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Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora

No documento renatacorreavargas (páginas 41-46)

2 A CIÊNCIA MÉDICA NO BRASIL E EM JUIZ DE FORA

2.2 JUIZ DE FORA NA BELLE-ÉPOQUE E A INTERVENÇÃO SOCIAL DA MEDICINA

2.2.4 A MECA DA MEDICINA MINEIRA : ALGUMAS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE EM JUIZ DE

2.2.4.1 Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora

Se todo o homem de sciencia tem o direito, e mesmo o dever de interessar-se pelas questões da vida geral, principalmente quando ellas se prendem ao augmento do patrimonio do paiz, não é menos verdade que ainda mais de perto cumpre á aggremiações como esta a que pertence, não eximir-se de agir no desempenho de tão patriotica missão. (MENDONÇA, 1912b, p. 208)

Às duas horas da tarde do dia 20 de outubro de 1889, na sala de sessões da Câmara Municipal, é inaugurada a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora numa reunião que contou com a presença de doutores e de várias famílias da elite juiz-forana. Conforme discurso proferido pelo então presidente da nova associação, o Dr. João Penido:

A idéa de fundar-se uma Sociedade de Medicina e Cirurgia nesta cidade nasceu do desejo insaciavel que nutre a classe medica de cooperar com empenho e na medida de suas forças para o bem estar collectivo e da nobillissima ambição de instruir-se, avolumando o seu cabedal scientifico (PENIDO, 1889, p. 5).

O desejo da SMCJF de ser útil à comunidade pode ser notado em muitos momentos no discurso do Dr. João Penido, como por exemplo, nesta argumentação feita por ele:

O empenho humanitario de concorrer com o nosso pequeno obulo para – se não resolver, ao menos encaminhar a solução destas questões de palpitante actualidade e, para nós, medicos, de interesse vital, - alliado ao ardente desejo de prestar algum serviço ao nosso paiz, e particularmente á nossa provincia – eis o motivo da fundação da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fóra. (PENIDO, 1889, p. 5, grifo do autor).

Tomou ainda para a Sociedade a responsabilidade de:

Zelar, sob o ponto de vista da hygiene, as condições de salubridade de qualquer localidade que tenha relação com alguns de seus membros, quer no municipio, quer na provincia, ou algures, especialmente, as relativas á cidade de Juiz de Fóra, sede da sociedade. Investigar as causas de sua insalubridade permanentes ou transitoria, discutir os meios de resolvel-as do melhor modo scientifico e pratico, propor aos poderes publicos as medidas próprias para garantir a sua salubridade e protestar contra as que forem reputadas

inconvenientes. Em uma palavra: a sociedade constitue-se guarda avançada da salubridade publica. (PENIDO, 1889, p. 6).

Interessar-se pela sociedade, auxiliá-la em suas questões relativas à higiene e à salubridade, propor novas formas de vida, reivindicar soluções: eis o “direito, e mesmo o dever” que recaíam sobre os ombros dos homens de ciência e que motivavam alguns doutores de Juiz de Fora a se unirem em uma instituição; além, é claro, de que unidos, suas vozes ganhavam mais força, reforçando, no imaginário social, a importância das verdades que produziam, o que tornava mais fácil a aceitação delas. Um artifício, como nos descreveu Gondra, para legitimar a figura do médico e de suas práticas frente aos costumes sociais.

De acordo com Lana (2006), esse desejo de mostrar a aplicabilidade e a utilidade dos conhecimentos advindos da ciência não foi uma característica exclusiva da SMCJF. Ele se fez presente também nos discursos de outras sociedades científicas até as primeiras décadas do século XX.

Segundo Capel, as associações científicas começaram a surgir na América Latina ao longo do século XIX com a formação e consolidação de diferentes Estados Nacionais. De certo modo, tais associações estavam “al servicio de la ordenación estatal y de la explotación de los recursos nacionales17” (CAPEL, 1992, p. 168).

Alguns exemplos de associações científicas latino-americanas corroboram com a percepção proposta por Capel (1992) sobre os objetivos desses agrupamentos. Obregon (1992) ao discorrer sobre a Sociedade Naturalista dos Neogranadinos, primeira sociedade científica fundada na Colômbia em 1859, relata que tal organização teve como objetivo a propagação das ciências naturais e da Confederação Granadina. Cabrera (1992), em estudos sobre a Sociedade Geográfica de Lima no Peru, conclui que essa associação, fundada em 1888, também teve como intuito o estudo dos recursos naturais do país e o fortalecimento do Estado. Benitez observou que o Instituto Nacional de Geografia e Estatística no México “obedeció a intereses del Estado mexicano y viabilizó la profesionalización de la geografia.18

(BENITEZ, 1992, p. 155).

De acordo com Lana (2006), as primeiras associações científicas com maior organização e permanência no Brasil surgiram ao final do século XVIII. De certo modo, tais associações foram responsáveis por preparar o solo brasileiro para o debate e divulgação de outro tipo de conhecimento, o “científico”. Data desse momento histórico a fundação da

17 A serviço do planejamento estatal e da exploração de recursos naturais (tradução nossa). 18 Obedeceu aos interesses do Estado mexicano e viabilizou a profissionalização da geografia

Academia Científica do Rio de Janeiro (1771 – 1779) e da Sociedade Literária do Rio de Janeiro (1786 – 1790) sendo que, esta última, havia sido formada inicialmente por professores de medicina que estimulavam pesquisas na área da terapêutica e profilaxia das doenças. Essas associações não duraram muito tempo.

Em 1825, inspirada pelos ideais nacionalistas de construção de um Estado Nacional Brasileiro, foi criada a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) com o objetivo de promover atividades industriais no Império. De acordo com Figueirôa (1992), sob a proteção da SAIN, foi criado, em 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) que patrocinou várias expedições científicas no território nacional.

Segundo Capel, as associações científicas foram, ao longo do século XIX, perdendo seu caráter generalista e, paulatinamente, adquirindo outra característica, a de agrupar profissionais segundo interesses específicos: “aparición de sociedades más especializadas19

(CAPEL, 1992). Lana (2006) pontua que a SMCJF representou essa nova modalidade de agrupamento científico. Sua fundação simbolizou o

(...) anseio da categoria médica local em angariar espaços para a ciência que produziam. Ou seja, a SMCJF foi o espaço de comunicação e integração dos profissionais da saúde juizforanos visando evidenciar a utilidade de seu conhecimento através de discussões e propostas de intervenção no lócus urbano. (LANA, 2006, p. 10).

A SMCJF se estruturou como um espaço estratégico para a legitimação da figura do doutor. Seu grande objetivo foi mostrar à sociedade e ao poder público o quão útil eram aqueles conhecimentos produzidos e debatidos por seus associados e que os caracterizavam profissionalmente. Para isso, uma tática utilizada foi a elaboração de planos de intervenção nas mais diversas situações sociais.

A SMCJF atuou em diversas frentes. Em uma passagem de um livro de Pedro Nava, médico que passou parte de sua vida em Juiz de Fora, podemos observar algumas destas atuações:

(...) luta contra o pó, pelo calçamento; a elevação dos planos das ruas Santa Rita, Conde d'Eu e do Sapo, para as mesmas poderem receber os tubos de esgoto e de abastecimento d’água; a secagem e aterro do pântano da cadeia, resultante do corte feito no Paraibuna pela Estrada de Ferro D. Pedro II; o aterro das ruas cujo declive favorecia o acúmulo de lixo; a crítica e as sugestões ao sistema de esgotos a ser adotado; a análise da água a ser fornecida à população; o saneamento o Paraibuna e do córrego da Independência, onde eram atiradas as fezes, os restolhos, as porcarias e os bichos mortos; o fim da era da touceira e do penico e a instalação das primeiras latrinas, cujo modelo é discutido e indicado (...) a maior difusão da

vacinação anticarbunculosa em Minas; a introdução sistemática do combate contra a varíola, o saneamento dos cortiços e o primeiro plano de habitação popular e proletária; o protesto contra a instalação de fábrica dentro do perímetro urbano e contra a imunda vala que servia para o despejo da Cervejaria Kremer; a melhoria de condições do "lazareto", onde a enfermagem era exercida por uma vagabunda e ébria "sacerdotisa de Vênus e Baco", no dizer do Dr. Sampaio. (NAVA, 1981 apud VALE, 1996, p. 65).

Nava falou também a respeito da luta da SMCJF contra à medicina praticada por leigos e sobre desejo da instituição de intervir na política municipal e estadual. Identificamos isso em algumas publicações da Sociedade. Um exemplo foi na reunião ocorrida em 6 de agosto de 1904 na qual foi lido um ofício em que a SMCJF se dirigia ao Presidente do Estado acerca de um projeto do deputado Senna Figueiredo sobre a legalização do exercício da arte dentária no Estado de Minas. A SMCJF era desfavorável a tal projeto, pois ele não limitava a prática a cirurgiões dentistas formados. Segundo o ofício, tal lei já tinha vigorado no estado de SP com consequências negativas (MALTA, 1905).

Outra ocasião em que observamos tal posicionamento foi um artigo escrito pelo Dr. Fernando de Moraes na primeira edição da Revista Médica de Minas, 1908, onde se lê o seguinte:

O Charlatanismo é a origem, a fonte primordial da intoxicação medicamentosa, e isso explica-se pela pouca ou nenhuma competencia dos taes entendidos, no que respeita á arte medica.

Infelizmente, porem, é impossível evitar-se essa causa do mal, pois o charlatanismo campêa altivo á sombra da lei, não só entre nós, como mesmo na culta Allemanha, justificando o que disse Renan a um medico ingenuo que se queixava da preferencia muitas vezes dada ao charlatão: ‘Nada dá uma idea mais clara do infinito do que a tolice humana (la betise humaine)’ (MORAES, 1908, p. 15, grifo do autor).

Assim como acontecia em outras regiões, como Rio de Janeiro e São Paulo, a Sociedade combatia a prática dos leigos caracterizando-a como inferior e tipificando como tolos aqueles que a seguiam em detrimento aos ensinamentos dos médicos formados.

A SMCJF não permaneceu isolada de suas congêneres travando sempre diálogos com outras associações científicas nacionais e internacionais. Exemplo disso são as diversas visitas de médicos do Rio de Janeiro à Sociedade. Dr. Rocha Lima e Dr. Carlos Chagas do Instituto Manguinhos, no Rio de Janeiro, compareceram por diversas vezes às reuniões da SMCJF tendo sido, inclusive, indicados para fazer parte da Sociedade como membros.

O Dr. Oswaldo Cruz foi outro médico que sempre manteve contato com a SMCJF, fosse passando informação sobre alguma epidemia que estivesse assolando o Rio de Janeiro,

ou parabenizando-a pelos serviços prestados à sociedade. Em carta enviada à SMCJF, podemos notar esta aproximação:

Sinto-me verdadeiramente feliz, de ver como a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fóra, que sempre se tem revelado como uma das mais cultas associações scientificas de nossa Patria, julga os serviços prestados pela Repartição que tenho a honra de dirigir (...).

Associação (...) á qual já estamos, de longa data, ligados por laços de indissolúvel gratidão, pelo benefico apoio moral a nós prestado em épocas menos propicias. (CRUZ, 1906, p. 1).

A SMCJF também manteve contato com a “sua irmã” no Rio de Janeiro, como observamos na carta enviada à associação juiz-forana pela SMCRJ, em 4 de junho de 1890, no nome de seu 1º secretário, dr. Henrique de Sá:

Illustres collegas, A “S. de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro” teve a satisfação de receber o “Estatuto” de sua irmã, a “S. de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fóra” e vem, por meu intermédio agradecer-vos a gentileza da offerta.

Desejando-lhe toda a prosperidade de que é digna, unir-vos também no empenho da nossa lei e força votar para que sempre exista entre as duas associações o mais cordial affeto e a mais sincera fraternidade. (SÁ, 1890, p. 1).

A SMCJF era convidada constantemente para participar de eventos científicos da área. Na reunião do dia 20 de outubro de 1906 (MORAES, 1912), encontramos um convite endereçado a esta associação para participar do 6º Congresso Médico de São Paulo. Anos antes encontramos também um documento referente ao The First Pan-American Medical Congress20 realizado em Washington em 1893.

Em relação à política municipal e estadual, Christo concluiu que a “SMCJF se constituiu no espaço político através do qual os homens de ciência se impunham ao poder público” (CHRISTO, 1994, p. 27). A Sociedade buscava comprometer o poder público com seus ideais formulando uma série de solicitações, críticas e soluções que era enviada aos governantes.

Barroso chama nossa atenção para o fato de que

Com o advento republicano, quase todos os membros da sociedade [SMCJF] passaram a ter assento na Câmara. Dentre as inúmeras medidas e obras empreendidas, destacamos a Inspetoria de Higiene, criada em 1892. Também fora instituída uma polícia sanitária e medidas afins, que a nosso ver, são indícios de um projeto médico-sanitarista na cidade. (BARROSO, 2005, p. 2)

O fato de alguns membros da SMCJF ocuparem cargos públicos auxiliou no ajuste do poder administrativo aos princípios veiculados pela associação.

Entre esses membros, encontramos o Dr. Penido que foi vereador da Câmara Municipal (1858 a 1864 e 1876 a 1884), juiz de paz (1865 a 1868 e 1873 a 1876) e juiz de direito “no tempo que juizes leigos podiam fazel-o.” (1858 a 1865) (MENEZES, 1912a, p. 24), o Dr. Duarte de Abreu que foi vice-presidente da Câmara Municipal e senador, o Dr. Ambrósio Braga que foi prefeito, o Dr. Azarias de Andrade que foi deputado, o Dr. Elói de Andrade e o Dr. Ernesto Braga que foram vereadores, dentre outros.

Embora mantivesse relações diretas com o Estado, a Sociedade formou-se sem nenhum vínculo financeiro com ele. Sua fundação foi por iniciativa privada dos seus associados.

A Sociedade encontra-se em funcionamento até os dias de hoje. Em 2005, a SMCJF mudou sua denominação para Associação Médica de Juiz de Fora, em decorrência das disposições do novo Código Civil, enquadrando-se na categoria de associação civil. (SMCJF, s/d).

No documento renatacorreavargas (páginas 41-46)