• Nenhum resultado encontrado

3. Profissionalidade Docente, Qualidade e Escola

3.3. Sentidos de profissionalidade docente e qualidade

3.3.2. Profissionalidade docente e lógicas emancipatórias

A educação, em todas as suas dimensões, é uma actividade de natureza profundamente reflexiva, pois o acto de educar pressupõe a natureza humana dos actores envolvidos, sobretudo professores e alunos, o conflito de interesses e personalidades, a transmissão e produção de toda uma cultura e a intervenção de problemas de ordem social,

familiar, económica, política e ética; por outras palavras, o ensino é uma “[…] tarefa problemática, do ponto de vista intelectual e moral […]” (Gimeno, 1999: 86) e, neste sentido,

“O ofício de professor conduz a pessoa, o profissional, a comprometer-se com um discurso que celebra os valores da democratização, da cooperação e da solidariedade, mas exige-lhe também que actue hierarquizando, seleccionando, impondo a concorrência e a competição.” (Cavaco, 1999: 189).

A escola democrática é um espaço onde tende a existir uma participação activa, igualitária e significativa, isto é, uma participação política de pais, alunos, professores e outros actores educativos na construção das políticas educacionais e tomada de decisões e, neste quadro,

“[…] procura ajudar os alunos a tornarem-se instruídos e aptos de formas muito variadas, inclusive as que são exigidas pelos guardiões do acesso socioeconómico. […] não podemos ignorar o conhecimento dominante até porque, na verdade, abre algumas portas.” (Apple e Beane, 2000: 43).

Portanto, as escolas, “[…] como lugares democráticos dedicados a potenciar, de diversas formas, a pessoa e a sociedade” (Giroux, 1990: 34), procuram autonomizar os alunos para o conhecimento, hegemónico e contra-hegemónico, dotando-os de capacidade de desconstrução de ideologias. Assim, nesta ordem de ideias, é tarefa dos educadores democráticos “[…] a reconstrução do conhecimento dominante utilizando-o como forma de ajuda aos mais desfavorecidos da sociedade e não como obstáculo.” (Apple e Beane, 2000: 44). Na mesma senda, Freire defende que

“Na perspectiva progressista, naturalmente, a formação técnica é também uma prioridade, mas, a seu lado, há outra prioridade que não pode ser posta à margem.” (1997: 132).

Considerando a linha de raciocínio em discussão, as racionalidades emancipatórias, defensoras de referenciais democráticos, cívicos e de cidadania, são lógicas agregadoras que assentam, por um lado, na articulação do plano conceptualização/planeamento com o plano implementação/execução, deslegitimando as ideologias favoráveis à sua segregação; por outro,

no desenvolvimento da vigilância e da consciência crítica do professor, reequacionando o paradigma do professor transmissor em benefício do professor comunicativo, que procura capacitar-se em ordem à transformação de realidades, identidades e subjectividades.

Neste sentido, e no actual contexto português, a ambiguidade evidenciada, no nosso entender, pelo Decreto-Lei nº 15/2007, no concernente à formação de professores no âmbito das dimensões crítico-democráticas, não tem que significar a sua proibição; pelo contrário, pode revelar-se uma liberdade para o professor, ainda que talvez oculta, no sentido de proporcionar a este uma certa autonomia de opção por uma formação de carácter político e crítico (Estêvão, 2009), facto que pode condicionar a acepção da avaliação em favor de fins emancipatórios. Esta remeteria os actores educativos para reflexões críticas sobre as diferentes dimensões do processo ensino-aprendizagem, procurando comparar o antes e o após, a fim de identificar eventuais dissonâncias e consonâncias e problematizar criticamente as mesmas, redefinindo os percursos futuros. Deste modo, os indicadores, para além do carácter classificador, associado a consequente reforço negativo (castigo/punição) ou positivo, seriam desmistificados, conduzindo os agentes educativos à apreciação crítica e criativa das suas práticas, dos processos, da organização, dos projectos e dos percursos colectivos e pessoais; nesta perspectiva, a avaliação constituiria uma ferramenta de empowerment (Afonso, 2009), conducente à desalienação da classe docente e, concomitantemente, à construção de uma forte profissionalidade comunicativa.

Segundo Apple (2001), na actualidade, os professores, ainda que sujeitos a fortes pressões como, por exemplo, a avaliação de desempenho, não são actores cabalmente passivos, como querem dar a entender as lógicas instrumentalistas. Possuem capacidade e poder de reacção e oposição às demandas dominantes (capitalistas), desenvolvendo estratégias emancipatórias facilitadoras da mudança. O professor, apesar de tudo, detém a capacidade e autonomia para conceber, planificar e executar todo o trabalho desenvolvido em sala de aula, podendo imprimir àquele uma vertente política, activa e criativa, colocando ao serviço da educação, de características emancipatórias, a sua identidade estratégica.

Nesta linha de raciocínio, Giroux (1999) advoga a formação de educadores radicais e críticos, noutras palavras, professores intelectuais transformadores (Giroux, 1990, 1992) ou activistas sociais (Torres, 2000), enquanto professores que fazem opções baseadas numa atitude preponderantemente crítica, não impondo a sua opção, pelo contrário, respeitando o

direito do outro optar e suscitando a consciência crítica, na senda da construção do homem radical (Freire, s/d).

Os professores, na educação e com a educação, tendem a despoletar uma educação baseada num paradigma emancipatório, de modo que “[…] uma das tarefas do educador ou educadora progressista, através da análise crítica, séria e correcta, é desvelar as possibilidades […]“ (Freire, 1997: 11). Deste ponto de vista, o professor que assume uma profissionalidade comunicativa não separa o pensar do fazer, isto é, face à singularidade de cada problema, dificuldade e/ou fragilidade concebe uma resposta criativa e crítica, comprometendo-se, desta forma, com a construção e transformação do aluno e com a consecução de uma qualidade educativa democrática-cívica.

Portanto, os professores são entendidos como agentes políticos, reflexivos críticos e criativos, capazes de problematizar e de articular os saberes teóricos (disciplinares e pedagógicos) com os práticos, no sentido de responder às exigências particulares da sala de aula, da escola e de “[…] colaborar na construção de sociedades mais democráticas e igualitárias […]” (Torres, 2000: 88). Corroborando este ponto de vista, Stoer (2008b) defende, manifestamente, a responsabilidade da escola e professores na formação do aluno-cidadão, capaz de mobilizar um modo crítico de raciocinar, e, neste sentido, o autor propugna que é necessário repolitizar a escola

“[…] para desafiar o que H. Giroux chama a «cultura do positivismo», segundo a qual a escola é afastada do contexto geral da sociedade e reduzida ao papel de produzir uma nova elite profissional.” (2008b: 109-110).

Na perspectiva de Giroux (1992), os professores são intelectuais que podem assumir diferentes categorias: transformador, crítico, adaptado e hegemónico, posicionando-se diferencialmente sob diferentes circunstâncias. Não obstante, o autor defende que o professor deve ser entendido enquanto agente intelectual transformador, no sentido de recorrer à linguagem crítica na problematização da realidade e, simultaneamente, envolver-se na esfera da luta e poder, defendendo novas formas de práticas pedagógicas que possibilitem aos alunos tornarem-se agentes políticos, críticos, reflexivos, activos, problematizadores dos mundos e do conhecimento e defensores do discurso da possibilidade e da democracia, isto é, “[…] agentes de coragem cívica […]” (1992: 33).

Acresce ainda que no diálogo dialéctico entre conceptualização/planeamento e implementação/execução, o professor transformador é capaz de responder às exigências democráticas da educação e ensino, produzindo o material curricular que melhor se adeqúe a cada realidade, em particular, e responder positivamente ao discurso da alternativa. Nesta linha de pensamento, Morgado defende

“[…] a ideia de professor como investigador da sua própria prática, convertendo-a num objecto de indagação que deve utilizar para melhorar a qualidade dos processos educativos.” (2005:44).

O professor intelectual transformador prima por assumir o conhecimento como uma construção dialógica e não como um dado adquirido e objectivo. Num primeiro momento, o professor tende a mostrar aos seus alunos a existência de conhecimentos e culturas, em oposição a um conhecimento e cultura únicos, absolutos e hegemónicos. Sublinha a existência de um conhecimento e cultura dominantes face a conhecimentos e culturas subordinados e, portanto, o professor, naturalmente, desvela o discurso das alternativas, conducente à constatação de que a vida dos indivíduos se assemelha a uma arena de relações de poder onde é possível uma das alternativas: subjugar-se e acomodar-se ao poder dominante ou resistir e lutar pela sua visão do mundo e valores associados, pois, como afirma Giroux, “[…] se as necessidades podem ser construídas, podem também ser desfeitas e reconstruídas de acordo com as preocupações emancipatórias.” (1992: 45).

Num segundo momento, o professor procura indagar sobre quem (grupo da sociedade) selecciona e decide o conhecimento e cultura, nos quais assenta a construção do currículo, sobre quem define e decide os conteúdos a ensinar, como ensinar e que concepção de aprendizagem favorecer. Mais, esforça-se por desconstruir a linguagem e as práticas e suas relações com o poder, de modo a que os alunos desenvolvam códigos e instrumentos “[…] que desafiem ou confirmem modos de pensamento, de expressão e de ação […]” (Giroux, 1992: 44). Nesta lógica, o professor edifica um sentido de profissionalidade comunicativo.

A construção da profissionalidade docente pautada por valores e princípios de cariz emancipatório, não omitindo a importância do domínio e conhecimento das técnicas pedagógicas, enfatiza a reflexão crítica e as alternativas face à diversidade de realidades educativas, às singularidades de uma sala de aula e às particularidades de cada aluno. Por outro

lado, preocupa-se com a formação de educadores que desenvolvam o “[…] seu potencial como intelectuais e como profissionais ativos e reflexivos.” (Giroux, 1992: 24).

Peter Woods, ao abordar o ensino criativo salienta algumas características, entre as quais a imaginação, enquanto “[…] capacidade de tomar o lugar do outro e de ensaiar potenciais interacções antes do acontecimento.” (1999: 132), e o holismo, no sentido de o ensino envolver todas as dimensões do aluno (cognitivas, culturais, sociais e emocionais) e mobilizar “[…] o que está dentro e o que está fora da esfera escolar.” (1999: 133). Nesta linha de raciocínio, Gimeno (1999) defende que o professor deve ser detentor de um pensamento estratégico para a resolução dos constantes dilemas característicos do processo ensino-aprendizagem.

Sistematizando, os professores radicais rejeitam a ideia que o fim último da educação “[…] seja a eficiência económica […]” (Giroux, 1999: 21),isto é, recusam lógicas educacionais de natureza puramente positivista e defendem, como pressuposto básico, uma educação ancorada na linguagem da possibilidade, promotora de espaços de diálogo crítico e dialéctico, que suscite a consciência crítica e opere como mediadora de uma educação crítica, unindo a teoria e a praxis (Giroux, 1999). Por outro lado, os professores consideram as realidades e subjectividades dos alunos, norteando as práticas educativas, segundo Giroux, pela Pedagogia da fronteira que

“[…] oferece aos alunos oportunidades de se envolverem nas múltiplas referências que constituem diferentes códigos culturais, experiências e linguagens. Isto significa educar os alunos para ler esses códigos de uma maneira histórica e crítica e, ao mesmo tempo, aprender os limites desses códigos, incluindo os utilizados por eles para construir suas narrativas históricas.” (1999: 42).

Portanto, as racionalidades emancipatórias, defensoras do desenvolvimento do indivíduo enquanto homem-sujeito, pressupõem uma educação pautada pela possibilidade de mudança, de libertação e de humanização do indivíduo (Freire, s/d). O sujeito pensante aprende a aprender, aprende a pensar e aprende a articular o conhecimento adquirido com os problemas quotidianos, pessoais e do mundo, atribuindo significados aos factos (Libâneo, 1998), percepcionando visões alternativas de modos de pensar, sentir e agir. Por outro lado, o professor acolhe os desafios, problematizando-os criticamente e respondendo de forma múltipla, humanizando-se e, neste sentido, efectiva a sua “[…] integração ao seu contexto, resultante de estar não apenas nele, mas com ele […]” (Freire, s/d: 42), através

“[…] de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação […]” (Freire, s/d: 44).

De facto, o professor que assume uma profissionalidade comunicativa procura reconhecer as singularidades de cada aluno e lutar para que este articule o conhecimento e as suas vivências, produza o seu próprio conhecimento, ancorado numa base reflexiva dialógica, e edifique progressivamente a sua identidade e subjectividades. Para este professor, um ensino de qualidade norteia-se essencialmente pela possibilidade de empoderamento dos alunos, de modo que estes sejam capazes de desconstruir as evidências produzidas por alguns e de problematizar politicamente as suas realidades (pessoal, familiar, social, profissional). Neste sentido,

“Alguns autores vêm adotando a expressão ´qualidade social da educação´. É certo que os requisitos de democracia, cidadania, participação, direitos sociais, compõem o conceito de qualidade social.” (Libâneo, 1998: 61).

Não obstante a discussão produzida no presente subcapítulo, estamos em crer que, na actualidade, a (re)construção da profissionalidade docente tende a orientar-se segundo lógicas instrumentalistas, resultado, pelo menos em parte, da “[…] assumpção de uma agenda educativa global marcada ideologia da qualidade e eficácia do sistema e centrada na racionalização das estruturas e das práticas educativas […].” (Melo, 2009: 187). Neste contexto, são vários os autores a contrapor as lógicas emancipatórias alegando razões várias, entre as quais, na “[…] opinião de Ellsworth, as teorias pedagógicas críticas, como a de Giroux, alimentam ideais sobre o falso pressuposto de ser possível construir uma perspectiva crítica da educação e da sociedade que permita libertar-se de todas as opressões e dependências.” (Contreras, 2003: 125).

Considerando o exposto, e em jeito de conclusão, estamos convictos que os diversos sentidos de profissionalidade docente se cruzam no dia-a-dia dos professores, de acordo com o momento e diversidade conjuntural quotidiana. Noutros termos, os professores podem ter necessidade de mobilizar diferentes acepções de profissionalidade docente em função das realidades, uma vez que, mais do que um espaço físico, a escola representa um espaço

simbólico e ideológico de discussão, onde se confrontam interesses, poderes, expectativas, necessidades, imagens de escola e sentidos de qualidade.

3.4. Imagens de escola, sentidos de qualidade e sentidos de profissionalidade