Segundo esse princípio, cabe à parte provocar a prestação juris- dicional. Tal princípio vem cristalizado no velho aforismo nerno judex
sine actore ou ne procedat judex ex officio: não há Juiz sem autor, ou:
o Juiz não pode proceder, não pode dar início ao processo, sem a provocação da parte.
Se a ação penal é o direito de invocar a tutela jurisdicional-penal
do Estado, não se concebe, por incongruente, que 0 próprio Estado-
-Juiz invoque a si mesmo a tutela em apreço, O Juiz estaria solici tando uma providência a si mesmo. Haveria, como muito bem' diz Carnelutti, jurisdição sem ação, como se tem no processo de tipo inquisitório. Seria atribuir ao Juiz, em lugar da parte, uma ação que se identifica com a jurisdição, ou, ao menos, que se transforma em jurisdição, o que é um verdadeiro monstro de lógica processual (L ee-
ciones sobre el proceso penal, trad. Santiago S. Melendo, v. 2, p. 14).
Desse modo, ocorrendo um crime de ação pública, cabe ao Es- tado-Administração, representado pelo Ministério Público, levar o fato ao conhecimento do Estado-Juiz e pedir-lhe a aplicação da sanctio
juris àquele que violou a lei penaL Se se trata de crime de alçada
privada, cabe ao ofendido ou a quem legalmente o represente idênti co direito. E, portanto, o próprio titular do direito à ação quem deve ou quem pode provocar a função jurisdicional. Nisto, pois, consiste o princípio da “iniciativa das partes”
Assim, nos termos do art, 24 do CPP, é o órgão do M inistério Público quem promove a ação penal (início do processo) nos crimes de ação pública, por meio daquela petição que se chama denúncia- Nos termos do art. 30 do mesmo estatuto, é o ofendido ou seu repre sentante legal quem a promove nos crimes de alçada privada Tal princípio no nosso Direito constitui regra, e nem por via oblíqua pode ser desnaturado H o que se dessume do art. 28 do CPP. Quando o Promotor requer o arquivamento de um inquérito, por entender, por exemplo, que o fato não constituí crime sequer em tese, o Juiz, não acolhendo suas ponderações, o máximo que poderá fazer é remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, Chefe do M inistério Públi co, para que diga a última palavra sobre o assunto O Juiz não pode obrigar o Promotor a oferecer denúncia; caso contrário, estaria, por via oblíqua, quebrando o princípio do ne procedat judex ex officio.
Até antes do advento da Carta Política de 1988, permitia-se ao Juiz o exercício da ação penal condenatória: quando se tratasse de contravenção ou de homicídio e lesões culposos, Hoje, dispondo o art. 129, I, da Constituição, ser privativo do M inistério Público o exercício da ação penal pública (e naqueles casos a ação penal é pú blica), desapareceu o denominado procedimento ex officio, cujo ato de iniciativa cabia à Autoridade Policial e ao Juiz. Observe-se, con tudo, ter ficado extinto o poder que se conferia ao Juiz de dar início
à ação penal condenatória naqueles casòs., Todavia, como o nosso
Processo Penal não é um Processo Acusatório ortodoxo, isto é, fiel aos seus princípios, o procedimento ex officio não se extinguiu de todo.... Tanto é verdade que o Juiz pode conceder habeas corpus de ofício (e o habeas corpus é uma verdadeira ação penal popular), de cretar, sem provocação de quem quer que seja, prisão preventiva (e a prisão preventiva é ação eautelar), requisitai inquérito, sei destinatá rio da representação e determinar a produção de provas, na dicção do art. 1 5 6 ,1 e II, do CPP,
26. “Ne eat judex ultra petita partium”
Iniciada a ação, quer no cível, quer no penal, fixam-se os con tornos da re s in judicio dedueta, de sorte que o Juiz deve pronunciar-
-se sobre aquilo que lhe foi pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Daí “se segue que ao Juiz não se permite pronunciar-se, senão sobre o pedido e nos limites do pedido do autor e sobre as exceções e nos limites das exceções deduzidas pelo réu” . Quer dizer então que, do princípio do ne proceclat judex ex officio, ou, como dizem os ale mães, do princípio do Wo kein Anklãger ist, da ist auch kein Richter (onde não há acusador não há Juiz), decorre uma regra muito impor tante, de aplicação tanto no cível como no penal: ne eat judex ultra
petita pa rüu m , isto é, o Juiz não pode dar mais do que foi pedido, não
pode decidir sobre o que não foi solicitado.
Assim, se o órgão do Ministério Público, na denúncia, imputa ao réu um crime de furto, e, afinal, apura-se que ele cometeu outro crime completamente diverso (estupro, p, ex,), e não o de furto, não pode o Juiz proferir condenação pelo estupro, que não foi pedida, e muito menos quanto ao furto que não ocorreu Todavia, se o órgão do Mi nistério Público, na denúncia, descreve um crime de estupro (que efetivamente ocorreu), mas, ao nominar a infração, tal como exige o art. 41 do CPP, classifica-a como furto (CP, art 155), o Juiz, ao pro ferir sentença, poderá condenar o réu nas penas do art, 213 (estupro), sem necessidade de qualquer providência, como permitido pelo art. 383 do CPP, Diz-se até que, nesse caso, nem existe a mutatio libelli (modificação, alteração da peça acusatória), mas sim uma verdadeira
emendatio libelli (correção da peça acusatória), porquanto o -fato
continuou o mesmo, deu-se, apenas, definição jurídica diversa Aí, evidentemente, não há julgamento ultra petitum. O Juiz deu aos fatos, tão somente, a correta classificação, É o jura novit curia, livre dicção do direito objetivo, porque o Juiz conhece o Direito. O acusado de- fèndeu-se do fato que lhe foi imputado, E o Juiz, condenando-o por aquele fato, está simplesmente obedecendo ao princípio da correlação entre fato contestado e sentença,
Se, por acaso, o órgão do Ministério Público denuncia alguém como incurso nas penas do art. 155, caput, do CP, correspondendo a classificação ao narrado na peça vestibular da ação penal, e, no curso da instrução criminal, apura-se que o réu tinha a precedente posse ou detenção da res, cumpre ao Juiz tomar aquela providência apontada no
tadas nos §§ 22, 3a e 4- do citado artigo e proferir sentença, mesmo porque o réu se defendeu da imputação de um furto, e não de uma apropriação indébita. Não se atentando para a regra do ait. 384 e seus parágrafos, ante eventual condenação não haveria correlação entre o fato contestado e a sentença Observando-se a disposição, a apropriação indébita seria objeto de manifestação da Defesa e, na hipótese de con denação, haveria correlação entre a sentença e a acusação contestada.
Se o órgão do M inistério Público oferece denúncia em relação a X, imputando-lhe um crime de furto, e, na instrução criminal, apura- -se ter havido um verdadeiro roubo (na instrução é que se descobriu ter havido violência), nesse caso, cumpre ao Juiz observar o disposto no art. 384 e parágrafos do CPP, porquanto, na hipótese, em virtude daquela elementar encontrada nos autos, a pena será majorada. Não tomando a providência apontada no a r t 384 e parágrafos nas duas últimas hipóteses, haverá um julgamento ultra petitum Do contrário, não. A propósito, o ensinamento de Giovanni Leone: “O que efetiva mente vincula o Juiz, isto é, o que delimita o campo do seu poder de decisão, não é a demanda ou o requerimento de condenação e, sim, a determinação do fato submetido à indagação do Juiz” (Trattato, cit., p, 129). Realmente, o princípio do ne eat judex ultra petita partium, também conhecido como sententia debet esse conformis libello, vale, no Processo Penal, “para assinalar os limites da correlação entre fato controvertido e fato decidido” (cf, Leone,- Trattato, cit., p. 129), Quer dizer então que o nosso CPP não “repudiou a proibição de sentença condenatória ultra petitum ”, confor me assinalou o M inistro Fr ancisco Campos, na Exposição de Motivos que acompanha o CPP Manteve-a; e tanto é exato que adotou as providências apontadas no art 384 e seu respectivo parágrafo — hoje §§ I a e 2a (nesse sentido, Frederico Marques, Elementos, cit., p„ 192),
As hipóteses previstas nos arts. 383 e 384, caput, do CPP não são, em rigor, de condenação in pejus, mas, como diz Frederico Mar ques, de consagração do princípio do jura novit curia (Elementos, cit., p. 192), não tendo, assim, razão o Ministro Francisco Campos, ao salientar, na Exposição de Motivos que acompanha o CPP, que este repudia a proibição de sentença condenatória ultra petitum ou “con denação in pejus”. O que o Código repudiou foi a proibição do prin
cípio da livre dicção do direito objetivo (jura novit cm ia) em toda e qualquer hipótese. Sim, antes do atual Código de Processo, como o Promotor não podia retificai a classificação feita na denúncia para impor ao réu sanção mais grave, então o Juiz era obrigado a julgar nulo o processo ou improcedente a ação penal, conforme o caso. E o Promotor deveria apresentar nova denúncia, se ainda não estivesse extinta a punibilidade pela prescrição ou outra qualquer causa A tu almente, vigendo o princípio da livre dicção do direito, dispõe o art. 383 que “ó Juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denún cia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave”. E Frederico Marques explica: “A qualificação a ser dada aos fatos constitui juízo de valor que pertence, preponderantemente, ao órgão jurisdicional — narra mihi factiun dabo iibi ju s” (Elementos, c it, p. 192). Aliás, nesse caso, o réu não estaria sendo condenado por fato diverso, e sim pelo mesmo fato que lhe foi imputado Houve, apenas, equívoco na sua qualificação jurídico-penal, Mas, como já se disse, o Juiz conhe ce o Direito (jura novit curia)
Mesmo que se trate de procedimento dos crimes da competência do Júri, a atitude do Juiz continua a mesma: aplicará na fase da pro núncia a regra do art. 383 (como se infere do art. 418 do CPP) ou, se após a produção de provas observar a presença de um elemento ou circunstância não contida, implícita ou explicitamente, na denúncia ou queixa (esta quando for substitutiva da denúncia), observará o disposto no art 384 e parágrafos, consoante dispõe o § 3S do a rt 411, todos do CPP, com a sua nova redação.