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1. POLÍTICA URBANA E DIREITO URBANÍSTICO

1.2. Regime jurídico da produção social do espaço urbano

Conforme mencionado anteriormente, o Brasil conta com a presença de cidades desde sua colonização. Porém, foi apenas a partir do século XIX que elas passaram a ser o local principal de habitação, aumentando sua importância econômica. A partir do crescimento de algumas cidades no decorrer do século XIX, o Poder Público passou a dar mais atenção à ordenação de espaços urbanos. No caso de São Paulo, por exemplo, Raquel Rolnik destacou a criação de algumas normas que tratavam sobre o uso e ocupação do solo, definindo traçados

52 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. p, 37.

53 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

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de ruas e calçadas e até mesmo dispondo sobre o tamanho de cortiços populares.54 Ermínia Maricato, por sua vez, diz que:

As reformas urbanas, realizadas em diversas cidades brasileiras entre o final do século XIX e início do século XX, lançaram as bases de um urbanismo moderno “à moda” da periferia. Eram feitas obras de saneamento básico e embelezamento paisagístico, implantavam-se as bases legais para um mercado imobiliário de corte capitalista, ao mesmo tempo em que a população excluída desse processo era expulsa para os morros e as franjas da cidade.55

No que diz respeito ao urbanismo, Hely Lopes Meirelles compreende-o como o:

[...] conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade. Entendem-se por espaços habitáveis todas as áreas em que o homem exerce coletivamente qualquer das quatro funções sociais: habitação, trabalho, circulação e recreação.56

Já para Odete Medauar, o urbanismo “diz respeito às atividades destinadas ao uso e à transformação do território”, visando também “a tornar compatíveis entre si os diversos usos do território, levando em conta os limites fixados pela destinação e os vínculos relativos a finalidades específicas”. Por ser uma função pública carecedora de normas reguladoras, Medauar intitula o Direito Urbanístico como o regime jurídico do urbanismo57. Nesse sentido, Lilian Pires também retrata o Direito Urbanístico como uma consequência do urbanismo58.

É importante destacar que, os estudos sobre Direito Urbanístico são recentes no Brasil. De acordo com o mapeamento feito pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) acerca das 25 obras pioneiras no assunto59, afere-se que as datas de suas publicações

54 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 1997. p, 37-42.

55 MARICATO, Ermínia. “Urbanismo na periferia do mundo globalizado: metrópoles brasileiras”. In: São Paulo em perspectiva, v. 14, n. 4, p. 21-33, 2000. p, 22.

56 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. São Paulo: Malheiros. 2013. p, 491.

57 MEDAUAR, Odete. “Panorama e evolução do direito urbanítisco”. p, 15-25. In: MEDAUAR, Odete. SCHIRATO, Victor Rhein. et. al. (coord.). Direito urbanístico: estudos fundamentais. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019. p, 15.

58 PIRES, Lilian Regina Gabriel Moreira. Função social da propriedade urbana e o Plano Diretor. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. p, 43. 59 VINTE e cinco obras pioneiras em Direito Urbanístico. São Paulo. Disponível em: < http://www.ibdu.org.br/eficiente/sites/ibdu.org.br/pt-br/site.php?secao=noticias&pub=102>. Acesso em: 10 nov. 2017.

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coincidem com o período em que o Brasil passou pelas revoluções demográfica e urbana, a partir da década de 1950.

Também decorrente dessa pouca idade, Vinícius Monte Custodio ressalta que não há consenso na doutrina sobre a definição de Direito Urbanístico. Assim, dividiu essa divergência em três correntes distintas: conceito restrito, conceito intermediário e conceito amplo. A primeira corrente corresponderia ao conceito dado por Diogo Freitas do Amaral, que “não contempla a regulamentação jurídica do espaço rural nem as regras de equilíbrio entre a cidade e o campo” 60 e segundo o qual o Direito Urbanístico seria

O sistema das normas jurídicas que, no quadro de um conjunto de orientações em matéria de Ordenamento do Território, disciplinam a atuação da Administração Pública e dos particulares com vista a obter uma ordenação racional das cidades e da sua expansão.61

Conforme Custódio, o conceito restrito já foi superado, pois ao excluir o campo do Direito Urbanístico apresenta “uma visão desconexa de cidade, independente e sem coerência estrutural e funcional com o restante do território”. Não à toa, há a inclusão das zonas rurais nas leis de zoneamento, uma vez que a qualidade de vida da cidade depende fundamentalmente dos recursos de seu entorno.62

Já o conceito intermediário trata o Direito Urbanístico como “o conjunto de normas e princípios jurídicos que disciplinam a atuação da Administração e dos particulares com vista ao correto ordenamento da ocupação, utilização e transformação dos solos para fins urbanísticos”, mesmo que ultrapasse as fronteiras da cidade63. Custódio destaca que nessa concepção o Direito Urbanístico não abarca “nenhuma atividade humana que se projete sobre o território senão aquelas que pretendam transformá-lo com fins urbanizadores e edificatórios”64.

60 CUSTÓDIO, Vinicius Monte. Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial: contributos para sua distinção conceitual na ordem jurídica brasileira. p. 60-84. In: Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, vol. 12, n. 21, 2017. p, 62.

61 AMARAL, Diogo Freitas do. Ordenamento do território, urbanismo e ambiente: objecto, autonomia e distinções.In: Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, v. 1, p. 11-23, 1994. apud. CUSTÓDIO, Vinicius Monte. Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial: contributos para sua distinção conceitual na ordem jurídica brasileira. p. 60-84. In: Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, vol. 12, n. 21, 2017. p, 62.

62 Ibid. p, 63.

63 MONTEIRO, Cláudio. O embargo e a demolição de obras no Direito do Urbanismo. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Lisboa, 1995, p. 7; 9-10. apud. CUSTÓDIO, Vinicius Monte. Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial: contributos para sua distinção conceitual na ordem jurídica brasileira. In: Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, vol. 12, n. 21, 2017. pp. 60-84. p, 63.

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Por fim, segundo o conceito amplo, o Direito Urbanístico seria “o conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionado aos espaços habitáveis”65. Custódio diz que esse último:

[...] é largamente majoritário na doutrina hodierna, oferece uma clara vantagem dogmática, se comparado com a concepção anterior, na medida em que estende o campo de atuação do Direito Urbanístico aos solos de uma maneira geral. Ao agir assim, afasta todos aqueles problemas decorrentes da ausência de disciplina jurídica da zona rural acima enunciados.66

A popularidade desse conceito amplo explica-se, porque foi a definição dada por José Afonso da Silva no clássico “Direito urbanístico brasileiro”. Em sua concepção, o direito urbanístico “consiste no conjunto de normas jurídicas reguladores da atividade do Poder Público destinada a ordenar os espaços habitáveis – o que equivale a dizer : conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade urbanística”67. Essa regulação, porém, deve estar voltada à propiciar melhores condições de vida às pessoas na comunidade.

Assim, partindo do pressuposto de que o direito urbanístico define o regime jurídico do urbanismo, Tarcisio Vieira de Carvalho Neto e Marcos Augusto Perez dizem que:

O Direito Urbanístico, no Brasil e alhures, diz respeito a políticas sociais iniciadas na segunda metade do século XIX, como reação aos problemas de higiene e de traçados das grandes cidades. O urbanismo moderno e seu correspondente regime jurídico surgem como uma reação aos problemas gerados pelas cidades industriais.68

Por outro lado, Daniela Campos Libório Di Sarno defende que, durante o período em que o Brasil foi colônia de Portugal, já havia legislações esparsas de caráter urbanístico, mesmo que não existisse uma consciência sobre a necessidade de unidade e convergência

65 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 56. apud. CUSTÓDIO, Vinicius Monte. Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial: contributos para sua distinção conceitual na ordem jurídica brasileira. In: Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, vol. 12, n. 21, 2017. pp. 60-84. p, 63.

66 CUSTÓDIO, Vinicius Monte. Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial: contributos para sua distinção conceitual na ordem jurídica brasileira. p. 60-84. In: Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, vol. 12, n. 21, 2017.. p, 64.

67 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2018. p, 37.

68 CARVALHO NETO, Tarcisio Vieira de. PEREZ, Marcos Augusto. “Delineamento do Direito Urbanístico no Brasil”. P, 27-57. In: MEDAUAR, Odete. SCHIRATO, Victor Rhein. et. al. (coord.). Direito urbanístico: estudos fundamentais. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019. p. 27.

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dessas leis.69 Lilian Pires destaca, por exemplo, as Ordenações Filipinas, que “fixavam princípios básicos e genéricos sobre a ordenação das povoações, cuja preocupação estava assentada na extração das riquezas naturais e garantia da dominação da coroa portuguesa”.70 Ainda sobre o período colonial, José Afonso da Silva aponta alguns decretos que previam o traçado, o tamanho e o alinhamento das vias urbanas. Em algumas delas, como na capital da Capitania de Minas Gerais, Ouro Preto/MG (antiga Vila Rica), por exemplo, percebia-se a forte preocupação com a estética do traçado urbano.71

Já no período imperial, Pires afirma que “as primeiras normas urbanísticas foram delineadas com as leis de desapropriação”.72 Carvalho Neto e Perez lembram que era competência das Assembleias Legislativas das Províncias legislar sobre “a) a desapropriação por utilidade municipal e provincial; b) obras públicas; e c) estradas no interior do território provincial”.73 Segundo Pires, Carvalho Neto e Perez, essas normas tinham como justificativa o melhoramento das vias urbanas, a construção de pontes, canais, portos, praças e etc.

Os mesmos autores relatam, ainda, que da proclamação da República até a década de 1960, poucas regras de direito urbanístico foram implementadas no Brasil:

No plano constitucional, já em meio à República, útil referir que a Constituição de 1891, salvo a previsão sobre a possibilidade de desapropriação por utilidade pública, nada dispôs sobre o Direito Urbanístico.

As Constituições republicanas posteriores, até a de 1969, incluíram na competência da União a possibilidade de estabelecer plano nacional de viação férrea e o de estradas de rodagem e assegurarem a competência dos Municípios em tudo o que dissesse respeito ao seu peculiar interesse, incluída a função urbanística local.74

Quanto às políticas habitacionais e de planejamento territorial adotadas no Regime Militar, Carvalho Neto e Perez destacam a lei criou o BNH e a Lei Federal 6.766/1979, que dispunha, dentre outras coisas, sobre o parcelamento do solo urbano. Sobre essa ultima ambos afirmam que:

69 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. Barueri, SP: Manole, 2004. p, 10-11. 70 PIRES, Lilian Regina Gabriel Moreira. Função social da propriedade urbana e o Plano Diretor. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. p, 44. 71 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2018. p, 51-56.

72 PIRES, Lilian Regina Gabriel Moreira. op. cit. p, 45.

73 CARVALHO NETO, Tarcisio Vieira de. PEREZ, Marcos Augusto. op. cit. p, 36. 74 Ibid. p, 37.

39 [...] é o grande marco dos anos 1970, pois traz, até com bastante atraso em relação ao grande movimento de adensamento das cidades brasileiras, iniciado no período que sucede a segunda grande guerra mundial, normas gerais de parcelamento do solo urbano que possibilitam uma organização mínima das cidades.75

Porém, conforme visto anteriormente, foi apenas com a redemocratização, quando as discussões outrora abordadas no Seminário de Habitação e Reforma Urbana foram retomadas, que houve um grande avanço em relação à política urbana e à legislação urbanística. No momento oportuno, abordaremos os resultados da luta pela reforma urbana na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade.

Por hora, é importante destacar que há quem defenda só ser possível falar em num direito urbanístico como disciplina específica do Direito a partir do momento em que o urbanismo – enquanto ciência – passou a ser tratado como questão de responsabilidade pública. Sob essa perspectiva, as normas anteriores ao século XX podem ser tratadas apenas como poder de polícia do Poder Público. Carlos Ari Sundfeld, por exemplo, diz que:

Conquanto as normas urbanísticas tenham antepassados ilustres (regulamentos edilícios, normas de alinhamento, as leis de desapropriação, etc.), seria um anacronismo pensar em um direito urbanístico anterior ao século XX. O direito urbanístico é o reflexo, no mundo jurídico, dos desafios e problemas derivados da urbanização moderna (concentração populacional, escassez de espaço, poluição) e das ideias da ciência do urbanismo (como a de plano urbanístico, consagrada a partir da década de 30). Estes foram os fatores responsáveis pelo paulatino surgimento de soluções e mecanismos que, frente ao direito e ao direito administrativo da época, soaram impertinentes ou originais e que acabaram se aglutinando em torno da expressão “direito urbanístico”. 76

A complexidade das relações sociais e o aumento dos problemas oriundos da mudança de um modelo agrário-exportador para urbano-industrial fizeram com que apenas o direito civil e o administrativo não dessem mais conta de regular a produção social do espaço no Brasil. Nesse sentido, Luís Fernando Massoneto afirma que:

[...] a produção do espaço urbano e sua pretensa coerência estruturada em relação à produção e ao consumo exigem uma regulação que extrapole as

75 Ibid. p, 38.

76 SUNDFELD. Carlos Ari. Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson de Abreu. FERRAZ, Sério (coord.). Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p, 46.

40 limitações do poder de polícia do direito de propriedade ou a disciplina das relações de vizinhança, as posturas locais e das licenças edilícias.77

Em outra oportunidade, Massonetto explicou:

A legitimidade da regulação estatal sobre a atividade urbanística decorre do caráter social da produção do espaço urbano. O território das cidades é nutrido permanentemente pelo trabalho passado (infraestrutura física e social) e pelo trabalho presente (serviços públicos, zeladoria), ou, em outras palavras, é produto incessante de interação social geradora de valor. O objeto da regulação urbanística, neste contexto, não pode ignorar o território como um produto das relações sociais de produção, nem a intervenção ordenadora do Estado na gestão política da riqueza social.78

Rodrigo Salgado e Gilberto Bercovici também ressaltam a importância de analisar o Direito Urbanístico sob a ótica do Direito Econômico, pois “é necessário à crítica da ordenação jurídica do território entender como tais normas contribuem e se inserem dentro da reprodução da vida social, em especial aos circuitos de acumulação econômica”79. É preciso lembrar que a política urbana foi inserida no título da Ordem Econômica e Financeira da Constituição, de tal forma que não é possível perder de vista a sua unidade sistemática. Para Massonetto é preciso observar “necessariamente a articulação da política de desenvolvimento urbano com os demais dispositivos integrantes da ordem”80. Ainda:

Ao referenciar nos seus capítulos intermediários a Ordem Econômica no espaço, o legislador constituinte nada mais fez senão projetar o conflito distributivo no território, atribuindo à política urbana o viés interventivo necessário à consecução dos objetivos constitucionais.81

77 MASSONETTO, Luís Fernando. "Pontos Cegos da Regulação Urbanística: notas sobre uma regulação programática entre o Direito Econômico e o Direito Urbanístico." In: Revista Forum de Direito Financeiro e Econômico. Vol. 4. No. 6. 2015. p, 146.

78 Idem. “Direito urbanístico – notas epistemológicas”. pp, 273-293. In: KELLER, Rene José. BELLO, Enzo (org.). Curso de Direito à Cidade: teoria e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p, 275.

79 BERCOVICI, Gilberto. SALGADO, Rodrigo Oliveira. “Direito urbanístico como regulação econômica do espaço”. pp, 253-273. In: KELLER, Rene José. BELLO, Enzo (org.). Curso de Direito à Cidade: teoria e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.. p. 253.

80 MASSONETO, Luiz F. “Operações Urbanas Consorciadas: a nova regulação urbana em questão”. In: Revista da Procuradoria Geral do Município de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 17, p. 101-118, 2003. p, 104.

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Assim, a promulgação da Constituição Federal de 1988 e as normas que versam sobre a produção social do espaço passaram a assumir um caráter relacionado ao direito à cidade82. Isso significa que passou-se a pensar, então, em função social da propriedade, função social da cidade, produção de habitação social como política pública de estado, etc. Nabil Bonduki indicou como o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), fruto da articulação entre movimentos sociais e entidades durante o período da constituinte, influenciaram no delineamento do que hoje entende-se por Direito Urbanístico e Direito à Cidade no Brasil83.

O MNRU, posteriormente denominado Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) foi o responsável por enviar a Emenda de Iniciativa Popular da Reforma Urbana à Assembleia Nacional Constituinte, que lhe atribuiu o número de Emenda Popular 63/1987:

Muitos pontos da Emenda Popular da Reforma Urbana não foram contemplados, o que não surpreendeu, pois a correlação de forças políticas não era favorável. Apesar disso, o MNRU teve vitórias. A mobilização que gerou tornou inevitável a introdução de uma seção de Política Urbana na Constituição (que inexistia no Projeto de Constituição elaborado pelos notáveis) e garantiu que o princípio da “função social da propriedade” fosse contemplado não apenas como um conceito (como nas constituições anteriores), mas acompanhado de instrumentos que permitissem sua aplicabilidade.84

Ademais, é possível observar no texto constitucional, quando este trata da estrutura federativa brasileira, que o legislador conferiu ao Poder Público municipal, por meio principalmente dos Planos Diretores, a tarefa de organizar o desenvolvimento e a expansão urbana (Art. 30, incisos I, IV, V, VIII e IX). O objetivo desses planos, obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes. Segundo Bonduki, a figura do plano diretor, que desde a década de 1970 era tratado através de uma concepção tecnocrática e

82 O conceito de “direito à cidade” foi originalmente introduzido no debate acadêmico por Henri Lefebvre, com a publicação de Le Droit à la ville, em 1968. A ausência de um conceito específico de direito à cidade abriu margem a diversas interpretações. Bianca Tavolari, ao realizar a sua trajetória conceitual disse que, no Brasil, o direito à cidade passou a ser relacionado com a noção de cidadania, pelo contexto em histórico em que foi trazido ao país – fim da Ditadura Militar e redemocratização. Primeiramente trabalhado por intelectuais de diversas áreas, o “direito à cidade” passou a ser reivindicado também por movimentos sociais urbanos. Ver mais em: TAVOLARI, Bianca. “Direito à cidade: uma trajetória conceitual”. In: Novos estudos, n. 104, p. 92-108, 2016.

83 BONDUKI, Nabil. “Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade”. pp, 81-139. In: BONDUKI, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil: Do Seminário de Habitação e Reforma Urbana ao Plano Diretor de São Paulo. São Paulo: Instituto Casa da Cidade, 2018. p, 82. 84 Ibid. p, 106.

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baseado na ideia de um modelo ideal de cidade, passou “a ser pensado como uma espécie de pacto entre setores da sociedade e cidadãos” na Constituição de 198885.

Ademais, a Constituição também previu que uma lei específica versaria sobre política de desenvolvimento urbano, ao qual estariam submetidos os Planos Diretores de cada município. Trata-se do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), promulgado após mais de uma década da entrada em vigência da Constituição. Nela, conforme versa o parágrafo único de seu artigo 1º, estão previstas “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.

O Estatuto da Cidade teve como legitimidade social a crescente luta de vários movimentos sociais que tinham como mote a Reforma Urbana. De acordo com Raquel Rolnik86, os pilares da plataforma democrática popular dessa reforma se concentravam na regularização das favelas, na participação popular e na regulação do solo urbano. Isso porque, o modelo de urbanização que prevalecia era extremamente excludente, tendo em vista o rápido crescimento das cidades87. Aluísio Pires de Oliveira e Paulo Cesar Pires Carvalho dizem ainda:

O Estatuto da Cidade veio a lume para fornecer as diretrizes de desenvolvimento urbano, traçar os contornos da função social das cidades e