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DA RELAÇÃO ENTRE A MÚSICA E A DANÇA, NUMA PERSPETIVA EDUCACIONAL, AO LONGO DO SÉCULO

DA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES DE DANÇA Nas palavras de Teresa Estrela:

CAPÍTULO 2 – DO ENSINO DA DANÇA E DA SUA RELAÇÃO COM A MÚSICA

2.4 DA RELAÇÃO ENTRE A MÚSICA E A DANÇA, NUMA PERSPETIVA EDUCACIONAL, AO LONGO DO SÉCULO

A perspectiva de interação entre a Música e a Dança/movimento adquiriu, a partir da primeira metade do séc. XX, uma dimensão educacional patente em várias abordagens pedagógicas e artísticas.

No ensino da música, François Delsarte (1811-1871), Émile Jaques-Dalcroze (1865-1959), com o método Eurythmics, e Carl Orff (1895-1982) e Gunild Keetman (1903-1990) com o método Orff-Schulwerk, são os exemplos mais importantes de pedagogos que consideraram a importância do movimento no desenvolvimento rítmico e expressivo de alunos de música.

No caso da dança, Rudolf Laban (1879-1958) foi o pedagogo que melhor integrou o estudo do ritmo musical como estratégia de desenvolvimento do movimento corporal.

Delsarte, professor de canto e declamação, interessou-se pela relação que ocorre em cena entre a voz, o gesto e a emoção. Graças às suas investigações torna-se um teórico autodidata do gesto e da voz, lecionando cursos sobre a expressividade gestual e vocal

aplicada à estética das linguagens artísticas do canto, do drama, da música, da pintura e da escultura e terá inclusivamente tido como alunos, nos seus cursos e seminários, Eugéne Delacroix, Gioachino Rossini e George Bizet, entre outros (Souza, 2011).

Partindo de uma pesquisa minuciosa sobre o comportamento humano, Delsarte defende que o movimento corporal reflete as emoções do ser humano sendo visto por muitos como um cientista da expressão corporal.

“Delsarte was a true scientist: setting out to discover how the human body moves under the stimuli of emotions, he collected a vast amount of data from first hand observation of a human being in every possible circumstance and condition, and from this hundreds of thousands of examples, deduced basic laws” (Shaw, 1988:10).

Embora Delsarte nunca tenha focado a sua atenção na aplicação dos seus exercícios à dança, nos Estados Unidos, após a sua morte, os seus princípios foram amplamente estudados e postos em prática por vários coreógrafos e professores de dança, em particular por Ted Shaw.

Émile Jaques-Dalcroze, compositor e professor de música suíço, em 1893 (após uma viagem à Argélia onde toma contacto com a música árabe, repleta de ritmos irregulares e complexos), torna-se professor do Conservatório de Genebra. Aí começa a defender que o ensino musical dos Conservatórios na Europa dá mais importância à mestria técnica que permite tocar todo o repertório “clássico” do que à expressividade, ignorando a importância do ritmo e da expressividade musical através do corpo (Dalcroze, 1967).

Dalcroze defendia que o ritmo é o primeiro elemento que desperta a curiosidade das crianças e que a resposta natural ao ritmo é física, logo, o corpo deve ser o primeiro instrumento através do qual se reflete e interpreta o movimento e as nuances da música.

Defendia ainda que o som é compreendido por qualquer parte do corpo e que a sensibilidade está muito perto das sensações. Para ser um músico sensível é preciso apreciar não só as nuances de altura sonora, mas também da energia dinâmica e das

variações de velocidade dos movimentos. Estas nuances devem ser apreendidas não só pelo ouvido, mas também pelos sentidos musculares (Dalcroze, 1967).

Assim, começa a desenvolver um método pedagógico baseado no ensino do ritmo através do movimento corporal – Eurythmics – uma abordagem à Educação Musical que procura desenvolver a musicalidade num sentido lato (Juntunen, 2004).

De acordo com o próprio Dalcroze (1967), a Eurhythmics ajuda os alunos a ouvir e imbuir todo o seu corpo e todo o seu ser com os sons musicais, o que reforça as sensações, regula as ações habituais e acorda as faculdades imaginativas.

Este pedagogo acreditava ainda que a educação rítmica do corpo e da mente tinha uma influência benéfica no desenvolvimento pessoal dos alunos e no seu bem-estar, promovendo a harmonia na sua personalidade. Nas suas palavras:

“The aim of all exercises in eurhythmics is to strengthen the power of concentration, to accustom the body to hold itself, as it were, at high pressure in readiness to execute orders from the brain, to connect the conscious with the sub-conscious, and to augment the sub-conscious faculties with the fruits of a special culture designed for that purpose. In addition, these exercises tend to create more numerous habitual motions and new reflexes, to obtain the maximum effect by a minimum of effort, and so to purify the spirit, strengthen the will-power and install order and clarity in the organism” (Dalcroze, 1967:62).

Dalcroze lançou as diretrizes de uma educação musical ativa que integra o corpo, a mente, o pensamento e o sentimento como uma unidade, conduzindo a uma consciência auditiva e desejo de comunicar. Criou assim uma educação psicomotora com base na repetição de ritmos que se reflete na progressão da complexidade e na sucessão do movimento, com o objectivo de traduzir em movimentos as emoções humanas (Marques, 2007).

Se o movimento dançado de Dalcroze recebeu muitas influências das primeiras coreografias de Isadora Duncan, Loie Fuller, Mary Wigman e Grete Wiesenthal, a sua visão da Música, da Dança e da Educação Musical inspiraram gerações e gerações de músicos e de bailarinos. Muitos dos coreógrafos do séc. XX como Ruth Denis, Doris

Humphrey, Bessy Schoenberg e Meredith Monk, entre muitos outros, foram buscar muita da sua inspiração a Dalcroze (Seitz, 2005).

Também Carl Orff (1895-1982) para além de compositor foi um influente pedagogo da formação musical. Juntamente com a sua colega Gunild Keetman, Orff desenvolveu, nos anos 20 do século passado, um “método” (o próprio não gostava de lhe chamar método, mas apenas “abordagem” à iniciação musical), conhecido por Orff Schulwerk, que integrava a música, o movimento, o drama (teatro) e o discurso falado, e defendia que todos os conceitos são aprendidos através da prática. Orff pretendia, através da improvisação, da execução instrumental em grupo e a solo, da canção e da dança, desenvolver nos alunos um sentido de autoconfiança e de interesse pelo processo criativo.

Mas se, na primeira metade do séc. XX, na música e na educação musical, abundavam estes novos princípios pedagógicos virados para a expressividade através do corpo e do movimento, também a dança via nascer novas correntes e abordagens, muitas delas advogando novas relações com a música, a expressão musical e o ritmo.

Isadora Duncan (1877 – 1927) advogava uma dança emocionalmente dependente da música como inspiração, mas sem ligação à estrutura musical.

Mary Wigman (1886 – 1973), após ter estudado com Jaques-Dalcroze e Rudolf Laban, iniciou uma carreira como bailarina e coreógrafa, desenvolvendo o seu próprio estilo a que chamou a “Nova Dança Alemã” muito ligada ao expressionismo vivido na Alemanha da época.

Para Wigman o ritmo corporal era indissociável do ritmo mental (influências dos estudos iniciais com Dalcroze), mas o ritmo sonoro jamais deveria comandar o ritmo mental.

Fazendo uma clara distinção entre a música pré-existente e a música expressamente criada para suporte da dança, nas suas apresentações Wigman utilizava sobretudo instrumentos de percussão, que juntava à flauta, ao piano e o gamelão da Indonésia. Podia dançar para um texto falado ou mesmo em silêncio (influências do seu tempo passado com Rudolf Laban, primeiro como aluna, depois como assistente na sua escola em Ascona, na Suíça).

No entanto, o mais importante pedagogo no ensino da dança foi sem dúvida Rudolf Laban.

Laban idealizava uma forma de arte que combinasse dança, música e poesia. Segundo a descrição de Wigman, enquanto sua aluna:

“We danced with music and without it, we danced to the rhythms of poetry, and sometimes Laban made us move to words, phrases, little poems we had to invent ourselves”. Wigman (1975:34).

Nas palavras de Shiller e Meiners:

“Laban was one of the Central European pioneers involved in exploring the connection between psychology, visual art, music and movement. The synthesis of fields allowed for considering the expressive and sociological potential of movement for both individuals and the community” (Shiller e Meiners, 2003:98).

Sem queremos fazer aqui uma apresentação completa das valiosas contribuições de Rudolf Laban para a análise e compreensão da dança e do movimento, julgamos no entanto pertinente debruçarmo-nos sobre o que Laban diz em relação ao factor “tempo” e em particular sobre ritmo.

Rudolf Laban defendia que o movimento humano é constituído por quatro elementos (espaço, tempo, peso e fluência), quer seja na arte de dançar, num trabalho mecânico ou no dia-a-dia de qualquer ser humano. Assim, a partir da observação do movimento de pessoas na execução das mais diversas tarefas, que incluíam bailarinos, trabalhadores fabris, atletas de esgrima, entre outros, desenvolve a sua teoria “Laban Movement Analysis” que, como o próprio nome indica, consiste numa análise sistemática do movimento.

A linguagem na análise do movimento em Laban apresenta os quatro factores de movimento, cada um deles constituído por elementos bipolares, como se pode observar na figura 3:

Figura 3 - Relação entre as Unidades Estruturais do Movimento segundo Laban (1974)

Ao analisar as obras de Laban verifica-se que o factor “tempo” contempla elementos como: ritmo, velocidade, duração, acentuação e periodicidade (Laban, 1971).

Relativamente ao ritmo, podemos destacar a função rítmica do próprio movimento, que Laban (1971) considera a relação entre a energia, as dimensões corporais, espaciais e expressivas.

Segundo Laban (1978) a velocidade é a "média que permitimos a um movimento suceder a outro" e pode ser rápida, normal ou lenta. Por outras palavras, Robatto (1994) diz que a velocidade é o tempo variável gasto no percurso de um movimento. A velocidade pode ser acelerada ou retardada.

Sobre a periodicidade, Robatto (1994) defende que é o que imprime o ritmo coreográfico percebido pela relação entre a pulsação padrão e os diversos movimentos sucessivos que podem ser subdivididos em frases e sequências estruturadas, de forma continua ou interrompida, repetida, transformada ou variada, regular ou irregular.

Sobre a acentuação, esta ocorre quando algum relevo incide na trajetória do movimento.

Quanto à duração, está relacionada com o início e o termo de cada movimento.

Por ultimo, quanto à pausa, Laban (1978) explica que é o momento em que qualquer ação corporal para ou é retirada por um período de tempo.

O discurso educacional de Laban está enraizado tanto na filosofia da dança moderna do início do século como nas ideias da Escola Nova difundidas por John Dewey na

•Leve •Forte

Peso

•Direto •Indireto

Espaço

•Rápido •Lento

Tempo

•Livre •Controlado

Fluiência

Inglaterra. Para essa escola, os ideais de expressão interior e emoção humana são entendidos como os princípios edificantes da criação artística / educacional (Marques, 2001).

O vasto trabalho de análise do movimento de Laban e a criação de uma nova técnica de dança que denominou de “dança livre” revolucionaram tanto o mundo da dança como o da educação, e até hoje exercem influência nos meios académicos e práticos da dança (Marques, 2001), mas também da música.

Gambetta (2008) faz uma descrição da aplicação da teoria do Esforço de Laban no treino de maestros e futuros maestros, concluindo que:

“Laban training offers conductors a comprehensive set of tools for conceiving and executing potent, persuasive movements that display genuine equivalence with sounds of music. The Motion Factors, Effort elements and Effort/Shape affinities are the raw ingredients conductors combine to create “recipes” for movements that perfectly reflect both conductor’s own personal movement style and the musical and technical demands present in score” (Gambetta, 2008:77).

Baseando-se na Análise do Movimento de Rudolf Laban, Doris Humphery (1959) considera quatro tipos de organização rítmica própria dos humanos:

“First, the breathing-singing-speaking which leads to phrasing and phrase rhythm. Then the partly unconscious rhythms of function: the heartbeat, peristalsis, contraction and relaxation of muscles, waves of sensation through the nerve ends. Another is the propelling mechanism, the legs, which [humans] discovered would support [them], one after the other, while moving in space, and which provided also a conscious joy in beat as the weight changed. Lastly, there is emotional rhythm: surges and ebbs of feeling, with accents which not only supply strong rhythmical patterns but are a measure for judging emotional rhythms in others. (Humphery, 1959:105).

No entanto, a autora considera que apenas três destes são utilizados na dança:

1. Ritmo motor – ligado à noção de pulsação;

2. Ritmo da respiração – ligado ao fraseamento e à noção de frase de movimento; 3. Ritmo emocional – ligado às qualidades expressivas da sequência de movimento.

Sem dúvida que a Música e a Dança são artes “temporais”. Ambas estruturam o domínio do tempo e são feitas de padrões que ocorrem no tempo, e nesse sentido, o seu maior “ponto de encontro” é o ritmo.

Em síntese, vimos, de forma breve, como a perspectiva do ensino da dança e da sua relação com a música se alterou ao longo do século XX, muito graças ao trabalho desenvolvido por Delsarte, Dalcroze, Orff, mas especialmente pelo trabalho desenvolvido por Rudolf Laban, que aliou a sensação, a intenção e o sentimento ao movimento e ao ritmo próprio (de cada um), bem como por muitos dos seus seguidores que continuam, ainda hoje, a estudar e a desenvolver os princípios delineados pelo “mestre”.

No entanto, a dança tem percorrido um longo caminho desde que estes grandes pedagogos nos deixaram as suas ideias e princípios, que serviram de base à construção de uma educação artística da era moderna.

Partindo precisamente do que foi analisado, no início deste capítulo, sobre a dança na atualidade e a sua relação com as outras expressões artísticas, que abordagens podem ser feitas à música, no âmbito da dança em contexto educativo?