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O surgimento do RAP no contexto da cultura urbana e o princípio de sua produção fonográfica

E SUA PRODUÇÃO FONOGRÁFICA

1.3. O surgimento do RAP no contexto da cultura urbana e o princípio de sua produção fonográfica

Orientemo-nos para a emergência do estilo musical que combinaria a ancestralidade africana à vontade da juventude urbana de se expressar com o auxílio de componentes tecnológicos para a reprodução de sons. O apelo maior dos jovens artistas era produzir arte para transformar o bairro onde viviam, mas logo essa produção passaria a integrar os processos produtivos e o circuito fonográfico.

É importante ressaltar que as sonoridades do Hip Hop apareceram no contexto da Guerra Fria, em que as disputas entre Estados Unidos e União Soviética impulsionaram o período tecnológico (SANTOS 1994), o “período da grande indústria e do capitalismo das grandes corporações, servidos por meios e comunicação extremamente difundidos e rápidos” (ALVAREZ, 1970 apud SANTOS 1994, p. 42) e que trariam impactos significativos na produção e consumo de bens e serviços. Segundo Sevcenko (2001, p. 116):

“Com a transição da tecnologia de recursos analógicos para digitais, entre o fim dos anos 1970 e o início dos 80 houve uma substituição rápida sistemática de toca- discos e LPs por leitores digitais e CDs. Dispondo dos novos equipamentos, as pessoas mais abastadas simplesmente punham nas ruas os aparelhos “sucateados” e seus discos “velhos”. Pois os jovens desempregados passaram a recolher essa “tralha” e a reconfigurar seu uso. De equipamentos destinados a reproduzir sons previamente gravados, eles os transformaram em instrumentos capazes de gerar sonoridades novas e originais”.

Conforme Camargos (2015, p. 35), “Num momento de crise social e política – e, concomitante, de avanço tecnológico -, jovens residentes nos bairros pobres de Nova York se apropriaram de elementos da indústria cultural, de objetos descartados como obsoletos no mundo do progresso da mercadoria e criaram uma prática cultural nova”. O que era apenas diversão passa a ser uma prática em que a essência cotidiana de se fazer rimas de improviso passou a ser incorporada para a composição escrita das músicas.

O RAP como cultura urbana está atrelado ao contexto das condições pós- industriais que refletiam um período de reestruturação social e econômica nos Estados Unidos. Nos anos 1970 e 1980, as cidades em território estadunidense perderam gradativamente recursos financeiros para a prestação de serviços sociais. De acordo com Tricia Rose (1997, p. 196), esse “dramático corte dos serviços sociais foi sentido de forma mais grave nas áreas pobres de Nova York, onde a má distribuição de renda era maior e, ainda por cima, a população vivia uma grave crise de habitação”.

Nova Iorque se tornou uma cidade dividida entre a parte rica (ala centro-sul da Ilha de Manhattan) composta por serviços corporativos e de informação com grupos de empresários, profissionais administrativos, tecnocratas e agentes comerciais com atividades do setor quaternário. E por outra, a parte pobre (ala norte-leste da Ilha formado pelo Harlem e os bairros do entorno) ocupada por uma grande massa de operários de fábricas, desempregados e ou em condições de subemprego.

Bairros como os da região sul do Bronx, o Brooklyn, e as alas jamaicanas do Harlem e Queens foram os mais afetados com a crise habitacional. Nessas localidades, caribenhos e afro-americanos representavam a grande parcela da população pobre.

Segundo Rose (2007, p. 199), essas “comunidades ficaram entregues aos desenvolvimentistas, aos refúgios dos traficantes, aos centros de reabilitação de viciados, aos crimes violentos, às hipotecas e aos serviços municipais e de transportes inadequados”. O Bronx, berço do Hip Hop, foi um dos bairros duramente impactados em relação às desigualdades socioespaciais promovidos pela política local.

Nas palavras de Berman (1982, p. 274),

“O Bronx [era] mesmo uma senha internacional para o acúmulo de pesadelos urbanos de nossa época: drogas, quadrilhas, incêndios propositais, assassinatos, terror, milhares de prédios abandonados, bairros transformados em detritos e em vastidões de tijolos espalhados”.

A cidade de Nova Iorque, e mais específico o bairro do Bronx, passou por um processo violento de reestruturação urbana, promovido desde o primeiro mandato do prefeito Robert Moses. Durante os anos 1950 e 1960, inúmeros edifícios nessa área foram demolidos para a construção de vias expressas, como por exemplo, a “Cross-Bronx-Expressway”, que devastou conjuntos residenciais e comerciais para a conclusão da via expressa, mas principalmente uma comunidade étnica que residia naquela área.

Conforme Rose (2007), no sul do Bronx foram demolidas cerca de 60 mil residências, que forçou o deslocamento de 170 mil pessoas para as áreas sem investimentos por parte do governo local. Os bairros pobres tornaram-se super povoados e sem infraestrutura e manutenção dos equipamentos urbanos para a vida em sociedade (Imagem 4).

Imagem 4 – Área residencial no Bronx, sob o descaso do poder público local, na década de

1970.

Nesse período eram recorrentes incêndios propositais nos conjuntos habitacionais como forma de expulsar a população pobre, ou mesmo, para que alguns proprietários recebessem o pagamento de empresas seguradoras. Segundo Berman (2009, p. 130), durante esse período

“Nova Iorque perdeu aproximadamente 2.000 prédios por ano para os incêndios; as maiores perdas ocorreram no Bronx. Os incêndios apareciam como uma força inexorável; a cada ano, eles atingiram mais e mais os respeitáveis vizinhos. Por que essas pessoas iriam destruir seu próprio mundo? Havia uma especulação sem fim, subvenções fundacionais, conferências. Ninguém realmente entendia o que vinha se verificando”.

O silêncio da imprensa local inibiu a luta dos moradores do sul do Bronx e de outras áreas de Nova Iorque. Era constante o uso de imagens das ruínas e dos incêndios como algo ficcional para ser explorado por fotógrafos e documentaristas. As imagens da destruição tornaram-se um ícone da cultura midiática (ROSE, 1997).

A questão está atrelada a exclusão étnico-racial e espacial em Nova Iorque; essas ações tornaram-se uma estratégia do mercado imobiliário para segmentar a metrópole. As pessoas não-negras composta por locatários e pequenos comerciantes migraram para o distrito de Westchester e parte norte do Bronx, deixando o sul do Bronx isolado pela ausência estatal e morada dos negros, hispânicos e alguns judeus.

Nas palavras de Rose (1997, p. 201), no imaginário dos estadunidenses o Sul do Bronx tinha se tornado o principal “símbolo do desgosto americano”. Os efeitos da política municipal nova-iorquina, sob o comando de Moses e que se alastraram durante as décadas de 1970 e 1980 nas gestões subseqüentes, foram marcados pela ruína e o isolamento que seriam posteriormente revertidas por vida, energia e vitalidade.

Grupos de jovens, sobretudo negros, fizeram do sul do Bronx a resignificação para expressarem sua identidade com o lugar como forma para recuperar a esperança quase que pedida (HERSCHMANN, 2005; ROSE, 1997). Era um momento de “maior miséria e angustia” (BERMAN, 2009) que os jovens negros estadunidenses, jamaicanos, porto- riquenhos com suas tradições orais, estabelecerem sua teia cultural para dar sentido a hostilidade urbana em resposta a imprenssa e aos governantes da cidade.

É desse contexto social, étnico e espacial que emerge a cultura Hip Hop, “arraigada à experiência local e específica e ao apego a um status em um grupo local ou família alternativa [...] com vínculo intercultural” (ROSE, 1997, p. 2002). Nas palavras de Berman (2009, p. 130)

“Ninguém nos anos 1970 imaginaria que um fenômeno do gênero fosse viável. Naqueles dias, os jovens daquelas vizinhanças criaram porque tinham que criar; eles

não tinham como evitar, eles não tinham como parar. O Bronx, acima de tudo, converteu-se num espaço mais culturalmente criativo do que nunca. Em meio à sua própria morte, ele renasceu.

A paisagem da metrópole em decadência forneceu elementos que serviram de criatividade para a produção artística de pessoas à margem da sociedade. O Hip Hop surgiu também como forma de conter as profusões de atos violentos crescentes na cidade entre os jovens reunidos em gangues, que deixaram os confrontos brutais para apenas duelarem por meio da arte35.

Como parte desse contexto, surgiu, em 1976, o primeiro grupo de RAP da história. “Em um ato de criatividade ousada, o quinteto The Furious Five formado pelos MC‟s Melle Mel, Kidd Creole, Keith Cowboy, Scorpio e Rahiem, produzido pelo DJ Grandmaster Flash, implanta uma linha de versos completos e rimados36. Surge a primeira letra de rap” (LEAL, 2007, p. 32).

Até então, a música RAP (batida e rima) não havia entrado na vida e no linguajar dos hip-hoppers. O seguimento que o precede, o Break Beat era a trilha sonora original do Hip Hop. O RAP como segmento musical dentro da cultura teve início no ano de 1978, quando o projeto do DJ Grandmaster Flash com The Furious Five. Os artistas (DJ‟s e MC‟s) passaram a executar os sons (scratch, batidas e rimas) sobre versões instrumentais de vinis de Funky e realizá-los em apresentações “ao vivo”.

As batalhas de gangues, a partir de então, resultariam em uma “disputa” mais organizada pela via da arte musical nos encontros em espaços públicos. Assim, nascia o RAP! No entanto, o sucesso entre os jovens dos bairros pobres de Nova Iorque fez com que a trilha sonora da emergente cultura urbana Hip Hop atraísse proprietários de casas noturnas, clubes e empresários da música fazendo com que o RAP, do Bronx, alcançasse outras proporções.

O RAP que surgiu na metade da década de 1970 com o uso de versões instrumentais de Funky-Soul e a composição de rimas, via sua recente cena em casas noturnas ser ameaçada pelo período da Disco Music também conhecida como discoteca. A Disco Music, cujo fato precursor é desconhecido, foi muito difundida em danceterias em Nova Iorque e na Filadélfia. O som da Disco Music deriva do Funky, no entanto descaracterizando-

35 Os momentos que expõem a transição dos confrontos entre gangues nas ruas de Nova Ioque para a

organização de hip-hoppers foram encenados no filme Warriors - Os Selvagens Da Noite de 1979, sob direção de Walter Hill.

36 Pode-se afirmar que a expressão rapper (apresentado de forma muito contraditória entre os integrantes da

cultura Hip Hop) surgiu no momento em que os MC‟s deixaram de ser apenas auxiliares dos DJ‟s na interação e animação do público com rimas improvisadas nos encontros de Hip Hop para serem escritores/compositores de versos memorizados com o intuído de fazer música RAP.

o das suas origens da cultura feita por negros, pois produzida para ser um produto modelo para o mercado fonográfico37.

De acordo com Leal (2007, p. 34), Afrika Bambaataa iniciou uma “campanha para manter a autenticidade do funky, que ascendia com o auxílio do hip-hop”. Os usos das versões instrumentais usadas pelos grupos de RAP que movimentavam os encontros da cultura, fizeram com que muitos artistas de Funky-Soul ressurgissem no gosto popular.

O respeito pelas origens e a saudação pela produção musical eram exaltadas para manterem vivas as tradições e simbologias da cultura negra. Mas a Disco Music não durou muito no mercado. O RAP, por sua vez, que era conhecido em um nicho cultural restrito e executado em pequenos clubes e espaços públicos logo, chegou ao circuito controlado pelas grandes gravadoras.

1.4. Um divisor de águas nas ruas de Nova Iorque: Sugarhill Record’s e a