e acumular outras atribuições. Além disso, não havia uma análise mais sistemática do conjunto dos dados produzidos.

Inicialmente, foram produzidos conteúdos básicos sobre temas como violência, mediação de conflitos e justiça restaurativa, os quais foram de fato utilizados para a capacitação dos credenciados e para a formação do primeiro grupo de PMECs. Na segunda etapa, foram produzidos conteúdos a partir das necessidades identificadas pelos credenciados durante a execução do trabalho, envolvendo questões como papel da pesquisa e postura no trabalho de campo, elaboração de projetos, rede de proteção à infância e juventude e prevenção nas escolas. Segundo o relatório final da consultoria, a relação de todos os temas sugeridos para capacitação da rede e os textos produzidos e/ou compilados foram disponibilizados para utilização em atividades futuras.