• Nenhum resultado encontrado

5. PROPOSTA DE PROGRAMA EXPOSITIVO

5.3. Recepção

Nas primeiras duas áreas da exposição apresentadas, procurei tratar os vários aspectos relacionados com a música por si só (mensagem), assim como os diferentes domínios relacionados com a sua produção e performance (emissão). Assim sendo, procurarei agora abordar as matérias que se relacionam com as práticas de fruição da música (recepção), tendo como base os vários meios a partir dos quais esta chega aos ouvidos do receptor.

Esta área da exposição deverá procurar retratar o que mudou com o passar dos anos relativamente aos contextos e formas de recepção musical, tentando, sempre que possível, documentar que implicações essas mudanças tiveram no próprio receptor.

A sequência deverá ser cronológica e dividida em três momentos: um primeiro, compreendendo o período que vai até à vulgarização dos concertos públicos no século XVIII; um segundo até ao aparecimento do fonógrafo e da rádio, no final do século XIX; e um último de então para cá (DEUTSCH, 2009).

No primeiro momento a música era, acima de tudo, ouvida no decorrer da realização de outras actividades relacionadas com as dinâmicas da sociedade58, fossem estas de carácter religioso (cerimónias,

procissões, romarias, peditórios...), laboral (vindimar, ceifar, remar...), social (casamentos, funerais, bailes...), comercial (feiras...), funcional (comunicar à distância, convocar, informar acerca de perigo...) ou mesmo militar (guerra). Sem ser nessas situações, a música marcava ainda presença no seio das cortes.

Quer isto dizer que a música não existia enquanto actividade autónoma, antes cumprindo o seu papel ao serviço da comunidade, da corte ou da igreja59. No entanto, com o passar dos anos, e no

seguimento dos apoios concedidos pela aristocracia e igreja, vários músicos passaram a poder desenvolver o seu trabalho de forma continuada, sendo este apresentado, respectivamente, em ocasiões de natureza diversificada e no serviço religioso.

Sendo os grupos sociais mais elevados possuidores de formação musical, a música torna-se também mais comum em ambientes domésticos, situação que o desenvolvimento dos cordofones com teclado (clavicórdios, cravos e, mais tarde, piano) veio favorecer60.

Entretanto, entre a crescente população urbana das grandes cidades europeias, vão tomando forma várias actividades musicais, entre outras a ópera. Por questões que se prendem nomeadamente com ambições sociais ou políticas, os apoios prestados por aristocratas ou homens de negócio bem sucedidos aumentam. Daqui resultará, por exemplo, o financiamento dos teatros de ópera, entre eles o Teatro San Cassiano, em Veneza, onde em 1637 decorrerá a primeira apresentação pública de uma ópera. Esta seria a primeira vez que uma audiência pagaria para ver uma performance musical (DEUTSCH, 2009: 4).

58 “Music defined the ceremonies of the society, marked the passing of the seasons, and put listeners into the state of mind through which they might experience the divine.” (DEUTSCH, 2009: 2).

59 “Throughout this entire first period most musicians were therefore the servants of the church, or the community, or the court.” (DEUTSCH, 2009: 3).

60 “Keyboard instruments generally begin to gain ascendancy, especially in domestic environments, and music is composed to entertain and enlighten the growing numbers of amateurs who played these instruments for their own pleasure or the entertainment of their families and associates.” (DEUTSCH, 2009: 4).

Também as orquestras ganham progressivamente maior destaque, beneficiando para o efeito dos mesmos apoios. Como tal, a apresentação de obras de grandes compositores como Mozart ou Haydn passa a exigir instalações projectadas especificamente para o efeito. Daqui resultaria, já no século XVIII, a generalização de salas de espectáculos nas principais cidades europeias, salas essas onde os concertos públicos passam a contar com a presença assídua de um público educado, próspero e com aspirações sociais (ARDLEY et al, 1997: 137).

Este momento marca, simbolicamente, o início de um segundo período na história da recepção musical, onde a música passa a ser fruída por si só e não apenas enquanto suporte de uma cerimónia religiosa, de um actividade laboral, de uma festa, etc. Embora conquistando essa autonomia, a fruição da música continuará, contudo, a desempenhar um papel social. Veja-se, por exemplo, como, no caso da ópera, os espectadores prestavam especial atenção ao vestuário ou ao facto de serem vistos pelos seus pares (ARDLEY et al, 1997: 138).

Durante este período, proliferam por todo o lado as salas de concertos e teatros de ópera, edifícios que se vão reconfigurando do ponto de vista dos seus espaços, funcionalidades e acústica, adaptando-se assim às necessidades de um aumento de públicos resultantes do aparecimento da classe média, isto no seguimento da Revolução Francesa.

Esta tendência alarga-se a outros espaços, onde são desenvolvidas programações mais populares, abordando géneros como a ópera, a opereta, a zarzuela ou o teatro de revista61.

É em plena época de afirmação de uma esfera cultural pública que se dá a invenção do fonógrafo (1877) e mais tarde da rádio (1896). Este momento marca o início de um terceiro período (que se mantém até hoje) onde a música se democratiza, passando a poder ser ouvida sem a presença do músico, algo que até então só era possível com recurso a caixas de música ou outros automatofones.

Embora de uma forma substancialmente diferente, este momento constitui-se também como um regresso à possibilidade de ouvir música ao mesmo tempo que se realizam outras actividades, tendência que seria reforçada com a invenção do walkman em 1979 e com o sucesso do iPod já este século (DEUTSCH, 2009: 9). De tal forma assim é, que hoje em dia a percentagem de música que fruímos directamente através

61 Em Portugal um desses casos é o Teatro Circo Coliseu dos Recreios. “Este último assumiu uma importância particular, não apenas pela diversidade da sua programação (circo, opereta, zarzuela, ópera) como, sobretudo, pela dimensão da sua

de espectáculos ao vivo é bastante reduzida comparativamente com as restantes audições que fazemos, isto embora nunca como até hoje tenha havido tanta oferta de música ao vivo.62

A revolução que se iniciou com o sucesso do fonógrafo e da rádio foi, por outro lado, exponenciada na sequência de outras inovações tecnológicas de que o maior exemplo será a electricidade. Com esta desenvolveram-se equipamentos electrónicos de captação, amplificação e reprodução do som, que viriam a originar alterações bastante significativas nas práticas musicais, tanto de performance como de recepção (TILLY, 2010a: 43). Para o final do século XX ficaria ainda o desenvolvimento do computador pessoal e da internet, que mais uma vez teriam repercussões significativas nas práticas até aí adoptadas, nomeadamente tornando possível que o acesso à música seja efectuado em qualquer momento e a partir de qualquer local.

Posto isto, e tendo em conta os três períodos indicados, será importante que a exposição aborde para cada um deles as formas como a música foi fruída ao longo dos séculos e em diferentes contextos, por exemplo:

 ao serviço da comunidade na Idade Média;

 no tempo dos trovadores e jograis à época do reinado de D. Dinis (1261-1325);  nos serões da corte do tempo de D. João I (1385-1415);

 no decorrer das peças de Gil Vicente (1465-1537);

 na liturgia durante o apogeu da polifonia portuguesa (séculos XVI e XVII);  nos espectáculos de fantoches de António José da Silva (1705-1739);  nas primeiras óperas durante os reinados de D. João V e D. José I;

 no decorrer das aulas na Escola de Música do Conservatório durante a direcção de João Domingos Bomtempo (1775-1842);

 nos serões da aristocracia e burguesia da primeira metade do século XIX, onde a música impressa desempenhava um papel fulcral;

 nas festas populares onde, primeiro, se dançou o lundum;

 nas tabernas de Lisboa onde o fado começou a ganhar a sua visibilidade;  nos ambientes estudantis de Coimbra;

 nos bailes populares e da alta sociedade;  nas festas populares;

62 “Through the 20th century, more and more people received music primarily in its recorded form. Today, one suspects that live music makes up so small a percentage of the amount of music we consume as to be almost insignificant culturally.” (DEUTSCH, 2009: 10).

 nas revistas de sucesso realizadas no Parque Mayer no princípio do século XX;

 em casa com recurso a caixas de música, rolos de pianolas e mais tarde fonogramas, rádio e televisão;

 no cinema, antes e depois da introdução do “sonoro”;  nos salões de dança e discotecas;

 nas diferentes tipologias de salas de concertos antes e depois da electrificação do país e correspondente introdução dos equipamentos de som;

 com recurso a reprodutores portáteis como o walkman ou o iPod ou através da utilização de um computador pessoal com ligação à internet.

Sendo meramente indicativos, os exemplos referidos, juntamente com a contextualização que os antecedeu, deverão ser usados como ponto de partida para a selecção de um conjunto de momentos específicos capazes de representar a variedade de contextos e formas como ouvimos música ao longo dos séculos. A selecção desses momentos deverá basear-se em fontes documentais e iconográficas.

Estas últimas serão, na medida do possível, o fio condutor da exposição, pelo que a sua visualização sequencial deverá funcionar como uma banda desenhada, ou seja, contando uma história.

Tal como noutros núcleos da exposição, nos casos em que não seja possível contar com fontes iconográficas recorrer-se-á mais uma vez à ilustração. Independentemente dessa opção, os vários momentos deverão ser acompanhados de breves textos explicativos, referindo em particular a situação que pretendem documentar e situando-a no tempo.

Para alguns casos específicos serão recriados ambientes, procurando dessa forma transportar o visitante para dentro da história que se está a contar. A selecção das situações a encenar deverá ser feita com critério dentre aquelas que sejam consideradas de maior importância para a compreensão do núcleo e que, simultaneamente, tenham maior potencial expositivo, nomeadamente património associado. Dada alguma similaridade de matérias, será importante que as situações seleccionadas não se confundam com as de outros núcleos, pelo que o foco deverá estar sempre do lado do ouvinte / espectador e não do músico.

Uma dessas encenações será exactamente a que tem a ver com a audição de rádio. Além de recriar o ambiente em que essa audição decorria, por exemplo, a escuta colectiva “(...) em recintos públicos, em casa de particulares ou mesmo na rua (...)” (SILVA, 2010: 1083), esta encenação terá uma ligação com o núcleo anterior na medida em que os visitantes poderão aqui ouvir, em directo, as emissões de rádio que nessa altura estiverem a ser produzidas por outros visitantes na secção dedicada ao radialista (ver 5.2.5.).

Também deverão ter o seu destaque na exposição outras encenações em que a música chega ao receptor através de algum tipo de equipamento: caixas de música, pianolas, gira-discos ou televisão, mas também altifalantes ou amplificadores. Para as diferentes tipologias destes equipamentos serão produzidos textos explicando a sua relevância.

De igual modo não deverá faltar uma referência à dança, em especial pelo que esta, através do movimento, tem de importante para o próprio desenvolvimento da música. Veja-se, por exemplo, como alguns dos géneros coreográficos tradicionais portugueses “(...) chegaram ao séc. XX enquanto prolongamentos dos gestos de trabalho (...)” (TÉRCIO; FAZENDA, 2010: 358). Esta importância da dança deverá também ser abordada tendo em conta o seu lado social, nomeadamente pela sua associação à festa.

Para que o visitante possa, em certa medida, colocar-se no papel de receptor, cada um dos momentos retratados terá a sua banda sonora, que, tal como noutros núcleos, poderá ser apreciada com recurso aos áudio-guias.

Por outro lado, uma vez que a fruição da música se faz de forma privilegiada em espaços próprios para o efeito, impõe-se, igualmente, uma menção aos palcos onde esta ganha vida, ou seja, as salas de espectáculo. Posto isto, os conteúdos produzidos deverão introduzir aos visitantes a noção de que nem sempre a música foi executada em salas próprias para o caso, sendo essa uma tendência que se começou a generalizar no decorrer do século XVIII.

A este propósito será importante referir algumas salas portuguesas históricas, por exemplo:

 a Ópera do Tejo, destruída pelo terramoto de 1755 apenas poucos meses passados da sua inauguração;

 Teatro Nacional de São Carlos que, inaugurado em 1793, seria quase 40 anos depois um substituto à altura da Ópera do Tejo;

 Teatro Nacional de S. João, inaugurado em 1798, que, tal como o S. Carlos, começou por ser uma sala de ópera;

 Coliseu dos Recreios, inaugurado em 1890;

 Teatro Maria Vitória, no Parque Mayer, um dos inúmeros espaços associados ao sucesso do teatro de revista;

 Hot Clube de Portugal, o mais antigo clube de jazz português, em actividade desde 1948;  grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian;

 Rock Rendez Vous, um clube que foi um espaço central do movimento do rock português de início dos anos 80 do século XX;

 A Casa da Música que, além de um ícone arquitectónico, é a principal sala de concertos da cidade do Porto.

Para que estes espaços possam ser explicados enquanto elementos que desempenham um papel relevante para a fruição musical, deverão ser apresentados com recurso a maquetas e/ou fotografias.

A importância dos espaços deverá também ser realçada na sua relação com a dança, pelo que, entre outros, não deverão faltar menções a salões de baile ou discotecas. Precisamente pela relevância que a dança assume nesta história, os visitantes deverão ter aqui acesso a um espaço interactivo, onde serão convidados a expressar-se através de movimentos. Estes serão interpretados através de sensores, influenciando assim a banda sonora em fundo.

Por fim, e porque a música também pode ser fruída em museus, a exposição deverá encerrar a olhar para o espelho, com uma referência à própria história do Museu da Música, destacando o seu trabalho passado e presente em prol da salvaguarda, valorização e divulgação do património musical português.

Cumprindo, em certa medida, um círculo, ao sair desta área o visitante será conduzido à plateia de uma pequena sala de concertos (a mesma a que acedeu a partir do núcleo dedicado à performance e criação - ver 5.2.1.5.), onde poderá sentar-se e apreciar o que quer que seja que esteja a decorrer, nomeadamente as performances de outros visitantes.

No documento A MÚSICA EM EXPOSIÇÃO: UMA (páginas 93-99)