• Nenhum resultado encontrado

Levando em conta os princípios que o informam, o Processo Penal pode ser acusatório, inquisitivo e misto

No processo acusatório, que campeou na índia, entre os atenien­ ses e entre os romanos, notadamente durante o período republicano, e que, presentemente, com as alterações ditadas pela evolução, vigo­ ra em muitas legislações, inclusive na nossa, são traços profundamen­ te marcantes: a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada, em decorrência do contra-

ditóiio, encontram-se no mesmo pé de igualdade; c) o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo (excepcionalmente se permite uma publicidade restrita ou especial); d) as funções de acusar, defen­ der e julgar são atribuídas a pessoas distintas, e, logicamente, não é dado ao Juiz iniciar o processo (ne procedat ju d ex ex officio); e) o processo pode ser oral ou e sc rito ;/) existe, em decorrência do con­ traditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois “non debet licere actori, quod reo non permittitur” ; g) a iniciativa do pro­ cesso cabe à par te acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu repre­ sentante legal, qualquer cidadão do povo ou órgão do Estado Presen­ temente, a função acusadora, em geral, cabe ao Ministério Público. Mas não desnatura o processo acusatório o permitir-se ao ofendido ou ao seu representante o jus accusationis. Há, contudo, inconvenien­ te: poderia haver transações, às vezes até vergonhosas, receio de vingança, e, assim, a defesa social ficaria prejudicada. Deixar-se a iniciativa a qualquer do povo, as conseqüências seriam as mesmas, se não piores Os acusados poderosos, pondera Vitu, poderiam neutrali­ zar os eventuais acusadores, pelo temor que eles poderiam inspirar, e, além disso, muitas infrações ficariam impunes, porque muita gen­ te não desejaria exercer as funções déscigréables et p érilleu ses

d ’acciisateur (Procédure pénale, p, 14). Ademais, ninguém se inte­

ressaria em reprimir as pequenas infrações, e, nas mais graves, os acusadores sofreriam toda sorte de pressão dos acusados .

Não é da essência do processo acusatório atribuir-se a acusação a qualquer cidadão do povo, como se tem propalado. Diz-se até que nesse caso é que tem lugar o processo acusatório puro. Mesmo em Roma, onde se costuma buscar o protótipo do processo acusatório, nem sempre a acusação ficava a cargo de qualquer do povo. As Ins­

titutos de Gaio cuidavam de numerosos delitos, cuja persecução fica­

va a cargo exclusivo da vítima, e o Digesto ampliou esse número “incluyendo figuras típicas hoy eminentemente públicas y estadísti- camente más numerosas”.. Ao lado disso, havia as entidades públicas que, a par de suas atividades normalmente estranhas à persecução, exerciam também a acusação Os Judices Questionis não acusavam os homicidas? Quando o particular permanecia inerte, o Senado não procedia às investigações e, dependendo do caso, não exercia a acu­

sação ante o Tribunal popular? Nos delitos de maior relevo, não eram nomeados os Dictadores paia as suas investigações? E os Irenarcas, os Stationari, os Digiti Duri não informavam ao Prefeito do Pretório a respeito das infrações penais cometidas, realizando diligências para os necessários esclarecimentos?

O fato de a acusação, hoje entre nós, ficar a cargo do Ministério Público não desnatura, pois, o processo acusatório. Este, à evidência, sofreu alterações, ditadas pela evolução dos tempos, aperfeiçoando-se. Mas seus princípios imanentes continuam íntegros: publicidade, con­ traditório e, finalmente, acusação e jurisdição a cargo de pessoas dis­ tintas, “pués, la piedra de toque dei sistema acusatorio es siempre la separación de acusador yjuzgador” (Garcia-Velasco, Curso, cit., p 8).

Nada obsta que o particular acuse. Mas, pelas razões expostas por Vitu, o ideal é atribuir a função persecutória ao Ministério Público, como personificação da lei e representante da sociedade, permitindo-se excepcionalmente possa tal função ser exercida pelo ofendido (ação penal privada). Entre nós, também excepcionalmente, permite-se a qualquer do povo “denunciar” o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica, nos crimes da mes­ ma natureza conexos com os daqueles, bem como os Ministros do STF, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União. Nesses casos, o processo e julgamento competem ao Senado Federal. Em al­ gumas legislações, como as da Inglaterra, Estados Unidos, Chile e Espanha, faculta-se também, em numerosos casos, ao particular, ut

civis, exercer a acusação,.

O processo de tipo inquisitório é a antítese do acusatório Não há o contraditório, e por isso mesmo inexistem as regras da igualdade e liberdade processuais. As funções de acusar, defender e julgar en­ contram-se enfeixadas numa só pessoa: o Juiz. É ele quem inicia, de oficio, o processo, quem recolhe as provas e, a final, profere a decisão, podendo, no curso do processo, submeter o acusado a torturas, a fim de obter a rainha das provas: a confissão. O processo é secreto e es­ crito. Nenhuma garantia se confere ao acusado. Este aparece em uma situação de tal subordinação que se transfigura e se transmuda em objeto do processo e não em sujeito de direito.

O processo inquisitivo despontou em Roma, quando já se per­ mitia ao Juiz iniciar o processo de ofício, e, ao atingir a Idade M é­ dia, por influência da Igreja, o processo per inquisitionem passou a dominar toda ou quase toda a Europa continental, a partir do Con­ cilio Lateranense, de 1215, Foi introduzido, na verdade, pelo D irei­ to Canônico, mas, em seguida, viram os soberanos, nesse tipo de processo, uma arma poderosa, e por isso espalhou-se entre os Tri­ bunais seculares. O processo inquisitivo, que surgiu, propriamente, para evitar injustiças, porquanto “la enorme diferencia de clases y de fuerzas sociales y econômicas, preponderante en la Edad Media, había anulado la pretendida igualdad de las partes en el proceso acusatorio, ora en favor dei inculpado, ora dei acusador, pero siem- pre en beneficio dei poderoso y en contra los fines de la justicia, aquella igualdad había desaparecido”, transm udou-se em instrum en­ to de opressão.

Em determinada época, diz Beling, o processo inquisitivo con- verteu-se em um instrumento de poder desconhecedor dos interesses individuais (Derecho, c it, p. 21), E, por isso, dizia Voltaire: “Les formes en France on été inventées pour perdre les innocents” .

Às vezes, o processo inquisitório era levado a extremos tais que o segredo alcançava o lugar e a forma dele, a pessoa do julgador, o pronunciamento da sentença e, também, às vezes, era secreto o próprio

momento da execução da condenação, .

Garcia-Velasco assinalou os traços básicos do processo inquisi­ tivo: o) concentração das três funções, acusadora, defensora e julga­ dora, em mãos de uma só pessoa; b) sigilação; c) ausência de contra­ ditório; d) procedimento escrito; e) os Juizes eram permanentes e irrecusáveis; f) as provas eram apreciadas de acordo com umas curio­ sas regras, mais aritméticas que processuais; g) a confissão era ele­ mento suficiente para a condenação; h) admitia-se a apelação contra a sentença (Derecho procesal penal, p. 7).

Muito embora, a princípio, coubesse unicam ente ao Juiz dar início ao processo, mais ou menos em meados ou fins do século XIV, surgiu na França um corpo de funcionários cuja função era promover a persecução em nome do poder social: les procureurs du roi Sem embargo, os Juizes continuaram, também, com a mesma faculdade, e

isto, diz Donnedieu de Vabres, explica o adágio: tout juge est procu­

re ur général (Traité, cit., p. 579)

Finalmente, o processo de tipo misto, também conhecido sob a denominação de sistema acusatório formal.

Surgiu após a Revolução Francesa., A luta dos enciclopedistas contra o processo inquisitivo, até então vigorante, não cessava, e, logo após a maior revolução de que se tem memória, ele desapareceu, e o

Code d ’Instruction Criminelle de 1808 introduziu na França o deno­

minado processo misto, seguindo-lhe as pegadas todas ou quase todas as legislações da Europa continental.,

O processo, qual no tipo inquisitivo, desenvolve-se em três etapas:

d) investigação pr eliminar {de la policie judiciaire), dando lugar aos procês verbaux; b) instrução preparatória (instruction préparatoire);

e c) fase do julgamento (de jugement) Mas, enquanto no inquisitivo essas três etapas eram secretas, não contraditórias, escritas, e as fun­ ções de acusar, defender e julgar concentravam-se nas mãos do Juiz, no processo misto ou acusatório formal somente as duas primeiras fases é que eram e continuaram secretas e não contraditórias. Na fase do julgamento, o processo se desenvolve oralement, publiquement et

contradictoirement. As funções de acusar, defender e julgar são en­

tregues a pessoas distintas,

Esse sistema misto, que se espalhou por quase toda a Europa continental, no próprio século em que surgiu, começou a sofrer sérias modificações, dada a tendência liberal da época, exigindo fossem aumentadas as garantias do réu. E, realmente, na própria França, a Lei Constans, de 8-12-1897, assegurava ao acusado o direito de de­ fesa no curso da instrução preparatória Antes mesmo daquela lei francesa, outros Códigos europeus, como o austríaco, o alemão e o norueguês, já haviam sido atingidos pela corrente liberal.

Na França, essa tendência chegou ao seu ponto culminante em 1933- Entretanto, de 1935 para cá, cedeu lugar à tendência autoritária, restaurando-se, assim, o processo de tipo misto, tal como surgira, e que, atualmente, à semelhança do que ocorre na França, domina várias legislações da Europa e até mesmo da América Latina Exemplo dis­ so é o Código de Enjuiciamiento Criminal da Venezuela.