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5. Discussão e Conclusões

5.5. Sobre a Reconstituição Quantitativa e Qualitativa dos Repertórios de Células T

A recuperação da competência imunológica após o transplante só é completa com o restabelecimento das contagens, das proporções e da diversidade do repertório estrutural do TCR das diferentes populações de células T. A incapacidade ou a demora em efetuar esta reconstituição, significa para os doentes, uma diminuição funcional da imunidade adaptativa em ambos os braços humoral e celular. Durante este período, os doentes apresentam uma suscetibilidade elevada a infeções oportunistas, à recidiva da doença tumoral e a complicações derivadas da aloreatividade [418].

A recuperação das contagens de linfócitos T é feita por duas vias diferentes. A primeira via incide sobre as populações de células T naíves e maturas derivadas do enxerto, e também autólogas, que resistiram ao condicionamento. Estas células sofrem expansões proliferativas periféricas pela ação de citocinas homeostáticas como a IL-7, a IL-15 e a IL-21, ou por ativação dependente de Ags, [373, 403]. A segunda via, é o processo da ontogenia das células T, a timopoiese, que gera novas células T naíves com um repertório TCR diverso.

O primeiro mecanismo constitui um processo natural de regulação da dimensão dos compartimentos de células T muito importante para a recuperação de condições linfopénicas naturais ou induzidas. O período peri-transplante do TCE é caraterizado por níveis elevados de IL-7 e IL-15. O número de células com recetores destas citocinas apresenta-se diminuído e concomitantemente há um aumento da produção por células do estroma da MO, células fibroblásticas reticulares dos tecidos linfoides e em menor quantidade por APCs [403]. No entanto, as diferentes populações de células T apresentam, uma sensibilidade e resposta diferente à exposição sistémica a estas citocinas [419, 420] o que se reflete na diversidade e proporcionalidade do repertório celular resultante [419].

A IL-7 regula preferencialmente as populações de células T com maior diversidade, naíves e RTEs, induzindo a proliferação e sobrevivência celular, e a condução para os tecidos linfáticos [421, 422]. Mas enquanto, as células T CD8+ são fortemente expandidas pela exposição a níveis elevados de IL-7, as células T CD4+ apresentam

uma expansão muito limitada nas mesmas condições [420]. A IL-7 regula diretamente a homeostasia do compartimento de células T CD8+, induzindo sinais diretos de sobrevivência e proliferação a estas células através do recetor IL-7R [423]. Já a regulação da homeostasia das células T CD4+ deverá ser feita por outros mecanismos ainda não esclarecidos. Recentemente, foi proposto um modelo baseado em observações em modelos animais que identifica um interveniente celular central, as DCs plasmacitoides IL7-Rα+, que por via de uma interação TCR-MHC classe II regulam a proliferação homeostática das células T CD4+ naíves [424, 425]. Nas condições de excesso de IL-7, a expressão de MHC classe II nas pDCs IL7-Rα+ é diminuída o que reduz a capacidade destas células induzirem a proliferação dos linfócitos T CD4+ [424]. Provavelmente, como resultado destes fatores e de uma recuperação mais lenta das pDCs [359, 426], a proliferação homeostática das células T CD4+ no pós-transplante surge extremamente condicionada.

Em relação à IL-15, esta citocina é induzida pela inflamação resultante do condicionamento do transplante [373] e determina, tal anteriormente referido, a reconstituição das populações de células NK e atua muito particularmente sobre atividade replicativa e capacidade de sobrevivência das células T CD8+ de memória [373, 427, 428], originando uma expansão rápida destas células.

Quanto à contribuição da proliferação celular dirigida por antigénios na recuperação inicial do compartimento linfocitário T, esta, está particularmente bem documentada para as células T CD8+ reativas contra o citomegalovirus e células ativadas por microrganismos do intestino [429, 430].

As caraterísticas dos compartimentos linfocitários T dos doentes em recuperação de TCE autólogos e alogénicos, observadas neste estudo, resultam destes processos. Em ambas as séries, foi observada uma desproporção esperada de células T CD8+ em relação às células T CD4+. Com a caraterização do repertório estrutural do TCR das duas populações de linfócitos foi evidenciada uma restrição inicial muito pronunciada da diversidade dos repertórios clonotípicos circulantes. Na população de linfócitos T CD8+ a distorção do repertório foi mantida sem grandes alterações durante o todo o primeiro ano de evolução. A população T CD4+ apresentou um aumento da diversidade do repertório clonal, o que é indicativo de uma recuperação celular estabelecida de forma significativa a partir de novas células produzidas no timo.

A timopoiese dos doentes, ou seja, a produção de novas células T naíve, foi avaliada com a contagem de sjTRECs no sangue periférico e a frequência de células CD4+ recentemente emigradas do timo (RTEs). No início da análise, os doentes de ambos os grupos apresentaram contagens residuais de sjTRECs no sangue periférico o que é indicativo de uma atividade tímica muito baixa. O compartimento de células CD4+

naíve apresentou-se severamente contraído com uma frequência de RTEs relativamente baixa.

Não surpreendentemente, a capacidade de reconstituição do compartimento de células T CD4+ naíves surgiu muito condicionada pela idade dos doentes ao transplante. A dependência da atividade tímica com a idade está bem estabelecida, o timo apresenta a maior capacidade durante os primeiros 6 meses de vida e permanece com uma atividade elevada durante a infância. Na idade adulta e mais avançada, embora o timo continue a produzir células T, cada década sucessiva de idade reduz mais a ocorrência da renovação do repertório celular. Esta involução deve-se a uma redução dos tecidos corticais e medulares [431, 432], que se traduz numa limitação da produção e retardamento da exportação de células T naíves para a periferia [433-435].

Assim no grupo com transplante autólogo foram os doentes mais jovens que aos 12 meses de evolução, apresentaram as maiores contagens destas células T CD4+ naíves. Interessa salientar foi observada uma correlação significativa entre a quantificação de sjTRECs aos seis meses e a dimensão da população de T CD4+ naives aos doze meses de evolução. Esta associação afigura-se útil para um reconhecimento precoce da capacidade de reconstituição imunológica e, portanto, poderá constituir um fator de avaliação laboratorial com interesse clínico.

Os doentes com transplante alogénico, apesar da menor idade relativa, apresentaram indicadores de uma atividade tímica mais condicionada e no ponto final da análise, as quantidades de células T periféricas com origem no timo é significativamente inferior aos valores normais.

Alguns estudos sobre doentes que fizeram terapias indutoras de depleção de células T (com ATG) ou doentes com infeção HIV sob terapias antirretrovirais, demonstram que mesmo em idade adulta é possível uma reconstituição relativamente célere de um repertório estrutural diverso derivado de células T naíves produzidas no timo [217, 436]. Estes resultados significam que existem no TCE fatores específicos que condicionam e retardam a regeneração tímica. Estes fatores deverão ser muito provavelmente os condicionamentos mieloablativos, que são também timo-tóxicos, a que se associam, no contexto do transplante alogénico, os regimes imunossupressores usados para o controlo da rejeição do enxerto e profilaxia da GvHD e a própria GvHD, em particular, tal como indica a correlação obtida, nas formas mais extensas.

Foi também observado um processo de normalização qualitativa do compartimento de células T CD4+ naíves em termos de frequência de RTEs. O aumento da frequência destas células é o melhor indicador da baixa atividade proliferativa induzida por

citocinas neste compartimento celular. Esta observação vai de encontro à proposta já referida de que os níveis sistémicos elevados de IL-7 inibem a expansão homeostática T CD4+ naíves. Já em relação à IL-15, sabe-se também, que a que a apresentação trans desta às células T CD4+ naíves constitui um mecanismo de regulação negativa natural, com o propósito de frustrar a expansão de potenciais células naíves autoreativas que escapem à tolerância central [437].

A associação destes resultados e do conhecimento atual, suporta a ideia de que a recuperação da população de células T CD4+ naíves é derivada essencialmente da atividade tímica, que, portanto, importa preservar procurando regimes de condicionamento e manutenção do transplante com uma timo-toxicidade mínima. Por outro lado, alguns estudos experimentais e ensaios clínicos, têm vindo a avaliar a utilização de fatores modeladores da regeneração do timo (fator de crescimento de queratinócitos (KGF) e a IL-7) de forma a obter uma renovação rápida do compartimento T CD4+ após o TCE [438-442].

Nos transplantes alogénicos é possível fazer um seguimento detalhado da função do enxerto definindo a origem genotípica das diferentes linhagens celulares hematopoiéticas. Uma caraterística fundamental da recuperação do compartimento linfocitário T total (linfócitos CD3+), é o facto de numa fase inicial, ser normalmente estabelecida a partir de uma fração significante de células autólogas em conjunto com células alogénicas. As segundas vão progressivamente dominando, diminuindo o quimerismo misto, à medida que se estabelecem os processos de renovação celular. Esta evolução traduz essencialmente o processo dinâmico de recuperação das contagens celulares da população de células T maioritária durante a reconstituição, as células T CD8+.

A análise da população de células T CD8+ naíves indicou que esta foi a população de células deste compartimento que apresentou a maior contração inicial, no entanto, ambos os grupos de doentes demonstraram uma recuperação destas células para níveis comparáveis aos normais a partir dos 6 meses de evolução. Os doentes mais novos da população com transplante autólogo demonstraram uma melhor capacidade de recuperação destas células, mas os principais indicadores da atividade tímica, os níveis de sjTRECs já não apresentam correlação significativa com a recuperação. Estes indicadores evidenciam que as vias independentes do timo constituem o mecanismo principal para a recuperação das contagens e manutenção das proporções destas células no pós-transplante.

Os compartimentos de linfócitos T CD4+ e CD8+ em recuperação foram também avaliados em relação à expressão de marcadores de competência e de ativação. Foi primeiro analisada a frequência de células com expressão de CD28, um recetor do co-

estímulo pelo B7 das APCs e células B essencial à ativação das células T mediada pelo TCR [443]. O CD28 é expresso em condições normais por cerca de 80 a 100% das células T CD4+ e 55 a 85% das CD8+ circulantes no sangue periférico. A frequência de células T CD4+ com expressão de CD28, apresentou-se nos dois grupos de doentes em níveis normais em todos os tempos da análise, o que significa que durante este processo, não há um aumento de células T CD4+ potencialmente anérgicas devido à impossibilidade de receção do co-estimulo de ativação. No compartimento T CD8+ verificou-se um aumento da frequência de células CD28- mantida nos dois grupos de doentes durante todo o período da análise. Alguns estudos verificaram que as células CD8+CD28- apresentam telómeros mais curtos que as CD28+, o que sugere, que são células que fizeram ou resultam de vários ciclos proliferativos [444, 445], suportando portanto a noção de que são células derivadas de linfopoiese extra-tímica [446]. Estas células CD8+CD28- têm sido propostas como constituindo um estado celular terminalmente diferenciado e associadas com a senescência, que não são passíveis de reativação e que facilmente são induzidas em apoptose [447, 448].

Verificou-se ainda nas duas séries de doentes um aumento da frequência de linfócitos T CD4+ e CD8+ com expressão de HLA-DR. No entanto, as duas populações celulares apresentaram dinâmicas diferentes em relação à expressão deste marcador. A frequência de células CD4+HLA-DR+ diminuiu progressivamente até atingir valores normais aos 12 meses. Já a fração células CD8+HLA-DR+ apresentou-se significativamente expandida nos vários pontos da análise. Foi observada uma tendência de normalização, mais evidente nos doentes com autoTCE, mas aos 12 meses de evolução cerca de 45-50% das células CD8+ eram HLA-DR+ em ambos os grupos de doentes. O HLA-DR, e outras moléculas MHC classe II, são normalmente expressas pelas células T ativadas via TCR, devido à ação de um fator nuclear (o transativador classe II, CIITA) induzido por citocinas inflamatórias [449]. Tem sido discutida a atividade do MHC classe II nas células T ativadas e embora esta não esteja completamente esclarecida, tem sido proposto que servem simultaneamente de sistema de apresentação de Ags e que podem traduzir outros sinais modeladores das funções das células T [449-451]. Ainda assim, a expressão de HLA-DR pelas células T é correlacionada principalmente com uma tendência apoptótica e anergia, caraterísticas da senescência celular [452]. Provavelmente, a dinâmica observada deve-se à progressiva renovação de um compartimento de células CD4+ inicialmente alvo de ativação pelo ambiente inflamatório do peri-transplante, por novas células derivadas do desenvolvimento tímico. Por outro lado, a via dominante da recuperação celular do compartimento T CD8+ não é a renovação, mas a proliferação expansiva de

células pré-existentes, o que mantém elevada a frequência de células com os fenótipos senescentes.

Foi observada também a evolução dinâmica das subpopulações celulares com fenótipo de memória dos dois compartimentos de linfócitos T CD4+ e CD8+. Foram avaliadas populações celulares com fenótipos representativos dos três principais subtipos de células de memórias, as células de memória central TCM, de memória efetora TEM e de memória efetora terminalmente diferenciadas TEMRA. A sensibilidade de cada uma destas células às citocinas homeostáticas em particular à IL-15 difere. A expressão, por exemplo, do recetor IL-2/15Rβ é baixa nas células naíves e aumenta progressivamente nas células de memória TCM, TEM até atingir o nível máximo nas TEMRA [453]. Desta forma, há uma evolução diferencial populações celulares com fenótipo de memória em ambos os compartimentos T CD4+ e CD8+.

A população TCM CD4+ de ambos os grupos de doentes apresentou uma contração durante todo o primeiro ano de evolução dos transplantes sem alterações significativas das contagens celulares entre os pontos de análise. As populações CD4+ TEM e TEMRA do grupo de doentes com transplante autólogo apresentaram contagens celulares normais em todos os pontos da análise. As contagens destas populações celulares nos doentes com transplante alogénico foram mais baixas e também apresentaram alterações significativas durante o tempo da análise. Do ponto de vista qualitativo, o compartimento T CD4+ é profundamente marcado pela depleção de células naíves e consequentemente as frequências das células de memória apresentam-se desproporcionadas. Durante o processo de reconstituição, este compartimento é constituído maioritariamente por células de memória TCM e TEM, sendo esta última a população, que tal como esperado devido à maior sensibilidade à IL-15, apresentou a maior expansão, relativamente às frequências celulares normais.

Quanto ao compartimento celular T CD8+ os doentes de ambos os grupos apresentaram contagens normais das populações TCM, TEM e TEMRA desde a avaliação aos 3 meses. Mas em termos qualitativos, a diversidade do repertório estrutural das células T CD8+, caraterizou-se pela ausência de várias famílias de segmentos TRVB e uma frequência muito elevada de clonotipos celulares específicos, detetados como expansões oligoclonais e mesmo monoclonais.

Em relação aos fatores clínicos relacionados com a recuperação de células T, verificou-se uma tendência para uma maior suscetibilidade às infeções nos doentes com níveis inferiores de células TEMRA. Verificou-se ainda que, utilização de ciclosporina no protocolo terapêutico dos aloTCE surgiu associado a uma diminuição das células de memória, quando comparado com o protocolo que usou o FK506. Já o GvHD nas formas mais extensas parece afetar de forma significativa a atividade tímica

baixando nos doentes afetados os níveis de sjTRECS, RTEs e células T CD4+ naíves. Em conclusão, a reconstituição linfocitária T após o TCE é um processo prolongado, estabelecido inicialmente a partir de uma proliferação de células maturas sensíveis aos níveis elevados de citocinas homeostáticas. Este processo, a que são particularmente sensíveis as células T CD8+, tem duas consequências principais:

- as células sensíveis sofrem múltiplas divisões acabando por adquirir fenótipos senescentes com capacidade de ativação celular diminuídas,

- o repertório estrutural neste período apresenta uma diversidade clonal restrita o que compromete a capacidade imunológica dos doentes.

Nestas condições, os doentes apresentam uma suscetibilidade elevada a infeções e a recidivas tumorais. Por outro lado, a quebra da homeostase destes compartimentos linfocitários, potencia fenómenos de autoimunidade e no contexto alogénico, o desenvolvimento de GvHD. A atenuação destas complicações é estabelecida pela renovação celular derivada da atividade tímica, comprometida com os regimes timo- tóxicos do transplante, que lentamente reconstitui a diversidade estrutural dos repertórios celulares T naíves, efetores e reguladores.