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O REINO DE DEUS, O EVANGELHO E O MUNDO

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2 REINO DE DEUS NO PENSAMENTO DE RENÉ PADILLA

2.5 O REINO DE DEUS, O EVANGELHO E O MUNDO

Com relação ao mundo e a influência que a construção do discurso moderno teve sobre ele, vamos trazer aqui a contribuição de José Comblin, padre e teólogo latino-americano, para uma melhor compreensão de uma “grande mentira” que Padilla denuncia e a que, segundo ele, todos são expostos todos os dias.

O pensador católico expõe que a modernidade se apropriou de três principais temas, que apesar de cristãos, foram apresentados como se tipicamente modernos fossem: a razão, a felicidade e a liberdade; todos com uma tônica antropocêntrica e como base de formação dessa mentira.

Em termos da razão, para a modernidade, ela é concebida como “o homem que conhece a partir de si próprio e por si próprio” (COMBLIN, 1986: 205), ou seja, ela promove a emancipação do indivíduo e opõe-se a toda forma de restrição à possibilidade de conhecer, rompendo com tradições, com sentimentos e paixões, com as limitações impostas pela religião. Declara-se que por meio da razão se dá “a própria salvação da condição humana”.

Contrapõe-se à cristandade e a dominação que esta exerceu sobre o homem e sobre seu conhecimento de si e do mundo por meio dos dogmas e das tradições. A razão, para a modernidade, é a primeira forma de libertação do homem, e nela está a semente do individualismo.

Quanto à questão da felicidade no homem moderno, Comblin destaca que o discurso vai trazer à tona a satisfação desse homem, de suas necessidades vitais, de seus desejos e aspirações. A felicidade moderna vai se colocar em oposição às sabedorias filosóficas ou religiosas antigas, que têm por objetivo o homem saber lidar com suas limitações e frustrações, e adota uma mensagem de libertação, ou melhor, de liberação. O homem moderno deve abraçar seu gozo, sem limites, chamando-o para a plena realização de si próprio e para a emancipação do indivíduo de tudo que o restrinja de satisfação e felicidade.

E sobre a liberdade na lógica moderna, Comblin a define como a “livre disposição de si próprio. O homem moderno quer ser ele próprio, fazer-se por si próprio (...) ao lado da luta pela razão e pela felicidade, a luta pela liberdade constitui a trama da história da modernidade” (COMBLIN, 1986: 205). Essa luta por liberdade é a luta por conquista da emancipação do

indivíduo diante de estruturas tradicionais, como a família, contra as classes tradicionais (‘mobilidade social’) e contra os deuses, ou seja, diretamente contra o poder das religiões na sociedade.

E, assim, formou-se a mentalidade da modernidade, um discurso que vai promover o indivíduo e declará-lo autônomo e independente diante das estruturas em que está inserido, e essa propaganda, como afirma Comblin, é o verdadeiro evangelho, que anuncia o advento da época final da humanidade.

“Na realidade os três discursos da razão, da felicidade e da liberdade são solidários: formam parte de um único discurso da modernidade. Cada um é inseparável dos outros. Todos juntos constituem uma formidável propaganda pela sociedade moderna constituída pela primazia da ciência e da técnica, da nova moral individualista, da sociedade capitalista por um lado e liberal por outro lado” (COMBLIN, 1986: 212)

Este mundo, para Padilla, é “um sistema no qual o mal está organizado contra Deus” (PADILLA, 2014: 89) e esse mal escraviza o homem sob as estruturas e sistemas que ele cria e absolutiza, e que agem como idolatrias provenientes da própria liberdade que ele apregoa. Isso constitui a grande mentira sob a qual se vive: a de ser dono de si mesmo.

O mundo é a realidade que aprisiona o homem, mas ao mesmo tempo constrói um discurso de liberdade que, segundo Padilla, não se concretiza, levando toda história a ser história dessa Mentira e da destruição que ela promove (PADILLA, 2014: 59,60), como se pode perceber no materialismo do mundo moderno e na formação da sociedade de consumo. Para Padilla:,

“O materialismo – a fé cega na técnica, a indeclinável reverência à propriedade privada como um direito absoluto, o culto ao aumento da produção mediante o saque irresponsável da natureza, o desmedido enriquecimento das grandes empresas às custas do empobrecimento dos ‘deserdados da terra’, a febre do consumo, a ostentação e a moda – é a ideologia que está destruindo a raça humana” (PADILLA, 2014: 91)

E é esta sociedade de consumo, sob a influência do discurso da modernidade, que assume a realidade de mundo dominada por poderes destruidores, pois essa estrutura social desumaniza o homem na sua vivência interpessoal concreta, pois pouco a pouco absolutiza as coisas como símbolos de status e a finalidade de se existir é “ter”, que passa a ser mais relevante que a própria pessoa. Faz da miséria mesmo uma realidade fatídica e necessária. Por de trás dessa sociedade estão, segundo Padilla, poderes de destruição, tais quais Paulo distinguiu no Novo Testamento (PADILLA, 2014: 89) como principados e potestades, que oprimem os homens, e contra os quais se luta.

A sociedade de consumo é uma consequência da técnica e do capitalismo (PADILLA, 2014: 87) que tem como fim último o enriquecimento pessoal e promover a plena satisfação do homem por meio dos “meios massivos de comunicação sendo utilizados para condicionar os consumidores a um estilo de vida em que se trabalha para ganhar, se ganha para comprar e se compra para valer”. Perde-se a função social das coisas na vida e disso decorre a transformação da propriedade privada em um direito absoluto.

Nesta sociedade de consumo está posto o mundo que, para Padilla, hoje exerce domínio sobre o ser humano e o transforma em um homo consumens, cuja existência é um fim em si mesmo e decorre da realização do consumo e da obtenção de reconhecimento, status e poder através das posses que adquire. Nesse mesmo sentido, afirma Comblin sobre o advento da modernidade:

“Há no modo de agir da burguesia uma maneira de viver a vida que é radicalmente nova, diferente de tudo o que foi vivido antes. Essa maneira de viver supõe sonho, uma utopia. A utopia é a de um mundo renovado pela produção material, um mundo de abundância em que todas as necessidades seriam satisfeitas e, mais ainda, todos os desejos. E a satisfação viria pelo consumo de objetos materiais. O contrário das sabedorias antigas”. (COMBLIN, 1986: 215)

Aqui, faz-se um parêntese na argumentação acerca da modernidade, do mundo e a sua identificação com a sociedade de consumo para ressaltar que, ao contrapor o mundo ao reino de Deus e identificar o mundo com a sociedade de consumo, indicando-a como consequência da técnica, Padilla indiretamente critica a Escola de Fuller que tem a técnica como principal princípio na construção de seu pensamento teológico do crescimento de igrejas. Desta forma, Padilla, visa demonstrar a impossibilidade de tal posição, se a abordagem feita é uma abordagem cristã, a qual pressupõe que não se tome o posicionamento de uma realidade que seja diametralmente oposta à realidade do reino de Deus.

Cabe ainda demonstrar que Padilla não é contra ao uso de técnicas, fazê-lo seria negar a própria realidade humana na qual se dá a comunicação do evangelho e a manifestação do reino de Deus. A questão que ele aponta é que estão fazendo da técnica o papel central da teologia e da realidade do reino de Deus, como se verifica em suas próprias palavras:

“É a esta absolutização da eficiência às custas da integridade do evangelho, que eu objeto. A tecnologia tem seu lugar na evangelização, seria néscio negá-lo. O problema surge quando a tecnologia se torna um substituto da Escritura com base no pressuposto de que o que necessitamos é uma estratégia melhor e não um evangelho mais bíblico e uma igreja mais fiel”. (PADILLA, 2014: 74)

Não é uma questão de quantidade versus qualidade, como muitos tentam expor, mas um ponto de promover o que, para Padilla, é uma comunicação do evangelho que seja mais próximo à mensagem bíblica e relevante aos dias atuais, não focada em sucesso segundo os critérios de uma sociedade tecnocapitalista de consumo, mas que vislumbre um evangelho o mais bíblico possível. Tendo o próprio evangelho como critério para valorizar o trabalho realizado, não o êxito (PADILLA, 2014: 75), muito menos o êxito numérico.

A falta da dimensão mais ampla do evangelho, a dimensão social, denunciada por Padilla, vai de encontro à lógica de pensamento da teologia do crescimento de igrejas que potencializa os efeitos nefastos do mundo, já que, quando se enfrenta um mal unicamente íntimo, a experiência cristã de redenção limita-se a uma experiência individual, abstém-se a fé de todo seu caráter ético

e de reponsabilidade público-social, pois a salvação é de caráter personalíssimo. Nada mais importa a não ser o próprio indivíduo e a garantia de sua eternidade.

“O conceito individualista da redenção é a consequência lógica de um conceito individualista do pecado, no qual se ignora ‘as coisas que há no mundo’ (...) Em suma, ignora-se a realidade do materialismo, a absolutização da era presente no que ela oferece: os bens de consumo, o dinheiro, o poder político, a filosofia, a ciência, a classe social, a raça, a nação, o sexo, a religião, a tradição..., o ‘egoísmo coletivo’ que condiciona o homem para que busque sua realização nas ‘coisas desejáveis’ da vida: a Grande Mentira de que o homem deriva seu sentido de ser como Deus, autonomia frente a Deus” (PADILLA, 2014: 49)

Neste sentido que Padilla, ao abordar a questão da proclamação do evangelho, não o considera como apenas o estabelecimento de afirmações acerca do estado de pecado do homem indivíduo diante de Deus e a possibilidade de sua salvação individual, mas abarca em si um chamamento à fé e ao arrependimento que se realiza não como consciência de culpa, mas como encarnação do evangelho na história, como libertação da mundanalidade, que se dá em contraposição ao mundo de forma perceptível, concreta e pública.

Observa-se, portanto, que a demanda de uma realidade unicamente subjetiva não é suficiente, há que ter arrependimento que leve o homem ao confronto com a realidade do materialismo que exerce seu domínio sobre a sociedade de consumo, um arrependimento que extrapole os limites dispostos pela lógica da teologia do crescimento de igreja, em que conversão é um mero aceite lógico-intelectual da comunicação de premissas teológicas estabelecidas. Neste sentido, Padilla qualifica o arrependimento que o evangelho chama ao homem realizar:

“E o arrependimento não é um mero remorso de consciência – a ‘tristeza do mundo’ que produz morte (2Co 7.10) – mas mudança de atitude, uma reestruturação de todos os valores, uma reorientação de toda a personalidade. Não é o abandono de hábitos condenados por uma ética moralista, mas a renúncia a um estado de rebelião contra Deus para voltar-se para ele. Não um mero reconhecimento de uma necessidade psicológica, mas a aceitação da cruz de Cristo como uma morte ao mundo a fim de viver para Deus”. (PADILLA, 2014: 60)

Em seus apontamentos, quando se refere à proclamação do evangelho e a necessidade do que poderia se chamar de um arrependimento ético, Padilla recorre a João Batista e observa alguns pontos (PADILLA, 2014: 60) que se fazem presentes na proclamação do reino de Deus que esse profeta bíblico apresenta: em primeiro lugar, está o seu forte caráter escatológico, a evidência de Jesus é cumprimento das promessas de Deus na história; em segundo lugar, está o fato de esta realidade colocar os homens em situação de crise e exigir deles uma mudança de valores, uma posição de arrependimento; em terceiro, a mudança está relacionada a um novo estilo de vida, e por último, esse arrependimento não é genérico, mas está atrelado a renúncias e compromissos específicos.

Vale ressaltar também a posição acerca da questão da conversão concebida pelos protestantes, exposta pelo teólogo católico latino-americano José Comblin, o qual expressa uma opinião crítica que se assemelha e muito com a opinião de Padilla. Os dois criticam a centralidade no indivíduo e sua consciência, em detrimento das transformações e relações sociais (COMBLIN, 1986: 185). Para Comblin:,

“Por fim, a mensagem da Reforma restringe muito o conceito de conversão. Para ela o ato de fé e de conversão não é mudança de vida, mas primeiro a mudança na subjetividade pela adoção de estados de alma eminentemente intelectuais: um ato consciente, voluntário, individual. O centro fica na consciência individual. A conversão é adesão a uma mensagem claramente enunciada e concebida (...) A mensagem da Reforma, tanto católica como protestante, deixa de lado a transformação da sociedade e das relações sociais. Faz da fé uma atitude centralmente subjetiva. Tem fé a pessoa que diz ter e viver a fé: o seu testemunho individual é finalmente o critério supremo. Desse modo a Reforma preparou a modernidade com sua separação entre matéria e espírito, entre o mundo da consciência e o mundo das realidades exteriores” (COMBLIN, 1986: 185, 186)

Quando Padilla fala em conversão, diferentemente do que é concebido pelo protestantismo ortodoxo, fala em fé, em arrependimento e em transformação, o que perpassa o

intelecto, a consciência do indivíduo, um sentimento de culpa subjetivo ou de moral condenável, ou de convencimento intelectual, e atinge uma atitude de rompimento com o estado de rebelião ao reinado de Deus, afetando tanto as realidades interiores quanto exteriores do homem.

O evangelho é, assim, para Padilla, o anúncio do reino de Deus e quando realizado é um chamado não somente para confiar, mas para o homem arrepender-se e, ao fazê-lo, que este venha a romper com o mundo. Este acontecimento é dinâmico, pois se dá na dependência do Espírito, atinge toda e qualquer realidade em suas mais diversas especificidades, não há reprodução de modelos pré-estabelecidos a serem repetidos.

“(...) o evangelho é a boa nova acerca do reino, e o reino é o domínio de Deus sobre a totalidade da vida. Cada necessidade humana, portanto, pode ser usada pelo Espírito de Deus como ponto de partida para a manifestação de seu poder real. Por isso, na prática é irrelevante perguntar se a evangelização ou ação social deve vir primeiro. Em cada situação concreta, as próprias necessidades proveem a definição das prioridades” (PADILLA, 2014: 222)

O reino de Deus é domínio sobre todas as coisas, ou, como declara o teólogo protestante latino-americano, sobre a totalidade da vida, e, portanto, toda e qualquer necessidade humana é ponto de partida para que essa realidade seja anunciada e o evangelho seja comunicado de uma maneira eficiente, ou seja, que faça o homem romper com o mundo, visto que se está em conflito com o reino de Deus, e libertar-se da Grande Mentira de sua autonomia e independência. Tal fato é particular e se dá em cada situação concreta como ação libertadora de Deus.

Mais uma vez, Padilla usa o conceito estruturante de reino de Deus de sua teologia para criticar McGravan e seus seguidores que exaltam a necessidade de se analisar os casos concretos de crescimento de igreja para a sistematização de modelos de conversão de indivíduos, para obter o maior número possível de casos em suas ações, o aumento numérico das igrejas, priorizando sempre a evangelização verbal. O que não parece ser acertado para o teólogo da missão integral, pois “a conversão não é uma mudança de religião na qual a gente se torna adepto de um culto, mas uma reorientação do homem total em relação a Deus, aos homens e à criação (...) uma reestruturação de toda a personalidade, uma reorientação de toda a vida no mundo”

(PADILLA, 2014: 79), seja o canal a palavra ou a ação, a realidade concreta específica dará as vias com que o evangelho seja encarnado.

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