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3. A REDE PÚBLICA DE LABORATÓRIOS DE FABRICAÇÃO DIGITAL DE SÃO PAULO – FAB LAB LIVRE SP

3.1. O SURGIMENTO DO CONCEITO DE FAB LAB

Figurando como um modelo de produção de conhecimento e tecnologia de maneira democrática e compartilhada, observadas as diferenças em escala e objetivo e produto final, mas com conceitos similares ao MobiLab: é o caso da rede pública de laboratórios de fabricação digital São Paulo, também conhecida como Rede de Fab Lab Livre SP.

Entretanto, para entender a lógica por trás dessa rede, faz-se necessário compreender como surgiu e quais os conceitos e expectativas atrelados à emergência dos Fab Labs. O termo é derivado do inglês fabrication laboratory (laboratório de fabricação), e trata-se de laboratórios destinados a prototipagem rápida de itens físicos, customização de produtos existentes e processos inovadores de produção de bens.

O primeiro Fab Lab surgiu no Massachussets Institute of Technology (MIT). Foi fundado em 2001 pela National

Science Foundation (NSF) dentro do laboratório interdisciplinar chamado Center for Bits and Atoms (CBA), e sua implantação ficou sob a responsabilidade do professor Neil Gershenfeld16.

De acordo com GERSHENFELD (2007), o laboratório nasceu de um importante financiamento concedido ao CBA para a compra de máquinas que pudessem fabricar qualquer coisa em diversas escalas. Entretanto, era necessário ensinar aos alunos como utilizar tais máquinas, o que resultou no curso “How to make almost everything”.17

Considerando os relatos do professor, alunos de diversas turmas apareceram, sem necessariamente ter as habilidades técnicas para a utilização das máquinas de comando numérico (CNC), mas produzindo resultados satisfatórios ao final do programa.

Para EYCHENNE e NEVES (2013), a grande procura pela disciplina demonstrou que o projeto inculcou nos alunos a lógica da produção customizada, não sendo necessário recorrer a esses espaços para produzir algo que se encontra

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Neil Gershenfeld é professor e diretor do CBA, vinculado ao MIT Media Lab, responsável por desenvolver pesquisas interdisciplinares em áreas que envolvem física, nanotecnologia, fabricação pessoal, entre outras. 17 Em português “Como fazer quase qualquer coisa”

no mercado, mas a de desenvolver produtos adequados a uma pessoa ou a um grupo, auxiliando na democratização das ferramentas de compartilhamento e edição de produtos e posicionando o usuário no centro do processo de fabricação e desenvolvimento.

O processo de desenvolvimento democrático dos Fab Labs demonstra uma lógica integradora e de horizontalidade dos processos, tendo a abertura e o incentivo ao compartilhamento como pontos fulcrais para seu funcionamento, favorecendo a reprodução do modelo, o que culminou em uma vasta e crescente rede de Fab Labs pelo mundo.

Uma importante contribuição proporcionada pelos laboratórios da rede mundial é o fomento ao empreendedorismo e a produção de inteligência e tecnologias inovadoras de modo compartilhado e colaborativo através do conceito de produção em fontes e códigos abertos.

A interação entre usuários com habilidades distintas, valorizando a horizontalidade na produção e transferência do conhecimento, muito comum nos modelos bottom-up, possibilita a transição rápida do conceito para as etapas de prototipagem, produção para testes e reprodução remota.

Figura 31 - Peças produzidas pelos usuários do Fab Lab Heliópolis Fonte: Arquivo pessoal

Ao inserir a etapa de teste e análise por meio da prototipagem das ideias, os Fab Labs possibilitam o estudo das particularidades do objeto produzido e as devidas correções de percurso, proporcionando conhecimento processual aos usuários (figura 31).

“A função dos protótipos é reproduzir o modelo digital em matéria palpável, para que possam ser avaliados antes da produção em escala industrial. Normalmente são produzidos em impressoras de pequeno porte, sistematizando assim o uso da escala para elementos maiores (...).” (HENNO, p. 78, 2016)

Desse modo, a experimentação por meio de protótipos fabricados digital permite o aperfeiçoamento constante da

técnica ou produto por meio da tentativa e erro “ampliando o leque de materiais e técnicas a se explorar em um processo contínuo de feedback” (ibid., p.. 79).

O ambiente do Fab Lab tem uma vertente muito forte relacionada a práticas, produção de tecnologias colaborativas e compartilhamento do conhecimento gerenciado pelas relações em rede.

Segundo SOARES (2013), os processos de desenvolvimento e projeto com características de bottom-up se materializam através de um conglomerado de ações, “não relacionadas a uma sequência de passos linear e que possuem fortes características colaborativas” (p.16.).

Estes espaços possuem no cerne de sua cultura três preceitos básicos:

 A produção do conhecimento compartilhado e aprimorado por meio do trabalho entre pares;

 O desenvolvimento de ferramentas, artefatos e inovação, baseados em elementos já existentes, passíveis de serem repensados para atender necessidades específicas de uma comunidade ou de um indivíduo, dentro da lógica da produção de bens customizados;

 Produzir inteligência coletiva, em modelo aberto, que possa ser compartilhado e replicado por qualquer indivíduo enaltecendo a lógica do trabalho em rede.

Estes espaços são defendidos por autores como MOTA (2012) como elementos de grande relevância para a inovação social e na busca por soluções para problemas e podem estar associados à produção de inteligência endereçada às necessidades básicas encontradas em países em desenvolvimento, ressaltando a importância da cooperação entre os laboratórios e da busca por parcerias com entidades (Figura 32).

Para NEVES (2014), ao se apoiarem na internet, os laboratórios se tornam uma formidável plataforma de fomento à inovação colaborativa e facilitam a abertura e a integração entre pessoas e organizações, bem como o cruzamento de informações e contribuições entre os membros que as

utilizam independente de seu posicionamento geográfico através de ferramentas de videoconferência e de compartilhamento de informações.

Figura 32 - Infográfico síntese dos objetivos principais de um Fab Lab. (NEVES, 2013)

Devido à singularidade e à integração tecnológica do modelo, EYCHENNE e NEVES (2013) ressaltam a grande integração entre os múltiplos vetores envolvidos na troca de informações de maneira horizontal, desenvolvendo uma

comunidade alimentada pela diversidade, sejam elas de cunho social, econômico e/ou cultural.

Segundo SOARES (2013), ao compreender os processos de fabricação digital como advindos de iniciativas bottom-up, embora sua análise não seja focada especificamente em Fab Labs, mas na lógica da fabricação digital em si, o autor afirma que:

“(...) a postura de um pensamento em rede, que entende as partes interligadas, deve permear as interações entre os envolvidos no processo de construção do objeto em si a partir das interligações de componentes e não pela determinação de um desenho final, sucessivamente detalhado posteriormente.”( p. 173-174)

A afirmação acima vai ao encontro com o defendido por NEVES (2013), ROCHA ( 2015) e HENNO (2016), de que todos os envolvidos precisam ser conhecedores do processo. Em modelos de produção em rede, considerando a horizontalidade das estruturas, as ações devem ser acordados previamente de modo que a contribuição aconteça de maneira assertiva.

Tais influências múltiplas resultam na criação de projetos colaborativos que enaltecem as competências e

habilidades locais disponíveis, sendo que cada membro pode participar de etapas distintas de produção realizando tarefas as quais se sentem mais confortáveis.

A publicidade dos projetos e o compartilhamento das soluções e de suas etapas entre os envolvidos na rede deve ser abordada com cautela de modo manter a inclusão completa dos membros no processo, e evitando o enfraquecimento da horizontalidade de produção do modelo e a equidade da responsabilidade das proposições nesses sistemas que contemplam a heterogeneidade formativa dos indivíduos, que podem ser causados pela hierarquização dos membros.

Figura 33- Prateleira customizada desenvolvida pelos usuários do Fab Lab Livre SP - Heliópolis Fonte: Arquivo pessoal.

As possibilidades do modelo e a produção através de plataformas de compartilhamento dentro da lógica do “faça você mesmo” (DIY), 18

fortemente atrelada as potencialidades da internet, permitiram a rápida dispersão do modelo pelo mundo (figura 33).

Para ROCHA (2015), os espaços físicos onde se desenvolvem atividades de produção e fabricação digital “estão focados em nichos de mercado externos à produção serial e em grande escala, e visam a atender a uma crescente demanda por soluções customizadas, personalizadas e específicas (p.164).

A proposta destes espaços visa possibilitar a construção de um objeto que seja necessário e faça falta ao seu idealizador, e não a produção em massa, sendo que os seus utilizadores, os Makers, normalmente desenham e concebem produtos que vão de encontro às suas próprias necessidades e desejos, e não às do mercado de massas. (MARAVILHAS, p.2, 2016)

Assim como MARAVILHAS (2016), ROCHA (2015) e NEVES (2014) corroboram a afirmação de que dentre as grandes vantagens desse modelo estão a autonomia da

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localização física dos laboratórios, pelo fato de que grande parte das relações encontram a opção de acontecerem de maneira remota através das TICs.

A concentração de indivíduos com formações e experiências diversas que integram em rede, somado ao valor agregado das soluções específicas pela interação entre diferentes atores e solucionadores de problemas que participam da ideia, favorece a replicabilidade e aprofundamento de soluções, independentemente de amarras geográficas.

Como exemplo pode-se citar o projeto smart citizen desenvolvido por técnicos do Fab Lab Barcelona (figura 34).

Figura 34 - kit smart citizen Fonte: Fab Lab Barcelona

Composto por um conjunto de sensores e uma placa de arduino (figura 35), o smart citizen é resultado das

pesquisas e intenções do Fab Lab Barcelona, sobre o comando de Tomas Díez e outros pesquisadores e makers, que se reuniram com o objetivo de desenvolver um dispositivo que assegurasse e favorecesse os processos de participação social nas questões urbanas.

Figura 35 - Placa e sensores smart citizen Fonte: Fab Lab Barcelona.

O dispositivo permite a coleta de dados urbanos georreferenciados como qualidade do ar, temperatura, probabilidade de chuva, nível de poluição local, entre outras, tendo como referencial o indivíduo portador do equipamento e os locais onde este passou.

O processamento desses dados resulta em gráficos e indicadores que permitem comparar o local de origem com o de destino, ou fazer análises remotamente para auxiliar a tomada de decisões antes de efetivamente estar no local.

O processo é similar ao que se faz com aplicativos de mobilidade colaborativos que permitem que seus usuários contribuam oferecendo informações locais em tempo real como Waze e Google Maps, que permitem simular o trajeto para mensurar o tempo que levara ou as condições das vias quanto a intensidade do tráfego no horário ou o histórico do local.

Figura 36 - Interface para acompanhamento das informações do smart citizen por plataforma web Fonte: Fab Lab Barcelona

Diferentemente dos sensores convencionais que são estáticos, na proposta do smart citizen cada cidadão pode se tornar um sensor e contribuir para a coleta de dados em

tempo real, portando o equipamento com a placa de arduino e tendo conexão com a internet para a transferência dos dados.

Esses dados podem ser visualizados pelo computador, tendo a expectativa de migrá-los para os smartphones. Equipamento muito mais próximo do usuário e de fácil acesso atualmente (figura 36).

A experiência teve como sua base de testes a cidade de Barcelona. Após os resultados considerados positivos pelos desenvolvedores, deu-se início ao processo de implementação em Amsterdã, com a colaboração do projeto Amsterdam Smart City and Waag Society e em Manchester com a colaboração da Future Everything e Intel.

Duas questões são relevantes a serem discutidas. A primeira resvala no problema da segurança de dados. Assim como afirmado por SANTAELLA (2016), ao mesmo tempo que a rede fornece informações para os usuários ela capta informações dos usuários informações involuntariamente.

Na verdade, em aplicativos georreferenciados, as informações que chegam à base de dados muitas vezes contém o perfil socioeconômico e as preferências do usuário, tornando-o facilmente rastreável.

Sem o tratamento cuidadoso e adequado dessas bases, informações pessoais podem ser compartilhadas em domínio público ou vendidas como bases para empresas de acordo com o perfil de consumo do usuário, o que poderia violar seu direito à privacidade.

A exposição dos dados produzidos de maneira voluntária ou involuntária figura com uma das questões tangenciais a esse modelo, devido à concentração de ações em rede que asseguram a produção de inovação.

De acordo com MIZUNI e RECCHI (2017), a inovação nesse tipo de oferta de serviço encontra-se centrada na possibilidade de construir e disponibilizar o que foi produzido dentro da rede para que outros possam contribuir com a ideia, tornando-a mais complexa ou adequada às suas necessidades individuais.

“Os Fab Labs buscam potencializar processos de inovação colaborativa, democratizando o acesso às máquinas e facilitando a conexão entre pessoas e organizações (...)” (ROCHA, 2015, P.164)

Esse modelo de laboratório de fabricação digital em rede tem visto seus números crescerem consideravelmente. Atualmente, a Fab Foundation, entidade responsável por

analisar, catalogar e inserir os Fab Labs em funcionamento e em fase de implantação, apresenta o total de 112319 laboratórios pelo mundo, localizados em praticamente todos os continentes, conforme apresentado na figura 37.

Figura 37 – Número de Fab Labs cadastrados de acordo com os dados disponíveis no site da Fab Foundation e agrupados por continente. Fonte: Produzido pelo autor.

* Os 32 laboratórios da Rússia encontram-se separados devido ao país ter parte de seu território no continente europeu e parte no asiático.

** Os 12 laboratórios da rede Fab Lab livre SP não integram a conta final dos laboratórios na América do Sul por ainda não estarem cadastrados na rede da Fab Foundation

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O número de Fab Labs foi encontrado no site da Fab Foundation, responsável por gerenciar e monitorar a rede de laboratórios pelo mundo. Os dados estão disponíveis em https://www.fablabs.io/labs?country=br – acesso em 21/04/2017, 13:00.

A ampliação das atividades tem resultado na proliferação de ações e tecnologias produzidas dentro da rede, rompendo as barreiras espaciais e possibilitando a integração de diferentes culturas dentro dos valores do Fab Lab.

Figura 38 - Fab Lab São Paulo Fonte: DigiFab USP

Como exemplo pode-se citar o projeto Fab Lab Kids, que, segundo CAMPOS; NEVES e ANGELO (2012), é fruto de um projeto que se configura em “redes abertas de informação e conhecimento” (p.384) aberta a crianças de 10 a 16 anos.

Essa iniciativa coordenada pela Associação Fab Lab Brasil contou com a participação dos Fab Labs Costa Rica, Barcelona, Lima e São Paulo (figura 38), além de outros colaboradores.

Figura 39 - Crianças desenvolvendo testes de prototipagem no 1° Fab Lab Kids Fonte: Fab Lab Barcelona.

Durante as duas edições que aconteceram no município de Guarulhos, o projeto visou a ensinar as crianças a importância do trabalho colaborativo e em rede, e o desenvolvimento de projetos tendo o desenho como a forma de ensina-los a sistematizar e organizar o pensamento.

“O desenho define uma ordem do pensamento, organiza as ideias e as suas formas, ajuda a hierarquizar a informação e a situá-la no lugar que lhe

corresponde. É também através do desenho que experimentamos o processo perceptivo de maneira mais profunda.” (CAMPOS; NEVES e ANGELO, p. 385, 2012)

Esse projeto tinha como um de seus objetivos principais, além de ensinar as crianças sobre a cultura dos Fab Labs e da fabricação digital, o de atenuar as barreiras geográficas e culturais, onde a partir da interação, mesmo que remota, com profissionais de outras localidades, pudesse de alguma maneira contribuir para o aprendizado mais amplo (figura 40).

Figura 40 - Imagem de desenho sobre proposta de projeto para Fab Lab Kids Brasil Fonte: Heloisa Neves

Algumas inciativas em menor escala, envolvendo alunos do ensino fundamental e médio têm acontecido na rede Fab Lab Livre SP.

Inculcar a cultura da fabricação digital e familiarizar as crianças com os vieses da solução de problemas e de produção de tecnologia é uma forma de demonstrar o cunho democrático e a possibilidade de aprendizado latente nas iniciativas de trabalho em rede e as externalidades possíveis por meio de projetos colaborativos (figuras 40 e 41).

Figura 41 - Protótipo finalizado na projeto Fab Lab Kids Brasil Fonte: Heloisa Neves.