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2.3 Fundamentos para proposição da Teoria da Prática de Pierre Bourdieu para

2.3.2 A proposta de Pierre Bourdieu para superação das dualidades para compreensão

Miceli (2004), na introdução da obra Economia das trocas simbólicas, de Pierre Bourdieu, lembra a tradição sociológica francesa de compreender o fato social como coisa e representação, para afirmar a contribuição particular de Bourdieu para a sociologia dos fenômenos simbólicos, que também garante a apreensão da dimensão objetiva dos mesmos. Considera que Pierre Bourdieu alia o conhecimento da organização interna do espaço à percepção da função ideológica que legitima a ordem arbitrária em que se fundam os sistemas vigentes. A eficácia do poder simbólico reside na sua função de ordenar o mundo natural e social por meio de discursos, mensagens e representações, que não passam de alegorias que simulam a estrutura real das relações sociais.

É com essa dupla apreensão da realidade que Bourdieu (2010a) propõe a sua concepção relacional para compreender as práticas sociais e integrar as características dos clássicos da sociologia para superar as dicotomias23 delas decorrentes (BOURDIEU, PASSERON, CHAMBOREDON, 2010). Na sua visão, os agentes sociais emergem dos espaços sociais de forma semelhante à percepção filosófica de Merleau-Ponty. Els existem como estruturas estruturantes (estruturas cognitivas) e em relação permanente com as estruturas estruturadas (espaço social). Consequentemente, a compreensão dos fenômenos sociais não pode ser buscada adequadamente nem nas estruturas e nem nos agentes exclusivamente, mas na relação estrutura-agente.

Admitir essa proposição é concordar que o agente social não reproduz automaticamente as estruturas e não tem a liberdade de ação para se mover pelo cálculo com anterioridade à ação, como querem entender os defensores da teoria da escolha racional. A despeito de risco de imprecisão, Pierre Bourdieu se utiliza da metáfora de jogos (que nada tem em comum com a teoria dos jogos), para explicitar, mais didaticamente, o que fundamenta o seu esquema de apreender as práticas sociais.

A lógica é simples. Em qualquer jogo, os jogadores aprendem as regras com anterioridade à ação e, no momento de jogar, as aplicam para criar os seus movimentos. Eles não necessitam de esforços para lembrar o que foi aprendido, para depois calcular as jogadas. Também não repetem automaticamente os movimentos ensaiados. A partir do aprendizado

23 Tais como objeto/sujeito, indivíduo/coletivo, macro/micro, físico/simbólico, teoria/pratica, métodos

internalizado, os jogadores apenas jogam com liberdade de ação, a partir de uma lógica internalizada e in(corpo)rada. Quanto mais o jogador tenha internalizado o sentido do jogo, melhor condição consegue para se posicionar no campo e sobressair na competição.

Na prática social, algo bem próximo se sucede. Em cada contexto social, as práticas dos agentes não se constituem nem como ações calculadas, nem como meras repetições das regras vigentes. Elas são concebidas pelo agente, a partir de princípios internalizados, originados no grupo social, em processo coletivo que elege o conjunto de práticas aceitas como possíveis para os agentes integram o campo (BOURDIEU, 2007; 2004a; 1996a; 1996c). Assim, compreender as práticas dos agentes exige aproximações sucessivas do espaço social específico, enquanto objeto de estudo, até a explicitação para o pesquisador da lógica que faz os integrantes do espaço social específico agirem e perceberem as coisas de determinadas maneiras.

Para apreensão das práticas dos agentes, a perspectiva exige do pesquisador a possibilidade de se relacionar com o campo específico para entendê-lo a partir da emergência de características do próprio espaço social. Não são adotados conceitos fixos relacionados em modelo teórico a ser testado na realidade empírica (BOURDIEU, PASSERON, CHAMBOREDON, 2010).

Os conceitos campo, capital, habitus, illusio, doxa e hexis devem ser vistos como instrumentos metodológicos, de caráter fundamentalmente heurísticos (BOURDIEU, 2010a; 2007; 1996a; WACQUANT, 2002; THIRY-CHERQUES, 2006) . Trata-se de feixes por meio dos quais são captadas as características dos campos sociais específicos e apreendidos os sentidos das práticas dos agentes.

O conceito campo é utilizado para delimitar qualquer espaço social em que seja possível identificar processo de diferenciação social progressivo em relação ao espaço social global, capaz de fazer com que seus integrantes apresentem características peculiares e relativa autonomia para a (re)definição das próprias regras do jogo. Representa espaços sociais que conjugam forças e relações produtoras de realidades específicas e objetivas, de forma que, em cada campo, os interesses em jogo definem apostas específicas entre os agentes. Pierre Bourdieu utilizou o conceito para diferentes espaços, tais como a academia científica, a arte, a religião, a alta costura, a burocracia.

Os limites de cada campo não são fixos e não objetivam cristalizar espaços. Eles variam de acordo com o objetivo do pesquisador, permitindo diversas formas de olhar e compreender suas configurações (EMIRBAYER; JOHNSON, 2008; THIRY-CHERQUES,

2006; WACQUANT, 2006). As configurações só se mostram completas, inclusive ao pesquisador, na medida em que fiquem evidenciados o princípio gerador das práticas dos agentes, os elementos de diferenciação desse princípio e as formas de distinção e de interesse pelas disputas próprias do campo (BOURDIEU, 2010a).

Habitus significa o princípio gerador das práticas. Trata-se de conceito originado da

noção de hexis (disposição) de Aristóteles que pode ser traduzido como disposições incorporadas pelos agentes sociais, na forma de estruturas internas, conscientes e inconscientes, que dão unidade de sentido à prática social (BOURDIEU, 2010a; 2010b; 2007; 2004a; 2004b; 1996a; 1996b; 1996c; 1983; EMIRBAYER; JOHNSON, 2008; THIRY- CHERQUES, 2006; WACQUANT, 2006). Essas disposições fazem a mediação entre o universo social objetivo e subjetivo, revelando-se como princípio gerador e unificador das práticas e das percepções sociais. Significa disposições inscritas nas estruturas objetivas dos espaços sociais e que também internalizadas pelo corpo e mente dos agentes, definindo tendências duradouras para as suas práticas e as suas percepções. Os agentes adquirem essas disposições pelo aprendizado implícito ou explícito a que teve acesso em sua história pessoal, incluindo família e grupos sociais.

Por meio do habitus, os agentes agem sem se valerem, a priori, do cálculo racional para definir suas práticas. Mas isso não significa que não eles permanecem operadores de suas práticas, pois o habitus estabelece um conjunto de práticas possíveis, tendo em vista as disposições internas incorporadas. A partir desse conjunto internalizado, os agentes agem racionalmente, escolhendo opções preexistentes constituídas coletivamente.

Dessa forma, Pierre Bourdieu introduz a noção de agência no estruturalismo, sem recorrer ao voluntarismo, ao existencialismo ou ao individualismo metodológico e fundamenta a compreensão das práticas social, sem a interferência dos dualismos consciência e inconsciência, razão e cultura, finalismo e mecanicismo, macro e micro estruturas. O

habitus realiza a mediação entre a estrutura social (nível macro) e a ação individual (nível

micro) (BOURDIEU, 2010a; 2002;1996a).

Os agentes de cada campo internalizam as disposições que estão em consonância com o espaço. As disposições funcionam como sistema de geração de esquemas e estratégias que correspondem aos interesses dos agentes, mas que não são criados para tal finalidade. Elas são resultados das relações de força e das disputas entre os integrantes do campo e, também, da relação do campo com outros espaços sociais.

Cada campo demanda dos agentes recursos específicos, tanto para serem aceitos no espaço, quanto para ocuparem nas posições internas de maior influência. Estas se diferenciam segundo a maior ou menor importância dos seus ocupantes na definição das regras do jogo do espaço social. Pierre Bourdieu denomina esses recursos de capital, identificando como principais subtipos o capital econômico (recursos financeiros ou ativos imobilizados), o cultural (diplomas, saber formal, história familiar), o social (rede, influência), o técnico (experiência, expertise), o simbólico (representação, prêmios).

Em cada campo, os agentes sabem quais capitais são mais valorizados e lutam para ampliar seus estoques individuais desses capitais. A entrada ou a permanência do agente em um campo exige que ele demonstre ter internalizado, em seu processo histórico, recursos específicos exigidos pelo espaço. Da mesma forma, ocorre com a ocupação das posições do campo. Quanto mais capitais acumulados, maiores as possibilidades de ocupação das posições de maior influência. São os princípios de divisão de cada espaço, aceitos tacitamente de forma naturalizada pelos agentes.

Bourdieu (2007; 2004a; 1996a;) considera que o jogo produz um encantamento, denominado illusio, que retém o interesse dos agentes e os aprisiona ao campo. A illusio pode ser entendida como libido, investimento ou interesse dos agentes pelo jogo. Ela reflete a cumplicidade ontológica que se estabelece entre as estruturas objetivas do campo e as estruturas subjetivas dos agentes, que faz com que eles não percebam que integram um processo de construção social. Presos ao jogo, os agentes o naturalizam.

Essa característica corresponde ao interesse pelo jogo que os integrantes demonstram ter pelo campo. Quanto mais illusio, mais os integrantes se motivam para as suas práticas e mais fazem apostas de investimento em recursos e nos prêmios pagos no campo. Seus movimentos são autointeressados, visando valorizar seus capitais e ampliar as chances de ganhos dos prêmios do campo (BOURDIEU, 1996a; FREE E MACINTOSH, 2008). Ressalta-se que os que são contra o jogo também estão no jogo, pois se posicionam buscando alteração nas regras do campo e o fato de estarem na luta dentro do campo significa que têm interesse no jogo. Apenas os que ignoram as disputas estão fora do jogo, sendo indiferentes, não reconhecendo as crenças dominantes no campo.

Além da illusio que motiva os integrantes do campo, outra característica importante que interfere nas práticas sociais de forma subconsciente é a doxa, conceituada por Bourdieu (1996a) como pontos de vista defendidos pelos ocupantes das posições dominantes que são internalizados e naturalizados pelos dominados. Devido à homologia entre as estruturas

sociais e mentais, o mundo aparece como autoevidente, e os modos de vida resultantes não são objeto de debate ou elaboração na vida diária (WACQUANT, 2002; 2006). As posturas

dóxicas são resultado da imposição histórica de visões dominantes e que, ao longo do tempo,

internalizadas, dispensam a ação do dominante. A constituição da doxa é definida nas relações de poder. Por deterem mais estoque de diferentes capitais, os agentes com mais capitais conseguem impor o seu ponto de vista nos campos em que realizam suas disputas. Os dominados, submetidos à visão dominante, a tomam como natural e internalizam, sem o perceberem, o discurso dos dominantes, adotando postura doxica. Essa submissão resulta da violência simbólica que não aparece como tal aos participantes.

De forma idêntica à incorporação de disposições do campo e da visão dominante, existe também a incorporação de posturas corporais, do jeito de falar, andar, vestir típico de cada campo. Essa característica foi denominada hexis por Bourdieu. Admitir a hexis implica admitir que o processo de internalização das estruturas objetivas em um campo é um processo, tanto corporal, quanto mental.

A identificação da hexis, da doxa e da illusio em um campo permite ao pesquisador percorrer etapas importantes de aproximação com o objeto de estudo, para realizar a ruptura com crenças e falsas compreensões que mais escondem do que evidenciam a realidade, até mesmo para os agentes integrantes do campo. A ruptura favorece a compreensão da realidade social, por meio de duas operações concomitantes. Primeiro, o levantamento da gênese do

campo permite evidenciar que a realidade de interesse resultou do enfrentamento de muitas

possibilidades que disputaram entre si para permanecer na história. Trata-se sempre de construção histórico-social, em que a reconstrução retira o efeito da amnésia coletiva que tem papel central na naturalização.

A natureza e os atributos dos espaços sociais são identificados pela compreensão do que está em jogo nas disputas entre os agentes integrantes desses espaços e na forma como a relação entre agentes e estruturas evolui com essas disputas. Os agentes lutam de duas formas para terem acesso a capitais que são mais valorizados na distribuição dos prêmios, ou para manter ou modificar as regras do jogo que privilegiam os capitais que distinguem os dominadores e os dominados. A primeira luta possibilita ao agente modificar a posição que ocupa no campo e a segunda responde pela manutenção ou alteração das regras do jogo vigentes que têm efeito na ocupação das posições de poder no campo.

Pode-se considerar que as ações dos agentes sociais são sempre autointeressadas, produzindo efeitos para o mundo social, sob a forma de conflitos e de relações de dominação nem sempre percebidos, conforme indica Thiry Cherques (2006, p.37).

Todo campo vive o conflito entre os agentes que o dominam e os demais, isto é, entre os agentes que monopolizam o capital específico do campo, pela via da violência simbólica (autoridade) contra os agentes com pretensão à dominação [...]. A dominação é, em geral, não-evidente, não-explícita, mas sutil e violenta. Uma violência simbólica que é julgada legítima dentro de cada campo; que é inerente ao sistema, cujas instituições e práticas revertem, inexoravelmente, os ganhos de todos os tipos de capital para os agentes dominantes. A violência simbólica, doce e mascarada, se exerce com a cumplicidade daquele que a sofre, das suas vítimas. Está presente no discurso do mestre, na autoridade do burocrata, na atitude do intelectual.

Torna-se importante ressaltar que, na perspectiva utilizada, a referência conceitual para autointeresse, de disputas e de relações de dominação não são as adotadas nas categorias próprias da economia. O autointeresse não se confunde com o interesse do agente econômico, e as disputas e relações de dominação não refletem visão cínica ou falsa para dissimular práticas (BOURDIEU, 2010b; 2010a; 2002; 1996a; WACQUANT, 2006; FREE E MACINTOSH, 2008). No caso do campo econômico, o autointeresse vinculado à valorização dos capitais econômico, cultural e social é direto. Não há problema ou tabu de os agentes se mostrarem autointeressados ou de calcularem para maximizarem seus ganhos pessoais. Todos os recursos podem ser trocados por capital econômico diretamente.

Um empresário pode decidir sobre preço de venda, perfil de sua clientela, características do processo de produção ou de produto, de métodos de comercialização ou de seleção de seus funcionários por critérios puramente econômicos. Essa é a lógica do campo. Entretanto, não é dessa forma que acontece em todos os campos. Por exemplo, no caso da ciência, da burocracia, da arte e da religião, o interesse econômico somente pode existir de forma indireta, traduzido pelas taxas de câmbio que o espaço utiliza para premiar os interesses que definem a natureza do campo. As práticas derivadas do interesse econômico tendem a ser entendidas como desvios da lógica desses campos e não são consideradas válidas. O interesse econômico é tido como tabu nesses espaços. Como regra geral, neles prevalece a economia simbólica.

Nessa economia, a representação simbólica utiliza a mediação com valores universais. O interesse pelo desinteresse é valorizado e recompensado de muitas formas. Em campos direcionados por lógicas coletivas, como o da política, burocracia, comunidade, religião, se os agentes propositadamente agirem movidos por interesses econômicos, as ações serão

consideradas ilegítimas. Se o princípio gerador desses campos for corroído, em grau elevado, pelo interesse econômico pode haver desestruturação do campo, com tendência a desaparecimento ou no mínimo à transformação (BOURDIEU, 1996c; 2004).

Dessa forma, a proposta de superação de Pierre Bourdieu das dicotomias e dualidades das ciências sociais representa uma ciência crítica e reflexiva, cujo modo de conhecer se estabelece como uma teia, com ramificações, e conceitos-chave relacionais, especialmente

habitus, campo e capital, que funcionam como feixes de laços sociais personificados,

objetivados e institucionalizados, trabalhados em relação uns com os outros, tal qual o universo social parece ser constituído (Wacquant, 2002). Seus conceitos se ajustam à realidade para traduzi-la “[...] como caso particular do possível” (BOURDIEU, 1996a, p.15).

A contribuição principal é auxiliar no desvendamento dos espaços sociais de forma a explicitar os princípios e as categorias que permitem a compreensão das propriedades mais visíveis detectadas pelas relações estatísticas ou pelos discursos dos agentes que integram espaços sociais específicos (VASCONCELOS, 2002). É como entregar o jogo dos espaços sociais, mostrar o que estava oculto e que se esperava que permanecesse tal qual ocorre na teoria da dádiva24 de Marcel Mauss.

Para a identificação das potencialidades da teoria na área específica de interesse da tese, no item a seguir, são analisados alguns estudos recentes que utilizaram a teoria da Pierre Bourdieu para compreensão de questões relevantes em ambiente de governo e em contabilidade e auditoria.

2.3.3 A aplicação da concepção de Pierre Bourdieu para compreensão de práticas de agentes