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O REINO DE DEUS, PALAVRA E AÇÃO

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2 REINO DE DEUS NO PENSAMENTO DE RENÉ PADILLA

2.6 O REINO DE DEUS, PALAVRA E AÇÃO

Uma das discussões que se observou neste debate acerca da teologia da missão foi a questão sobre a prioridade de tarefas. O que vem a ser mais importante, serviço ou evangelismo? Foi demonstrado que para McGravan o segundo é mais importante, já para René Padilla, não há que se falar de importância ou prioridade nas tarefas para evangelização, que cada caso deve ser analisado em sua particularidade.

Em seus escritos, René Padilla vai dar um enfoque maior em rebater as proposições sobre a técnica e o seu papel na evangelização, mas por vezes e outras mantém a dicotomia de serviço e evangelismo na qual a Escola de Fuller se afirma. Tal dicotomia deriva de outra dicotomia presente em suas teologias, em graus distintos, mas presente, que é a dicotomia entre palavra e ação.

Não poderia ser diferente, pois ambas as teologias, tanto a missão integral como a de crescimento de igrejas, são nascentes de um mesmo berço teológico, o protestantismo. E uma característica fundamental do protestantismo é a valorização que este dá à palavra. O protestantismo é a religião da palavra (COMBLIN, 1986: 175).

A insistência protestante de ter a palavra como foco de expressão religiosa tem como intuito despir o cristianismo de qualquer deformidade, segundo Comblin, “a primazia da palavra apresenta-se sobretudo em três contextos: o contexto do ‘sola Scriptura’, da ‘sola fides’, do ministério pastoral da pregação” (COMBLIN, 1986: 176). Em sola Scriptura, está exposto que a palavra de Deus está quase que exclusivamente ligada a Bíblia e opõe-se à qualquer palavra humana (filosofia, tradição e religiões), posto que é divinamente revelada, deve esta estar na centralidade daquele que crê, como regra de fé e prática, como medida de tudo que é feito relativo ao crente. A fé protestante nasce com essa ênfase no valor da afirmação da palavra como meio divino.

Em sola fides, a fé provém da palavra que provém de Deus, numa negação do homem, pois visa reduzir ao mínimo possível as mediações para a ação de Deus, tendo a Bíblia como aceite, quase que unânime, de mediação de Deus. . O meio de fé é a palavra e nada mais (igreja, papa, relíquias, sacerdotes, indulgências).

No ministério pastoral da pregação é onde se encontra a primazia da palavra. Lugar em que se tornou o centro e a atividade principal da vida cristã (a pregação e o ensino), visto que, para o protestante, segundo Comblin, é no exercício desses que a mediação divina se mostra em seu estado concreto, e acentua a influência do racionalismo nascente, onde se supõe que é possível exprimir em fórmulas racionais a vida humana e o conteúdo da revelação bíblica, numa série de proposições abstratas. (COMBLIN, 1986: 178)

Portanto, como se pode observar, a palavra tem um papel inestimável dentro do contexto da Reforma protestante e, consequentemente, dentro das denominações que a sucederam na história do cristianismo. Padilla nasce de dentro desta mentalidade de ênfase da palavra e, quando critica a supervalorização de uma evangelização centrada na comunicação verbal de premissas doutrinárias e seu aceite pelo intelecto do indivíduo, ele, de certa forma, levanta uma crítica ao seu próprio berço teológico de pensamento.

Ao criticar o posicionamento extremado de McGravan e seus seguidores, Padilla acaba fazendo também uma autocrítica ao seu seio teológico protestante. Isto, de certa forma, é um avanço, pois faz o que os intelectuais religiosos que assumiram os caminhos da igreja do século XVI pós-Reforma não conseguiram fazer, que foi combater a modernidade, já que diante dela ficaram duvidosos até porque eles nasceram modernos: pelo seu racionalismo religioso, pela sua intelectualidade e pelo seu individualismo, como Comblin denuncia. (COMBLIN, 1986: 185).

Entretanto, no pensamento de Padilla, apesar da crítica que produz, percebe-se que ainda há resquícios da mentalidade da centralidade da palavra, pois muitas vezes tenta unificar a palavra e a ação, mas permanece concebendo os dois como uma realidade dicotômica. Por exemplo, quando trata de prioridades na tarefa de evangelização, diz que a realidade do caso em concreto determinará o que deve ser prioritário fazer para a promoção da evangelização: a ação ou a palavra. Em outro momento, declara que ambos são inseparáveis.

“A palavra e a ação estão indissoluvelmente unidas na missão de Jesus e de seus apóstolos, e devemos mantê-las unidas na missão da igreja, na qual se prolonga a missão de Jesus até o final do tempo (...). A missão da igreja é a manifestação histórica deste poder por meio da palavra e da ação, no poder do Espírito Santo” (PADILLA, 2014: 222)

A crítica de Padilla não chega a propor uma nova definição à palavra e à ação. Apesar de apresentar intuições a esse respeito, elas não estão claras em seu pensamento e tanto a palavra quanto à ação são tomadas no sentido de seus opositores. Por isso, penso que nos é útil trazer aqui o que José Comblin aborda a esse respeito.

Ao escrever seu tratado de pneumatologia, dos cinco livros que escreveu, Comblin reserva um livro sobre a palavra, denominado “A Força da Palavra”, e outro sobre a ação, denominado “O Tempo da Ação: ensaio sobre o Espírito e a história”. O teólogo católico não concebe a palavra e a ação como realidades dicotômicas, excludentes ou de grandezas diferentes na fé cristã, mas como realidades a serem conjugadas na realização do mover de Deus na história.

Primeiramente, Comblin traça um paralelo analítico que remonta concomitantemente a pontos na história cristã de extrema importância para a construção do pensamento cristão: o helenismo e a modernidade. Relembra que o advento dessas formas de percepção de mundo travou um embate com a teologia cristã, que nunca mais foi a mesma. Segundo Comblin, essas duas forças modelaram e reconfiguraram o cristianismo em todas as suas ramificações. Enquanto que o helenismo promoveu a estéril abstração alienada da teologia cristã por influência da filosofia grega, a modernidade destronou a cristandade e mergulhou o que restou em uma ‘racional’ busca por reafirmação de validade de seu pensamento. Apesar de algumas ramificações do pensamento cristão, segundo ele, terem se adaptado melhor as transações impostas por estas correntes ideológicas, ninguém saiu ileso. (COMBLIN: 1986, 225)

José Comblin mostra de dentro para fora, ao que se refere ao cristianismo ocidental, não seus tratados dogmáticos abstratos, mas de maneira a esgarçar as vísceras da teologia cristã na formação de seus conceitos ao longo da história, promovendo, assim, a denúncia do sacrifício moderno, visando o alcance da liberdade dos pobres do jugo da injustiça social. Tomando como

verdadeira mensagem bíblica a ação libertadora que tem como seu domínio o amor. Isto não como uma tarefa acadêmica, pois para ele “a teologia não se faz a partir de um momento de recolhimento crítico, a partir das universidades ou do mundo científico, mas sim a partir da própria Igreja e de sua prática quotidiana”. (COMBLIN, 1982: 9)

O embate de Comblin, como afirmado anteriormente, se dá nas contribuições do helenismo e da modernidade na formação da mentalidade cristã moderna e derrocada da cristandade. O principal reflexo produzido é a racionalização do cristianismo moderno. O que leva a religião cristã a uma intelectualidade abstrata e infrutífera, segundo o teólogo, mantenedora da opressão social, e consequentemente do sacrifício, sendo tal conceito até mesmo assumido dentro da teologia cristã por Anselmo de Cantuária e amplamente difundido.

Dentre os pensamentos mais criticados e, de certo modo, profundamente rejeitada por Comblin encontra-se a teologia de Santo Anselmo que desde a Idade Média influenciou em sua essência a teologia cristã de forma ampla e irrestrita, promovendo dentro dela um sentido religioso pagão de expiação e propiciação. Segundo o autor, Deus se vê impossibilitado de perdoar sem que houvesse a subordinação desse perdão a um castigo a ser satisfeito. Tal compreensão tomou proporções absurdas na época moderna, segundo o teólogo. Passa-se a estabelecer uma exigência divina de satisfação e reparação que só pode ser realizada com a morte de Jesus Cristo, a condição de reconciliação de Deus. (COMBLIN: 1987, 23)

É esse pensamento de Santo Anselmo, de demasiada influência escolástica, reduzido a proposições para a obtenção de salvação pelo cristianismo moderno, que René Padilla critica. Para ele “a evangelização não pode ser reduzida à repetição de fórmulas doutrinais traduzidas literalmente...” e precisa ir “além do nível consciente (...) mais que um convite ao consentimento intelectual”. (PADILLA, 2014: 127) Há uma realidade muito mais ampla da vida cristã, há uma ação a ser realizada, uma ação concreta na vida dos homens, uma ação que é de Deus, por meio de seu Espírito, e também de homens, por meio de suas mãos, como expôs Comblin.

O distanciamento da vida cotidiana e consentimento do status quo social levará Comblin a uma afirmação da identidade de Deus que visa retirar a igreja de sua inércia imobilizadora racional. Assim, apregoa categoricamente: “Deus é ação”. E sua ação é libertadora, construtiva e transformadora.

“Deus é ação. Nosso Deus é um que age: que liberta, constrói, transforma. Ao falar de ação, a teologia entra em seu verdadeiro assunto. Fala da ação de Deus, também da ação dos homens. (...) Pois nossa ação não é exterior à ação de Deus: está dentro dela. E a ação de Deus não é exterior à nossa: está dentro dela. A teologia cristã é um ensaio para encontrar e enunciar a unidade entre a ação de Deus e a nossa (...)”. (COMBLIN: 1982, 11)

Esta afirmação de Comblin é extremamente importante, pois é a ação o conteúdo de Deus que atinge o homem e o atinge para libertar, e essa ação, por meio do Espírito, é tanto divina quanto humana, e o conduz para uma ação para ser homem, não como a modernidade declara, mas de uma forma que justamente se opõe a ela, pois decorre da dependência desse Espírito que age.

Comblin não se limita a contrapor a teologia dominante em sua abstração ideal somente, ele vai procurar reencontrar o eixo norteador do cristianismo que se desfez ao longo do percurso da história, traçando a sua análise em torno da compreensão do binômio palavra-ação. Percebe a palavra como poder de agir e a ação como identificação de Deus na vida, ele leva a promoção do cristianismo a sua forma de pensamento mais engajada contra as relações de injustiça social e opressão.

A palavra, para Comblin, é poder que se efetiva na comunicação da ação em função e proveito do povo de Deus, nisto se faz conhecida a revelação de Deus. Ela é presente, ativa, forte e poderosa. A palavra é canal e transmite os acontecimentos onde Deus diz a sua presença, manifestando-se. Sucintamente, Comblin afirma que: “A palavra é para ser falada, não para ser possuída. Ela não é objeto de propriedade, mas canal de comunicação. O sentido existe na comunicação”. (COMBLIN: 1986, 16)

Diferentemente do que se observa em McGravan e seus seguidores, a palavra para Comblin não é um discurso teológico a ser aceito, a palavra não é o fim da fé, mas ela é um meio pelo qual a ação de Deus pode ser conduzida aos homens e promove vida e esperança. A palavra deve ser conjugada com a ação de Deus, como anúncio dessa ação, do acontecimento de Deus na vida. A força da palavra para Comblin não está numa formulação teológica, mas na condução que ela promove da ação que atinge a realidade concreta.

“O discurso cristão proclama e anuncia uma ação de Deus. Proclama que Deus está agindo e libertando os pobres. Mostra sinais visíveis e proclama o que se está preparando. Proclama e enuncia o que vai ser. Anuncia que a força do Espírito vai dinamizar mais pessoas e comunidades e aumentar a ação libertadora. A proclamação de que Deus está diretamente comprometido com o combate que a libertação confere. Aí está um argumento muito forte para quem sabe usá-lo. Infelizmente muitos pregadores ou não sabem, ou não se atrevem, ou nem sequer acreditam. Muitos pregadores oferecem apenas o espetáculo da sua falta de fé. Mostram seu próprio interesse mas não o seu interesse pela libertação do povo”. (COMBLIN, 1982: 346)

Quando aborda a questão sobre os pregadores, Comblin se aproxima de Padilla que declara que a primeira condição para uma evangelização genuína é a crucificação do evangelista, sem esta condição, o evangelho se transforma em falatório e a evangelização se transforma em proselitismo, ou seja, perde-se seu propósito de ser.

Ainda sobre a palavra, Comblin declara que esta palavra foi Jesus Cristo, sua ação foi uma palavra para despertar, para promover a liberdade e a esperança. (COMBLIN, 1982: 346) Jesus Cristo “inaugurou uma ação por meio de um discurso novo. Os cristãos também são palavra. Não pedem apenas pelas palavras formais, mas toda a sua vida se torna palavra a fim de convencer”.

Além do exemplo de Jesus, Comblin afirma que não se tem o discurso de evangelização de Paulo, apenas pode-se imaginar como seria a partir das epístolas, e que esse silêncio pode ser pelo fato de que se o tivéssemos, o copiaríamos para todas as situações e, de outro modo, pode-se entender também que Paulo é um evangelizador em toda a sua existência. Portanto, pode-se concluir que para Comblin a palavra está muito mais próxima de um testemunho, de uma vivência cristã, do que de um discurso propriamente dito.

Além disso, cabe ressaltar mais um ponto de aproximação entre Comblin e Padilla, que é a exortação da palavra. Para o primeiro, o discurso de evangelização não só leva à esperança na ação de Deus, mas, pela autoridade de Deus, pede com insistência uma mudança de vida, desperta o sentido de responsabilidade e a vontade de se comprometer. O que em Padilla é expresso pelo arrependimento, que exige uma mudança de valores, uma posição de arrependimento e está atrelado a renúncias e compromissos específicos.

Quanto à ação, aqui talvez esteja a chave para a compreensão de Comblin acerca de Deus e dos homens. Seu pensamento se dá na correspondência de duas identidades lógicas. A primeira é que, como já foi dito, Deus é ação, ou seja, não é uma abstração inalcançável de uma racionalidade que não sabe do que fala; e, em segundo, há unidade entre a ação de Deus e a ação dos homens; a ação de Deus está dentro da ação dos homens e vice-versa, de tal modo que há confusão entre ação de Deus e ação dos homens, falar sobre isso é o papel da teologia. (COMBLIN: 1982, 11)

Comblin, neste sentido, denuncia o descaso da Igreja com a realidade, e o seu aprisionamento a uma intelectualidade abstrata e mortificante. Não se pode conhecer a Deus por meio de atos intelectuais, mas sim, pela ação. É a palavra que traduz a ação de Deus na história que promove a revelação de Deus. A revelação de Deus, para ele, não é discurso, mas acontecimento. (COMBLIN: 1986, 16) E é neste acontecimento que está a verdade. “A verdade é o que Deus faz na história. A verdade são realidades concretas em que Deus se torna ativo”. (COMBLIN, 1982: 116)

Todo acontecimento, então, seria de Deus? Segundo o que afirma Comblin, tal não parece ser o caso. Senão, cai-se numa estupidez panteística de uma divindade que atua no mundo comprando a Ferrari zero quilômetro de um indivíduo. A ação a que ele se refere é a ação de mudar o homem, é assumir sua tarefa na missão de libertação. E nesse liame, define de forma contundente o que vem a ser agir:

“...é encontrar-se a si mesmo, salvar-se das pressões e das estruturas; é, em seguida, recuperar autonomia; é, ainda, avaliar as energias internas e externas, todas as forças susceptíveis de serem salvas aplicadas a um novo fim; finalmente, é descobrir um nova resposta, inscrever-se num movimento de libertação de si mesmo, dos outros e do mundo em que nós e os outros estamos envolvidos... O modo de agir do Espírito é a ação humana, ação para ser homem ”. (COMBLIN: 1982, 55, 33)

Não há, em termos de superação da opressão social, ou violência material imposta aos pobres, que se dissociar a ação de Deus e dos homens. Para Comblin, existe uma unidade de atuação, que é essencial para sua efetiva concreção.

É por meio da conjugação da ação que se efetiva na história e da palavra que comunica o ato de suplantação da realidade de opressão dos mais fracos na sociedade que se pode efetivamente promover a superação dessa realidade, visto que os detentores legítimos do desfrute da esperança divina são os pobres vitimados, excluídos intelectualmente, materialmente e socialmente. Neste sentido, Padilla, parece concordar com Comblin, e declara o que vem a ser o reino de Deus e o seu poder:

“O reino tem a ver com o poder dinâmico de Deus por meio do qual ‘os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho’ (...) Em sintonia com isto, o reino é o poder dinâmico de Deus que se torna visível por meio de sinais concretos que mostram que Jesus é o Messias. E uma nova realidade que entrou no centro da história e que afeta a vida humana não somente moral e espiritualmente, mas também física e psicologicamente, material e socialmente”. (PADILLA, 2014: 213,214)

As vítimas, para Comblin e Padilla, são os pobres, os oprimidos e os cativos na sociedade, eles têm o primeiro lugar no foco de ação de Deus, pois o poder de Deus realiza-se em sua ação no que era fraco e incapaz de agir. A eles o reino de Deus se dirige, e por isso que tanto Comblin quanto Padilla os têm como seu ponto focal de pensamento e a razão da sua hermenêutica, não como um fim em si mesmo, mas como uma necessidade de promoção da esperança de transformação e libertação de seu estado de pobreza, sofrimento, humilhação, perseguição e angústia.

Por fim, a palavra e a ação tem um papel importante para o estabelecimento da realidade do reino de Deus, não que sejam inseparáveis e dicotômicas, muito menos que devam ser escolhidas alternativamente, mas porque, como expõe Comblin e dá a entender Padilla, elas se conjugam para a expressão do poder de Deus na ação para promover a esperança, a libertação e a

transformação dos fracos e oprimidos. A palavra como veículo concreto de esperança dessa ação e a ação como efetivo poder transformador de Deus nos homens.

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