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O RAP e suas raízes: uma pequena África em cada voz

E SUA PRODUÇÃO FONOGRÁFICA

1.2. O RAP e suas raízes: uma pequena África em cada voz

Tratar sobre o RAP e principalmente a sua origem não é algo fácil ou simples, principalmente quando nos atentamos à sua essência para produzir o beat (batida, base, instrumental), as rimas/letras das músicas e o momento em que passa a fazer parte da nova cena29 cultural que se mundializa. Há muitas facetas que podem indicar a gênese dessa manifestação nas ruas dos bairros pobres de Nova Iorque.

Em sua pesquisa, Taperman (2015) constatou que a palavra rap já era comum nos dicionários de inglês no século XIV, sendo um verbo que significa “bater” ou “criticar”. Thuram (2013) enfatiza que o sentido para a palavra rap se remetia a um jogo em que os oponentes duelavam verbalmente denominado dozens (dúzias) ou dirty dozens. No jogo o desafiante deveria insultar ao máximo o seu oponente, mas deveria fazê-lo em forma de rimas.

O músico KRS-One em depoimento ao documentário “The Art Of RAP: Something Fron Nothing”, do diretor e músico Ice-T (2012), narra que as “dozens” eram referências as pessoas escravizadas; em períodos de compra e venda, os escravos mutilados ou com algum tipo de deficiência física, buscavam ridicularizar uns aos outros pelo seu “defeito” em forma de “rima falada”.

As práticas das “dozens” passaram a ser uma forma de expressão entre os recentes ciclos de MC‟s nas festas/encontros de Hip Hop. Os MC‟s Busy Bee e Kool Moe Dee foram os precursores nesse novo seguimento na arte de rimar, técnica conhecida por routines (rotinas), indo além das animações e envio de recados ao público. Duelar em forma de rimas

29 De acordo com Alves (2014, p. 06) a ideia de Cena “refere-se à espessura da manifestação artística adquire

num dado lugar” e complementa, que essa “diria respeito à ambientes musicais marcados pelo caráter de coletivismo [...] assim, contribuindo para a integração e a transformação dos lugares” (idem, p. 81).

improvisadas sobre uma batida ritmada e sincopada passou a ser a atração dos jovens hip- hoppers e que posteriormente tornaram-se as enérgicas batalhas de Freestyle30.

Contudo, o RAP é música, sendo música é arte. Essa arte evoca suas origens na Diáspora Africana (HALL, 2003; GILROY, 1993). As lutas dos afro-descendentes foram cantadas ou narradas na história pelas tradições ancestrais dos griots. Os griots são uma espécie de menestréis difusores da comunicação, do ritmo e da oralidade por meio das narrativas de histórias, das cantorias e da poesia lírica31.

Na busca da re-territorialidade32 os negros escravizados por meio das batucadas e cantos de trabalhos nas plantations dariam contornos as múltiplas expressões artístico- musicais, fundando comunidades litúrgicas (SODRÉ, 1999) 33 em todo o continente americano – no norte, caribe e no sul. Assim foi com o Reggae na Jamaica; o Spirituals nos Estados Unidos; a Cúmbia na Colômbia; a Salsa em Cuba; o Samba e o Maracatu no Brasil, entre outras manifestações ancestrais.

A musicalidade do RAP nasceria desse contexto, sendo os rappers, assim como, os toasters jamaicanos, os bluesistas estadunidenses, os emboladeiros brasileiros, entre outros artistas de ritmos afrodiaspóricos responsáveis por desempenhar uma herança similar aos griots africanos. Em todas as expressões artístico-musicais encontraremos uma “pequena África” (SOBRÉ, 1999).

A ancestralidade africana, cujo diálogo sonoro se dá através da oralidade possibilita ligar os griots músicos africanos aos DJ‟s e MC‟s/rappers Old Schooll e New Scholl34 como forma de perpetuar a territorialidade fundada em suas origens no continente africano, bem como a transmissão dos símbolos, tradições e ritos do saber coletivo que

30 Duelos de MC‟s com rimas improvisadas. 31

No livro a História Geral da África consta a existência de três tipos de griots, sendo: os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.). Normalmente são excelentes cantores, preservadores, transmissores da música antiga e, além disso, compositores; os griots “embaixadores” e cortesãos responsáveis pela mediação entre as grandes famílias em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes a uma única pessoa; os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo), que em geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não ligados a uma família. (UNESCO; MDE; UFSCar, 2010).

32 Para Santos (2001, p. 19) a territorialidade é sinônimo de “pertencer àquilo que nos pertence... esse sentimento

de exclusividade e limite ultrapassa a raça humana e prescinde da existência de Estado. Assim, essa ideia de territorialidade se estende aos animais, como sinônimo de área de vivência e de reprodução. Mas a territorialidade humana pressupõe também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o que, entre os seres vivos, e privilégio do homem”.

33 Conforme Sodré (1999, p. 241), as comunidades litúrgicas são “uma reinterpretação mítico-política da África

com sua diversidade territorial e humana [...] é a concepção que de si mesmo fazia e faz o grupo negro na diáspora”.

34 Como são denominados na Cultura Hip Hop os hip-hoppers de gerações diferentes com estilos de produção

velhos e/ou novos, seja na dança, no graffiti, no uso das técnicas performáticas dos DJ e dos rimadores (MCs/rappers).

atravessaria gerações de afro-descendentes pelo ritmo e a poesia. Conforme Anastácio (2005, p. 72):

“Muitos povos africanos não possuíam o conhecimento da escrita; para transmitir conhecimentos, acabaram desenvolvendo um sistema de signos e significados baseados em elementos sonoros e orais, permitindo, com isso, efetivar não apenas a transmissão de conhecimentos sobre suas origens e as trajetórias que lhes permitem chegar até aquele momento, mas também problematizar sobre questões específicas de seu cotidiano”.

É muito provável que o saudosismo à ancestralidade africana estivesse presente no RAP, por unir tentativas para buscar as origens através da memória afetada por anos de escravidão de pessoas negras em diversas partes do mundo.

Ainda que o jogo “the dozens” com o uso de palavras faça referência ao estilo musical que emergiu no início dos anos 1970, esta permite olharmos para uma transição da forma como as expressões da juventude pobre e negra se manifestavam culturalmente na grande cidade. Assim como observou Sevcenko (2001, p. 118), o RAP “referenda aquela mesma agenda da cultura negra, que expressa as fontes mais profundas da sua inspiração espiritual, marcadas pelas experiências excruciantes do colonialismo, do exílio, da escravidão, da segregação e da exclusão”.

Concordamos com Taperman (2015, p. 15-16) ao afirmar que “o gênero [musical] RAP tenha ganhado esse nome como extensão do uso da palavra “rap” – como vimos, já direcionada bem antes dos anos 1970. Mas é claro que o fato de que as letras R, A e P componham uma sigla que corresponda a rhitmy and poetry é um achado poderoso”, pois desperta a criatividade e a essência que uniu a ancestralidade africana aos componentes tecnológicos para “dar vida” a um novo estilo música na cultura urbana.

1.3. O surgimento do RAP no contexto da cultura urbana e o princípio de sua produção