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1. POLÍTICA URBANA E DIREITO URBANÍSTICO

1.1. Urbanização e reforma urbana no Brasil

O fenômeno da urbanização ocorre quando a população urbana cresce em um ritmo bem mais acelerado do que quando comparado ao crescimento da população rural. E, embora a formação de cidades não seja um fenômeno tipicamente capitalista, entende-se que o processo de urbanização o é. Portanto, seguindo José Afonso da Silva, trata-se de um acontecimento “moderno”13.

Em relação ao Brasil, Milton Santos apontou que no século XVIII houve um ponto de virada quando a casa da cidade tornou-se a residência principal do fazendeiro/senhor de

12 DI SARNO, Daniela Campos Libório. SAULE JÚNIOR, Nelson. “Princípios e instrumentos de política urbana”. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). In: Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). São Paulo: Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em:

<https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/76/edicao-1/principios-e-instrumentos-de-politica-urbana>. Acesso em: 05 de dez de 2019. p, 2.

13 Aqui, a expressão moderna é utilizada no sentido de “atual”, “recente”, e não no sentido histórico (que vai do fim da idade média até as revoluções do século XVIII). SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 6ªed.. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 20-21.

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engenho, que só ia à propriedade rural no momento do corte e da moenda da cana. Porém, “foi necessário ainda mais um século para que a urbanização atingisse a sua maturidade, no século XIX, e ainda mais um século para adquirir as características com as quais conhecemos hoje”14. Por isso, pode-se dizer com Ruy Moreira que “historicamente [...] sempre tivemos a cidade. O urbano, não”.15

Diferente dos países desenvolvidos, cuja urbanização ocorreu no século XIX, os países em desenvolvimento passaram por um processo de urbanização tardio, no decorrer do século XX. Milton Santos listou uma série de diferenças ao comparar ambos esses processos:

[Nos países industrializados], o início do processo de urbanização, examinado do ponto de vista demográfico, foi assinalado por a) uma taxa de mortalidade urbana geral e infantil muito elevada e mesmo mais elevada que a da zona rural; b) uma taxa de natalidade urbana menor que na zona rural; c) uma evolução natural negativa ou pequena; e d) uma lenta evolução demográfica cujo ritmo se acelerou graças ao apelo ao êxodo rural, êxodo este que em grande parte contribui para a formação da população urbana. Nos países subdesenvolvidos, a revolução urbana é caracterizada, ao contrário – do ponto de vista demográfico –, por: a) uma taxa de mortalidade geral e infantil muito pequena, muitas vezes menor que na zona rural, e por taxas elevadas de natalidade, em alguns casos maiores que nas zonas rurais; b) uma evolução natural positiva e forte; e c) um grande apelo ao êxodo rural, êxodo este muitas vezes menor que o crescimento natural.16

A partir dos dados analisados por Santos e das conclusões às quais chegou, é possível intuir que, tendo processos de urbanização diferentes, as soluções para os problemas urbanos de cidades de países desenvolvidos e industrializados e de países subdesenvolvidos dificilmente serão iguais. Essa é uma questão importante, pois, conforme apresentado na introdução, as Operações Urbanas Consorciadas surgem a partir de inspirações estrangeiras, em um contexto em que o termo “cidades globais” ganhava espaço entre os planejadores e gestores urbanos.

Vale lembrar que, no caso do Brasil, as raízes escravocratas e o seu modelo de economia agrário-exportadora criaram problemas socioeconômicos que refletiram fortemente em seu processo de formação espacial, ecoando até hoje. No caso de São Paulo, por exemplo, Raquel Rolnik retrata como os entraves criados pela Lei de Terras de 1850 e a inexistência de

14 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2018. p, 22.

15 MOREIRA, Ruy. A formação espacial brasileira: contribuição crítica aos fundamentos espaciais da geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. p, 289.

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um projeto de inclusão dos ex-escravos após a promulgação da Lei Áurea (1888) geraram formas precárias e segregadoras de ocupação do solo urbano17. Eduardo Alberto Cuscé Nobre, por sua vez, afirma que:

[...] A conjunção dessas leis [Lei de Terras e Lei Áurea] com a substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado do imigrante e a falta de uma política de inserção social dos ex-escravos, que representava por volta de metade da população da época, criaram grande parte dos problemas urbanos do país, que persistem até os dias de hoje18.

No decorrer dos séculos XIX e XX esse padrão de exclusão apenas piorou. Muito embora o índice de urbanização tenha sofrido poucas alterações entre o fim do período colonial até o fim do século XIX e tenha passado de 6,8% a 10,7% de 1880 a 1920, Santos destaca que “foram necessários apenas vinte anos, entre 1920 e 1940, para que essa taxa triplicasse, passando a 31,24%”19. Não é à toa, portanto, que muitas cidades brasileiras, especialmente os grandes centros urbanos, apresentam tantos problemas como inchaço urbano, ausência de saneamento básico universal, déficit habitacional, etc.:

Entre 1940 e 1980, dá-se verdadeira inversão quanto ao lugar de residência da população brasileira. Há meio século atrás (1940), a taxa de urbanização era de 26,35%, em 1980 alcança 68,86%. Nesses quarenta anos, triplica a população total do Brasil, ao passo que a população urbana se multiplica por sete vezes e meia.20

Como bem destacado por Maria Cecilia Lucchese e Rossella Rossetto, “são cerca de 21 anos em que a população tornou-se majoritariamente urbana e as cidades explodiram em extensas periferias, quase todas sem infraestrutura e serviços necessários à vida cotidiana”21. Conforme escreveu Milton Santos:

17 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 1997. pp, 16-30.

18 NOBRE, Eduardo Alberto Cuscé. “O ideário urbanístico e a legislação na cidade de São Paulo: do Código de Posturas ao Estatuto da Cidade”. In: IX Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. São Paulo. 2006. Disponível em: <http://www.labhab.fau.usp.br/biblioteca/textos/nobre_ideariourb.pdf>. Acesso em: 05 out. 2019. p, 2.

19 SANTOS, Milton. Op. Cit. p, 25. 20 Ibid. p, 31.

21 LUCCHESE, Maria Cecilia. ROSSETTO, Rossella. “A política urbana no governo militar (1964 – 1985)”. p, 35-81. In: BONDUKI, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil: Do Seminário de Habitação e Reforma Urbana ao Plano Diretor de São Paulo. São Paulo: Instituto Casa da Cidade, 2018. p, 35.

25 Desde a revolução urbana brasileira, consecutiva à revolução demográfica dos anos de 1950, tivemos, primeiro, uma urbanização aglomerada, com o aumento do número – e da população respectiva – dos núcleos com mais de 20 mil habitantes e, em seguida, uma urbanização concentrada, com a multiplicação de cidades de tamanho intermediário, para alcançarmos, depois, o estágio da metropolização, com o aumento considerável do número de cidades milionárias e de grandes cidades médias (em torno do meio milhão de habitantes). 22

As revoluções demográfica e urbana pelas quais o Brasil passou ocorreram também no esteio de grandes transformações na economia do país, iniciadas por Getúlio Vargas a partir da década de 1930. Sobre o assunto, Francisco de Oliveira diz que:

A revolução de 1930 marca o fim de um ciclo e o início de outro na economia Brasileira: o fim da hegemonia agrário-exportadora e o início da predominância da estrutura produtiva de base urbano-industrial. Ainda que essa predominância não se concretize em termos de participação da indústria na renda interna senão em, 1956, quando pela primeira vez a renda do setor industrial superará a da agricultura, o processo mediante o qual a posição hegemônica se concretizará é crucial: a nova correlação de forças sociais, a reformulação do aparelho e da ação estatal, a regulamentação dos fatores, entre os quais o trabalho ou o preço do trabalho, têm o significado, de um lado, de destruição das regras do jogo segundo as quais a economia se inclinava para as atividades agrário-exportadoras e, de outro, de criação das condições institucionais para a expansão das atividades ligadas ao mercado interno.23

Dessa forma, como José Roberto Bassul destaca, “nosso processo de urbanização elevou drasticamente a demanda por empregos, moradia e serviços públicos nas áreas urbanas”24, determinado, em seu período de maior intensidade pela “hegemonia do setor industrial, um desdobramento do chamado modelo de substituição de importações”25. Ermínia Maricato completa:

A burguesia industrial assume a hegemonia política na sociedade sem que se verificasse uma ruptura com os interesses hegemônicos estabelecidos. Essa ambiguidade entre ruptura e continuidade, verificada em todos os principais momentos de mudança na sociedade brasileira, marcará o processo de

22 SANTOS, Milton. Op. Cit. p, 77.

23 DE OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p, 35.

24 BASSUL, José Roberto. Reforma urbana e Estatuto da Cidade. EURE (Santiago), v. 28, n. 84, p. 133-144,

2002. p, 136. Disponível em:

<https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?pid=S0250-71612002008400008&script=sci_arttext&tlng=en>. Acesso em 10 de nov de 2019.

25 SCHMIDT, Benício. FARRET, Ricardo. A questão urbana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. Apud. BASSUL, José Roberto. op. cit.

26 urbanização com as raízes da sociedade colonial, embora ele ocorra em pleno século XX, quando formalmente o Brasil é uma República independente.26

Nesse sentido, essa mudança da predominância da estrutura agrário-exportadora brasileira para uma urbano-industrial não foi acompanhada pela realização de alterações no campo social, como por exemplo, a redução das desigualdades. Francisco de Oliveira demonstra como a modificação para esse novo modo de acumulação foi altamente baseada na intensa exploração da força de trabalho. No que diz respeito às cidades, ele completa:

As cidades são, por definição, a sede da economia industrial e de serviços. O crescimento urbano é, portanto, a contrapartida da desruralização do produto, e, nesse sentido, quanto menor a ponderação das atividades agrícolas no produto, tanto maior a taxa de urbanização. Portanto, em primeiro lugar, o incremento da urbanização no Brasil obedece à lei do decréscimo da participação da agricultura no produto total. Sem embargo, apenas o crescimento da participação da indústria ou do setor secundário como um todo não seria o responsável pelos altíssimos incrementos da urbanização no Brasil. Esse fato levou uma boa parcela dos sociólogos, no Brasil e na América Latina, a falar de uma urbanização com marginalização. Ora, o processo de crescimento das cidades brasileiras – para não falar apenas do nosso universo – não pode ser entendido senão dentro de um marco teórico onde as necessidades da acumulação impõe um crescimento dos serviços horizontalizado, cuja forma aparente é o caos das cidades. [...] mesmo uma certa fração da acumulação urbana, durante longo período de liquidação da economia pré-anos 1930, revela formas do que poderia chamar, audazmente, de “acumulação primitiva”. 27

Aqui, Oliveira se refere à construção de moradias por autoconstrução. Ou seja, quando os próprios trabalhadores, em dias em que não estavam exercendo trabalho remunerado (fins de semana, folgas, etc) construíram suas próprias casas, quer seja sozinhos quer seja em mutirões. Esse formato de autoconstrução foi posteriormente reivindicado por movimentos de lutas por moradia em programas habitacionais, em contraposição à participação de grandes construtoras. Entretanto, Oliveira alerta para o fato de que:

A habitação resultante dessa operação, se reproduz por trabalho não pago, isto é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu resultado – a casa -

26 MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2013. p, 17. 27 DE OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p, 58-59.

27 reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante - e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de “economia natural” dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho.28

Ou seja, o país mudava drasticamente, mas a exploração intensa do trabalho não. Na relação tensa entre ruptura e continuidade, sobre a qual falava Maricato, prevaleceu, nesse sentido, a continuidade.

Ermínia Maricato menciona que “estamos diante da cidade resultante da ‘urbanização dos baixos salários’, que implica formas de produção ‘doméstica’ ou ‘pré-capitalistas’, mas funcionais e fundamentais para o processo de acumulação”29. As mazelas deixadas pelo modelo agrário-exportador brasileiro e a sua transformação para um modelo urbano-industrial calcado na intensa exploração da força de trabalho livre não poderia ter tido outro resultado que não o inchaço das cidades acompanhado de uma enorme desigualdade social. Como resultado desse processo, Lucchese e Rossetto indicam que:

Em 1984, a PNAD mostrava que 4 milhões de famílias urbanas brasileiras (25,6% do total) estavam incluídas nas camadas mais baixas de renda da população, isto é, recebiam até 2 salários mínimos mensais de renda familiar30. Somavam-se a estas, 7,9 milhões de famílias urbanas com renda entre 2 e 5 salários mínimos, perfazendo 34,5% do total de famílias que viviam em cidades. Nessas faixas de demanda concentrava-se o peso de déficit de moradias, que representava 88,9% do total de necessidades de moradias no Brasil.31

Nesse sentido, Bassul destaca ainda que:

Embora [nas décadas de 1980 e 1990] as taxas de crescimento demográfico tenham arrefecido e o vetor do incremento populacional tenha se deslocado das áreas centrais para as periferias das regiões metropolitanas, bem como para as cidades médias, a precariedade das condições de vida de grandes

28 Ibid. p, 59.

29 MARICATO, Ermínia. O Impasse da Política Urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2014. pp, 123-124. 30 Em novembro de 1984, o salário mínimo, conforme o Decreto nº 90301/84, era de Cr$ 166.560,00.

31 LUCCHESE, Maria Cecilia. ROSSETTO, Rossella. “A política urbana no governo militar (1964 – 1985)”. p, 35-81. In: BONDUKI, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil: Do Seminário de Habitação e Reforma Urbana ao Plano Diretor de São Paulo. São Paulo: Instituto Casa da Cidade, 2018. p, 35.

28 contingentes da população ainda constitui característica comum, e crescente, em todas as grandes concentrações urbanas no Brasil.32

Aqui, merece destaque o fato de que a demanda por moradias, especialmente aquelas voltadas à população de baixa renda foi o grande motor da luta pela reforma urbana no Brasil a partir da década de 1930. Nabil Bonduki aborda como a Revolução de 1930 e o golpe militar de 1964, na tentativa de lidarem com a grande massa urbana de baixa renda que só aumentava, acabaram transformando a noção de produção habitacional no Brasil. Como parte do projeto nacional-desenvolvimentista, o Governo Vargas compreendia a habitação como “condição básica para a reprodução da força de trabalho e, portanto, como fator econômico na estratégia de industrialização do país” 33. Nesse período notou-se um forte estímulo à aquisição da casa própria por parte do governo, que à época era amplamente construída através de mutirões. Bonduki aborda tratar-se de uma mesma solução para dois problemas: estimular a aquisição de uma casa – propriedade privada – faria com que os ânimos da massa urbana empobrecida não se rendessem tão facilmente à ideologia comunista (em uma época de popularidade do PCB). Além disso, como já bem assinalado por Oliveira, o estimulo à autoconstrução também era uma forma de reduzir os custos de reprodução da força de trabalho.

Nesse mesmo contexto, outra medida tomada pelo governo Vargas foi a Lei do Inquilinato, de 1942, que manteve o preço dos alugueis de imóveis residenciais estáveis por cerca de vinte anos e dificultou ações de despejo. Muito embora nenhuma posição oficial do governo tenha sido dada a respeito, Bonduki defende que

[...] a medida pode ser considerada a primeira iniciativa pública que introduziu de modo implícito, o conceito de função social da propriedade, [já que] criou uma severa limitação ao direito de propriedade e ao rentismo, sendo aplicada não à terra urbana, mas aos imóveis construídos com a finalidade de gerar uma renda34.

Pode-se destacar ainda que:

32 BASSUL, José Roberto. Reforma urbana e Estatuto da Cidade. EURE (Santiago), v. 28, n. 84, p. 133-144,

2002. p, 136. Disponível em:

<https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?pid=S0250-71612002008400008&script=sci_arttext&tlng=en>. Acesso em 10 nov. 2019.

33 BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p, 100.

34 Idem. “Do governo Vargas ao Seminário de Habitação e Reforma Urbanas: as tentativas pioneiras de enfrentar a questão urbana”. pp, 15-35. In: BONDUKI, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil: Do Seminário de Habitação e Reforma Urbana ao Plano Diretor de São Paulo. São Paulo: Instituto Casa da Cidade, 2018. p, 16.

29 Embora a Lei do Inquilinato fosse um mecanismo de proteção aos inquilinos, que naquele momento eram os mais vulneráveis, contra os proprietários rentistas, teve, complementarmente, o objetivo de atrair para o setor industrial capitais que naturalmente tenderiam a se dirigir para o imobiliário. [...]

O investimento em casas de aluguel, até então muito atraentes, deixou de ser interessante, estimulando a aplicação de captais nos setores mais dinâmicos, sobretudo na indústria.35

Convergindo com o que foi abordado anteriormente por Oliveira, Bonduki diz que “o congelamento dos alugueis também se situa entre as medidas tomadas por Vargas para reduzir o custo de vida do trabalhador, ou seja, o custo de reprodução da força de trabalho”36. Entretanto, destaca-se que “os governos da chamada era Vargas não foram capazes de estruturar uma política nacional de habitação” coesa e articulada. Uma das contrapartidas da Lei do Inquilinato, por exemplo, foi o aumento cada vez maior do déficit habitacional, já que os investimentos na construção de casas de aluguel foram reduzidos. Impossibilitados de aumentar o valor da locação, muitos proprietários passaram a recorrer ao despejo de seus antigos inquilinos como tentativa de conseguir com os novos, o aumento de seus rendimentos. Assim:

Se a situação dos já alojados era difícil frente à ameaça de despejos, os migrantes que chegavam em grande quantidade nas cidades não tinham alternativa senão buscar um lote periférico ou ocupar um pedaço de terra e, em ambos os casos, autoconstuir uma moradia precária. Assim, tanto os antigos inquilinos despejados como os novos habitantes das cidades acabaram por alimentar o chamado padrão periférico de crescimento urbano, baseado na formação de assentamentos precários e no auto-empreendimento da casa própria, alternativa que proliferou no período.37

Vale ressaltar que esse padrão periférico trazia consigo outros desafios além do problema da precariedade das unidades habitacionais. Esses assentamentos geralmente são formados ou em propriedades privadas ou em propriedades do poder público, que muitas vezes são áreas de proteção ambiental. Além da insegurança gerada em torno das ações de reintegração de posse, por serem ocupações informais, o próprio governo tem dificuldade em

35 Ibid. p, 17-18.

36 Ibid. p, 18. 37 Ibid. p, 20.

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levar a essas áreas obras de infraestrutura como redes de energia elétrica, saneamento básico e pavimentação das ruas. Dessa forma:

[Os governos da era Vargas] ficaram ainda mais distantes de enfrentar a explosiva questão urbana, resultado inevitável da implementação do projeto nacional desenvolvimentista, baseado na substituição das exportações e da criação de uma base urbana industrial.38

Como os problemas urbanos só aumentavam, durante o governo de João Goulart (1961 a 1964), passou-se a reivindicar uma “reforma urbana”, dentre o conjunto das Reformas de Base, que já contava com a luta pela reforma agrária. O tema passou a ser amplamente discutido principalmente após o Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU), em 1963. O conhecimento acumulado de arquitetos e engenheiros, que já se reuniam desde o 1º Congresso de Habitação realizado em São Paulo, em 1931, resultou em um conjunto de iniciativas legislativas e políticas apresentadas no SHRU, que contou com a participação do Instituto dos Arquitetos do Brasil e do Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado (Ipase)39. De acordo com José Roberto Bassul:

O relatório final desse encontro, conhecido como "Seminário do Quitandinha", hotel em Petrópolis (RJ) que o sediou, incluiu a seguinte proposta: "Que o Poder Executivo envie projeto de lei ao Congresso Nacional corporificando os princípios de Política Habitacional e de Reforma Urbana aprovados neste seminário". O documento chegava a descrever,