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A redefinição das etapas da vida

No documento Psicologia Facil - Ana Merces Bahia Bock (páginas 169-173)

FENÔMENOS DA CONTEMPORANEIDADE E NOVAS

17.3 A redefinição das etapas da vida

Ao longo do século XX, as teorias psicológicas lidaram com o desenvolvimento humano a partir de etapas bem definidas: infância, adolescência, idade adulta e velhice.1 Para cada etapa correspondiam expectativas quanto a habilidades, capacidades e modos de participação nos grupos sociais próximos e na sociedade. Ao mesmo tempo em que as faixas etárias se constituíram em referências importantes para nortear as expectativas sociais, também se considerou que elas poderiam variar significativamente entre grupos sociais ou culturas diferentes, em função de condições objetivas de vida – maior ou menor usufruto dos bens materiais e culturais da sociedade, maior ou menor exposição a situações de risco. Mas, mesmo considerando essas variações próprias dos diferentes grupos humanos, também se construíram alguns consensos entre os diferentes povos e culturas – signatários de tratados internacionais – quanto ao que é direito das crianças, por exemplo, considerando que suas capacidades e habilidades estão em desenvolvimento e é obrigação da comunidade à qual pertencem salvaguardar o direito à infância. Nesse contexto, as crianças-soldados nas guerras ou no trabalho precoce são consideradas como situações sociais críticas, por conta do

prejuízo ao seu desenvolvimento humano.

sociais dos membros de cada uma dessas categorias etárias, ou seja, na relação adulto- criança, por exemplo, estavam estabelecidas as responsabilidades do adulto quanto aos cuidados, apoio e orientação das novas gerações e o reconhecimento dessa autoridade por parte das crianças. O término da primeira infância (por volta dos 7 anos) era ritualizado pelo início do processo de alfabetização. Com o adolescente, caracterizava-se uma relação

assimétrica com o adulto, que continuava a ser reconhecido em sua experiência e histórias para contar, embora objeto da rebeldia adolescente. A idade adulta se marcava pela entrada no mundo do trabalho e pela constituição de uma nova família. E a passagem para a velhice se caracterizava pela aposentadoria, pela “improdutividade” e pela responsabilidade das

gerações mais novas para com o seu bem-estar.

Neste momento da História, é possível observar uma alteração importante nessas etapas, e já nos atrapalhamos com aquilo que podemos ou devemos esperar da conduta da criança, do adolescente e mesmo dos adultos e dos “idosos”. Nós nos surpreendemos com a

produtividade daqueles que, até outro dia (!), eram considerados aposentados, ou com o padrão de conduta sexual dos adultos, que assumem comportamentos atribuídos aos jovens. Enfim, o que está acontecendo? Vamos por partes.

A criança, do comercial e da casa do vizinho, decide sozinha o que vai comer ou vestir. Os aniversários são festejados no salão de estética ou no spa. Aquilo que era da ordem da

fantasia (“brincar” com o sapato de salto alto da mãe, com seu batom, se vestir com o paletó e a gravata do pai) e da imitação dos adultos se transforma em realidade e em comportamentos praticados, aceitos no cotidiano – e, com frequência, incentivados pelos adultos próximos e… pela propaganda, com seus inúmeros produtos destinados às crianças, novos e potentes

consumidores.

Esse fenômeno, no final do século passado, foi nomeado adultização precoce.

Inicialmente, o conceito foi produzido para identificar um fenômeno bem diferente. Rinaldo Arruda, em sua pesquisa com crianças e adolescentes pobres e autores de ato infracional, na década de 1980, conceituou a adultização precoce como se referindo às “crianças que

assumiam lugares sociais destinados aos adultos – postos de trabalho na economia formal e informal – e se tornavam provedores da renda familiar”. Portanto, ao comporem a renda

familiar e garantir a própria sobrevivência e a dos familiares, essas crianças (e adolescentes), em vez de serem consumidoras da renda familiar, eram provedoras, e, portanto, ocupavam o lugar destinado aos adultos em nossa sociedade. Contudo, como nenhum fenômeno social se institui a partir de uma única variável ou fator, é importante lembrar que, em meados da segunda metade do século XX, há também um movimento, com apelos éticos, contra a propaganda cujo alvo era a criança, em função dos prejuízos (então desconhecidos) que o estabelecimento de necessidades artificiais em idade precoce poderia ocasionar. O resultado é o que constatamos atualmente: as crianças são “pequenos adultos” em seus hábitos,

linguagem, autonomia, e os adultos, que permanecem com responsabilidade legal pelas crianças, estão bastante confusos quanto ao exercício de suas funções parentais de cuidado e proteção e com pouca ou nenhuma autoridade sobre as escolhas de seus filhos.

Outro aspecto importante desse fenômeno que envolve a infância é o da erotização precoce. O livro O cabaré das crianças2 demonstra como alguns programas infantis veiculados pela televisão contribuem para isso. Neste início de século, podemos constatar ícones como músicas e um tipo de vestimenta que reitera esse fenômeno. Nas creches e centros de

educação infantil é possível escutar as músicas de axé e funk e verificar o sucesso do hip-hop entre as crianças, e não mais as músicas infantis em que se atirava “o pau no gato” ou se

lamentava que “o cravo brigou com a rosa”. Uma mudança que o adulto introduz porque deixa deslizar para o universo infantil suas preferências (sexualizadas), sem ponderar sobre os efeitos disso na criança, que na primeira infância aprende por imitação, e o adulto é seu modelo de aprendizagem.

Na etapa correspondente à adolescência as mudanças observáveis são mais radicais. O exemplo mais evidente e que confunde a todos quanto ao modo de lidar é o da sexualidade. A iniciação sexual se antecipa para os 15 anos e depois para os 13, e agora já se fala de prática sexual aos 10, 11 anos. Aqui o fenômeno não se refere à pedofilia, nem à prostituição de crianças e adolescentes, mas à antecipação de uma conduta esperada para a juventude ou idade adulta – a prática sexual –, em que não só o desenvolvimento biológico está completo, mas os aspectos psicológicos julgados importantes para a vida sexual – autocuidado e cuidado com o outro, capacidade de estabelecer vínculos afetivos duradouros – estão ou podem estar desenvolvidos. E, nessa precocidade de vida sexual, os padrões de conduta também são

outros: as meninas e os meninos “ficam”, e ficam com vários parceiros em uma mesma festa, e ficam indiscriminadamente com meninos ou meninas, sem que isso tenha uma conotação de homossexualidade quando o(a) parceiro(a) que “beija na boca” é do mesmo gênero.

Outro aspecto relevante que marca esse novo modo de ser adolescente é o questionamento radical da autoridade do adulto. O conflito de gerações é um fenômeno antigo, em função da necessidade de as novas gerações instituírem sua identidade, sua marca no mundo e não repetirem as gerações anteriores, e isso se exemplifica com a característica da rebeldia

atribuída à adolescência/juventude. Contudo, aqui estamos falando de outro fenômeno. Aquilo que, segundo Eric Hobsbawm, é o fenômeno mais relevante e enigmático do final do século XX: a negação da autoridade do adulto, a ruptura com os valores da tradição e da história, o fato de “os pais terem pouco a ensinar a seus filhos”. Ao qual se acresce o fato de os

adolescentes serem considerados agentes sociais autônomos, livres da tutela do adulto e alvos do mercado de consumo, que se dirige diretamente a eles sem a intermediação dos adultos. São bons consumidores!

Ao usarmos a referência de saída da casa dos pais como elemento que marca a passagem para a idade adulta, com o exercício da autonomia quanto à realização de um projeto de vida próprio – entrada no mercado de trabalho e a possibilidade de constituição de nova família –, constata-se uma contradição ou algo que ainda não compreendemos. Esse adolescente

autônomo prolonga, cada vez mais, sua permanência na casa dos pais. Por quê? As hipóteses para compreender esse novo fenômeno são inúmeras: as exigências de maior especialização e aprimoramento para a entrada no mercado de trabalho e, portanto, o jovem usufrui dos

rendimentos dos pais para garantir sua sobrevivência material; a acomodação propiciada pela sua vida autônoma aliada ao grau de conforto da casa dos pais; as novas possibilidades de relacionamento amoroso, que não implicam a coabitação, convivência marital, etc. A resposta ou as respostas para esse novo fenômeno estão por ser construídas.

Nessa redefinição das etapas da vida, há um aspecto bastante relevante que interfere na passagem da adolescência/juventude para a idade adulta: o fenômeno da idealização da juventude. Esse momento da vida sempre foi idealizado pelos aspectos que o constituem: beleza, força física, “o futuro pela frente”. Atualmente, além da idealização há uma tendência

de prolongar esse estado.

Para isso foi criado um conceito – adultescência –, quando os adultos têm um padrão de conduta relativo a vestuário, alimentação, lazer e comportamento sexual equivalente ao dos adolescentes. Nesse cenário cultural inédito, o que prepondera são os modelos adolescentes, da juventude; isso não significa regressão psicológica, mas a consagração da juventude como ideal de existência para todos. Se a juventude e o hedonismo funcionam como referências de conduta, não há constrangimento em exibir os gostos, hábitos e estilo de vida de outra idade. Ao se superar as estritas compartimentalizações de comportamentos relativos a cada fase da vida, e como não há mais a impaciência dos jovens em tornar-se adultos e nenhum pudor do adulto em vestir a criança à sua semelhança e ele se vestir com a camiseta da Barbie ou usar a minissaia da filha adolescente, tornou-se legítimo e compreensível que as pessoas não

queiram envelhecer, permanecendo como crianças grandes ou adolescentes.3

E, ao envelhecer – um aspecto inexorável, embora bastante retardado do ponto de vista biológico e psicológico, atualmente –, vejamos o que ocorre…

O aspecto a ser ressaltado quando se aborda a velhice é a discussão infindável, em várias partes do mundo, sobre a referência etária que marca o seu “início”. Essa discussão está

relacionada com a longevidade, ou seja, enquanto a média de vida estava nos 50 anos, a idade de referência para considerar uma pessoa “idosa” era bastante diferente do que quando a média de anos de vida é de 73 anos, na cidade de São Paulo, por exemplo. Esse aspecto demonstra uma variação significativa, ao longo do tempo, em função das condições objetivas de vida e dos avanços da medicina e da farmacologia, que garantem uma longevidade maior. Outro aspecto que contribui para essa polêmica, em nível internacional, é que com o aumento do tempo de vida, o número de aposentados que vivem às expensas da previdência social aumenta significativamente; isso tem um custo financeiro e, portanto, há uma tendência a postergar a idade em que as pessoas passam a ter esse benefício, sendo mantidas por mais tempo no mercado de trabalho. E, finalmente, como considerar velhas (como sinônimo de improdutivas) pessoas que permanecem trabalhando, são produtivas e produzem riquezas? Ou seja, a discussão sobre a idade em que se inicia a velhice ou quando alguém é considerado velho, além de aspectos culturais de cada país ou povo, traz também um aspecto econômico importante e revela, contraditoriamente, que o ideal da juventude coexiste com a valorização dessa faixa etária, particularmente nos aspectos relativos à contribuição social desse grupo. E esse fenômeno coexiste contraditoriamente com a negação dos valores da experiência.

Neil Postman,4 especialista norte-americano em educação e mídia, ao discutir o

desaparecimento da infância afirma que estamos no limiar de um tempo – que já é visível! – em que as diferenças marcantes entre as idades só existirão nos dois extremos: a primeira

infância (até os 7 anos) e a senectude (a velhice), e lamenta que esse processo seja

No documento Psicologia Facil - Ana Merces Bahia Bock (páginas 169-173)