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3. Profissionalidade Docente, Qualidade e Escola

3.3. Sentidos de profissionalidade docente e qualidade

3.3.1. Profissionalidade docente e lógicas instrumentalistas

As lógicas instrumentalistas concebem a actividade docente como um instrumento para alcançar determinados fins, na medida em que atribui a especialistas e outros profissionais, afastados da vida diária da sala de aula (Giroux, 1992), a responsabilidade de conceber e desenvolver as práticas institucionais, organizacionais e didácticas, remetendo para os professores, essencialmente, a implementação e execução das mesmas, facto que dificulta a intervenção dos mesmos no diálogo dialéctico entre os saberes práticos e os saberes teóricos, que conduz à construção de novas práticas e novos conhecimentos.

Nesta perspectiva, é exigido ao professor o conhecimento de um conjunto de regras especializadas assim como as regras gerais da sua aplicação, nada mais; por conseguinte, o ensino é concebido, por alguns autores, como um ofício e o professor como um simples técnico que aplica com rigor as regras e técnicas prévia e externamente definidas, visando fins também eles predefinidos, facto que contribui para a intensificação da proletarização dos professores, ignorando ou, até mesmo, anulando o discurso da possibilidade face à diversidade de realidades dos discentes. Portanto, a racionalidade técnica tende a afastar os professores das grandes questões políticas da educação e ensino como, por exemplo, quais as finalidades da educação? Quem as define? Quem selecciona, define e decide sobre conhecimentos a partir dos quais é construído o currículo? Qual o conhecimento a transmitir e a desenvolver? (Giroux , 1992).

Os professores, ao não participarem na discussão política destas questões, transformam-se em profissionais passivos, acríticos e apolíticos, vendo a sua acção reduzida à recepção, reprodução e transmissão de conhecimento científico e técnico. Simultaneamente, os professores contribuem para a desprofissionalização e desqualificação da actividade, resultante, segundo Apple, “[…] de um longo processo em que o trabalho é dividido e posteriormente redividido com o propósito de aumentar a produtividade, reduzir a ´ineficiência´ e controlar quer o custo quer o impacto do trabalho.” (2001: 215), promovendo os referenciais técnicos e mercantis da profissionalidade docente e da qualidade educativa.

Neste cenário, a participação na decisão das grandes questões políticas fica sob a tutela dos especialistas e responsáveis políticos e, naturalmente, a possibilidade de os professores integrarem a construção de conhecimentos científico e experiencial, produzindo nova cultura, fica seriamente comprometida. Na verdade, a actividade docente tende a ser racionalizada, “[…] afastando o professorado das funções de concepção do seu processo de trabalho.” (Vieira, 2004: 66), e transformada em input da actividade educativa produtiva, factores conducentes à desintelectualização e à despolitização da profissionalidade docente.

Face ao exposto, estamos em crer que o discurso instrumentalista tende a transformar o professor em homem-objecto (Freire, s/d); por outras palavras, tende a coisificar o professor tornando-o um mero repositório de conhecimento, que reproduz, eficaz e eficientemente, o que alguém concebeu e planificou, ao invés de criar a sua própria identidade e subjectividade, potenciando o professor a assumir um reportório de saberes, capacidades, valores, atitudes, crenças, destrezas e disposições, isto é, a adoptar uma profissionalidade docente instrumental, quer técnica quer mercadorizada, promotora da qualidade educativa estruturada na eficácia, na produtividade da actividade docente, no lucro e na competição, características dos universos empresarial e mercantil. Em oposição, Apple, considerando que o trabalho dos professores é detentor de especificidades que devem ser problematizadas, alega que

“[…] o ensino é um processo de trabalho que garantidamente tem as suas características muito específicas, que não podem ser reduzidas às do trabalho numa fábrica, no escritório de uma companhia de seguros ou às de um vendedor, mas que, no entanto, não deixa de ser um processo de trabalho.” (2001: 81).

De acordo com a abordagem técnica, a profissionalidade docente converte todas as questões sociais, políticas, culturais, morais, éticas e humanas da educação em questões técnicas com resolução técnica, contribuindo para a tecnologização do ensino; por outro lado, o modelo de relações sociais assenta no mérito, na separação, na hierarquia e na imposição. Assim, os valores e os fins que orientam a profissionalidade são redefinidos no sentido da exímia mobilização de técnicas, com vista à consecução de resultados prévia e externamente definidos. Neste contexto, percepcionamos a profissionalidade docente técnica alocada ao professor como técnico, dotado de conhecimentos e de competências, capaz de mobilizar, competente e eficazmente, uma constelação de técnicas disponíveis, visando a prossecução de elevada produtividade, traduzida na consecução de objectivos e resultados fixos; noutras palavras, “[…] a prática profissional consiste na (re)solução instrumental de problemas, mediante a aplicação rigorosa de um determinado conhecimento teórico e técnico previamente produzido.” (Morgado, 2005: 34). Deste ponto de vista, cremos poder afirmar que o professor será tanto mais competente quanto mais eficiente e eficaz for na consecução de objectivos e resultados, quantificados através de um rigoroso sistema de avaliação de desempenho.

A instrumentalização da educação exige, além do professor técnico, a formação de professores enquanto intérpretes ou instrutores do mercado, cuja função reside, basicamente, na transformação dos alunos em identidades isoladas, competitivas, indiferentes ao todo e auto- suficientes, concordantes com o homem-consumidor/cliente. Este tipo de professor tem por missão a consciencialização mercantil ou humanização mercantil do aluno, isto é, a capacitação do aluno para as dimensões necessárias à formação de bons clientes/consumidores, adaptados às volatilidades do mercado globalizado ou mundializado.

O professor mercadorizado procura formar-se no sentido de adquirir saberes, capacidades, conhecimentos, competências, habilidades, valores e atitudes mercantis; mais, procura “[…] ainda um outro conjunto de qualidades, até agora pouco salientadas, competências de marketing, de relações públicas, de advocacia e de negociação.” (Eggleston, 1992, parafraseado por Lima, 1996: 57). Em síntese,

“As qualidades profissionais são aquelas que se pensa serem as mais vendáveis, exigindo-se subjectividades maleáveis, geríveis, avaliáveis e transferíveis.” (Estêvão, 2009: 74).

Neste quadro, o professor tende a desenvolver e assumir uma profissionalidade mercadorizada que seja capaz de prever, antecipar e satisfazer as expectativas dos alunos, agora clientes/consumidores, e que, simultaneamente, seja capaz de responder, flexivelmente, às necessidades concorrenciais do mercado, portanto, uma profissionalidade docente dotada de uma ética de serviço. Por outro lado, a prática profissional docente tende a ser pautada, fundamentalmente, por taxas e rácios, designadamente de lucros, de resultados, de rankings e de selecção; consequentemente, as opções do professor são constrangidas pelas mesmas e, nesta senda, a autonomia docente é concebida enquanto capacidade de satisfação das exigências, determinadas pelos consumidores e taxas, na prossecução de uma qualidade educativa total.

Na realidade portuguesa, como referimos no primeiro capítulo, o Decreto-Lei nº 15/2007 pode ser interpretado no sentido da promoção e veiculação das lógicas técnica e mercantil, designadamente quando convoca sistematicamente os termos mérito, excelência, resultados e qualidade, característicos de narrativas instrumentalistas, e quando estrutura a carreira docente segundo critérios de diferenciação e hierarquização, processos que tendem, por um lado, a separar a concepção da execução e, por outro, a controlar e regular os professores.

Relativamente a este último aspecto, Apple (2001), ao problematizar a importância e a necessidade do controlo do trabalho docente, refere que este se deve ao facto de os professores serem os responsáveis directos pela transmissão e produção do capital cultural e capital humano, essencial ao processo de acumulação e, como tal, interessa ao poder dominante condicionar a profissionalidade dos professores no sentido instrumentalista, de modo a garantir a qualidade dos capitais. Neste sentido, o autor sublinha que

“Para que a acumulação capitalista prossiga, a planificação deve ser separada da execução, o trabalho mental separado do trabalho manual, separação esta que precisa de ser institucionalizada de uma forma sistemática e formal.” (2001: 125).

Acresce que o Decreto-Lei promove a formação contínua dos professores no âmbito da requalificação tecnológica, a qual pode ser interpretada no sentido de incrementar as competências técnicas dos professores, transformando-os em técnicos mercadorizados preocupados com a consecução de propósitos de carácter empresarial e mercantil. Acresce ainda que o decreto introduz a avaliação de desempenho dos professores assente no mérito e

excelência, critérios que tendem a potenciar os processos de competição e prestação de contas. A propósito da implementação de políticas de prestação de contas, na opinião de Apple e Beane,

“Embora não exista, nada de errado, com os sistemas de prestação de contas, muito deles são impostos, são inflexíveis e colocados em prática, ignorando-se o que realmente se está a passar nas salas de aula […]. Assim, frequentemente, servem apenas como motivo para os grupos poderosos culparem o trabalho árduo dos educadores em questões sobre as quais têm um controlo muito limitado.“ (2000: 12).

Neste sentido, a prestação de contas não serve uma “[…] educação democrática e crítica […]” (2000:14), apenas serve a promoção de uma escola enquanto espaço de cunho industrial. Nesta linha de raciocínio, Giroux entende que a racionalidade técnica ignora “[…] as questões referentes à especificidade cultural, ao julgamento do professor e à forma como as experiências e as histórias de vida dos estudantes se relacionam com o processo de aprendizagem.” (1992:18). Mais,

“[…] parte de uma concepção pedagógica falsa, segundo a qual todos os alunos podem aprender a partir dos mesmos materiais, pedagógias e formas de avaliação. Ignora-se o facto de que os alunos provêm de diferentes contextos e incorporam diferentes experiências, práticas linguísticas, culturas e talentos […].“ (Giroux, 1992: 19).

Portanto, o autor alerta para eventuais riscos de exclusão dos alunos, dado que, ao padronizarmos currículo, métodos, práticas e materiais, tendemos a excluir as especificidades do aluno que tornam o processo ensino-aprendizagem significativo; por conseguinte, tendemos a desumanizar o indivíduo, isto é, privá-lo de autonomização política, que lhe permite interpretar criticamente o mundo, atribuindo significados aos factos. A padronização não é um acto neutro, é efectuada segundo determinados princípios e interesses subjugados a uma ordem dominante, que desvaloriza o interesse colectivo, concedendo primazia aos interesses de alguns grupos restritos, facto que pode conduzir à segregação dos alunos em função da sua origem económica, social e cultural e, deste modo, à reprodução do statu quo.

Giroux apelida a narrativa instrumentalista como a pedagogia dominante e alerta para o facto de esta servir “[…] não apenas para incapacitar os alunos mas também professores.“ (1999: 165). Noutros termos, o discurso da profissionalidade dominante, isto é, aquele que

veicula interesses empresariais e mercantis, tende a esvaziar o professor da sua criatividade e criticidade, com vista à redefinição da sua identidade, no sentido de o plasmar em técnico distinto, competidor e comercial, capaz de prever e antecipar as expectativas dos alunos, contribuindo para a satisfação do cliente, por outras palavras, para a qualidade total da instituição.

Segundo Freire (2009), as lógicas instrumentalistas visam a construção de uma educação bancária e, nesta perspectiva, não há espaço para a criação e produção de saberes por parte dos actores educativos, nomeadamente professores e alunos. A educação torna-se “[…] um ato de depositar em que os educandos são os depositários e o educador o depositante.” (Freire, 2009: 66), pressupondo a mera transmissão de conhecimentos e valores absolutos e a conversão do processo ensino-aprendizagem num processo mecânico de memorização, onde ocorre doação do saber, em oposição a uma visão de um processo educativo dialogicamente problematizador e criativo, onde professor e aluno transformam a sua realidade.

No nosso entender, e recorrendo à Pedagogia do Oprimido de Freire (2009), cremos poder dizer que, do ponto de vista instrumentalista, os professores transformam-se em oprimidos e os especialistas e Estado em opressores. Neste contexto, os professores tendem a desenvolver uma consciência hospedeira da consciência opressora, fragilizando a sua autonomia e interiorizando a senda da melhor e única alternativa indicada pelos opressores, conducente à alienação e, consequentemente, à manutenção da ordem dominante. Nas palavras de Freire, este tipo de violência “[…] faz dos oprimidos homens proibidos do ser […]” (2009: 48) e Giroux acrescenta que

“Desta maneira, os professores ficam reduzidos ao papel de técnicos submissos que executam as instruções dos manuais em uso.” (1990: 43).

Ainda no âmbito das lógicas instrumentalistas, a profissionalidade docente pode ser problematizada do ponto de vista ideológico, no sentido de discernir algum propósito instrumentalista quando recorremos à profissionalidade docente enquanto discurso ideológico retórico.

Deste ponto de vista, a profissionalidade docente pode ser mobilizada segundo diferentes e, por vezes, antagónicos intentos. Uma das intenções possíveis reside na

manipulação e adestramento dos professores, no sentido de obter dos professores um compromisso para com o discurso da qualidade educativa, ou, então, para com outras narrativas, a fim de construir consensos profissionais amplos, ainda que destituindo os professores da sua capacidade de politização, conducente ao controlo ideológico, cooptação ideológica e assimilação ideológica (Contreras, 2003). Neste quadro, os professores tendem a ser privados dos seus valores, princípios, referenciais e percepções, e compelidos a incorporar outros, designadamente a colaboração, a dedicação, a eficácia, a produtividade, a competição e a satisfação do cliente, construindo uma profissionalidade docente que “[…] não visa senão aumentar a eficácia de intervenção dos actores, mais do que elevar o estatuto da profissão.” (Loureiro, 2001: 32).

Por outro lado, o discurso pode ainda operar enquanto promotor motivacional do individualismo, cuja principal função é “[…] proporcionar oportunidades para que cada indivíduo desenvolva as suas capacidades inatas e contribua, com o seu esforço, para o aperfeiçoamento da sociedade.” (Afonso, 1998: 69), a fim de responder, prioritariamente, às necessidades industriais e mercantis, contribuindo para a produtividade económica.

Não obstante, e terminando o presente subcapítulo, a narrativa da profissionalidade docente também pode ser convocada segundo lógicas de cariz emancipatório, proporcionando uma estratégia para a ampliação do poder político e simbólico dos professores, necessária à maior intervenção destes na esfera da concepção e decisão, quer na construção da educação quer na construção da profissão, operando, igualmente, como estratégia de resistência à proletarização e como meio de reforço à autonomia, no sentido da capacidade de decisão política. Este sentido de profissionalidade docente será problematizado no próximo subcapítulo.