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Será que podemos extrair mais do que isso da condição de adequação material? Não poderíamos considerar que as sentenças-T (o conjunto de enunciados da forma “S é verda- deira se e somente se p”) fornecem uma expressão adequada da teoria da verdade como correspondência? Pois o que nós temos, como foi indicado no último parágrafo, é uma correlação entre proposições da linguagem-objeto, de um lado, e fatos – ou pelo menos estados de coisas, existentes, ou não –, do outro. Mas isso é ler coisas demais no esquema-T, isto é, no esquema para as sentenças-T. Certamente uma teoria da correspondência deveria satisfazer a condição de adequação material – todas as sentenças-T deveriam ser implicadas por ela. Mas é a teoria da correspondência, não a condição de adequação material, que interpreta o lado direito como uma referência a fatos ou estados de coisas. No esquema, há uma correlação entre a linguagem e o mundo; no lado esquerdo, uma referência a entidades linguísticas, e no lado direito – alguém poderia ter a coragem de alegar –, uma “referência” não linguística, sua condição de verdade. Mas é um passo adiante ler naquela descrição uma referência metafísica a fatos. A teoria da correspondência envolve uma metafísica de fatos e estados de coisas correlacionados a proposições. Esse é seu erro fundamental: construir a semântica da verdade em analogia com a referência de “Fido”2. O esquema-T é neutro

no que diz respeito a essa questão. Qualquer teoria semântica irá estabelecer uma correlação entre a linguagem e o mundo; a metafísica da teoria da correspondência concebe isso como uma correlação entre proposições e fatos.

O próprio Tarski também apresentou uma teoria da verdade, que não deve ser confundida com sua condição de adequação material, a ser atendida por qualquer teoria da verdade. Sua própria teoria da verdade era próxima das teorias da correspon- dência de Russell e Wittgenstein – mas sem a referência a fatos. Deixando de lado a linguagem natural, vulnerável a paradoxos semânticos por ser semanticamente fechada, ele mostrou como construir uma semântica para uma linguagem formal, uma linguagem especificada pela descrição inicial de uma classe de sentenças atômicas, seguida por um tratamento recursivo de como sentenças complexas são construídas a partir de senten- ças mais simples. (Chamar isso “recursivo” significa que, dada qualquer cadeia de símbolos, podemos checar formalmente se ela é bem formada e se constitui uma legítima sentença.) Sentenças atômicas são constituídas de nomes e predicados, cada um asso- ciado a alguma entidade não linguística: nomes com objetos, predicados com propriedades, ou relações, ou conjuntos. Uma sentença atômica é verdadeira se os objetos por ela nomeados têm a propriedade ou são ligados pela relação associada ao predi- cado. (Por exemplo, “Sortes currit” é verdadeira se e somente se o objeto denotado por “Sortes” tem a propriedade associada a “currit”.) Sentenças complexas são tratadas do modo que vimos antes: “não-A” é verdadeira se A não é verdadeira; “A e B” é verdadeira se A é verdadeira e B é verdadeira; e assim por diante. (Na verdade, Tarski forneceu a definição recursiva da noção de “satisfação” – s satisfaz “não-A” se s não satisfaz A, e assim por diante – e definiu verdade em termos de satisfação. Mas essa é uma complicação que podemos ignorar aqui.) Dois pontos são importantes: foi mostrado que a definição de verdade, embora distinta das condições de adequação material – isto é, a teoria de Tarski sobre teorias da verdade –, atendia tais condições; e em lugar algum da definição de verdade, nem da teoria sobre teorias da verdade, há qualquer comprometimento explícito a uma determinada metafísica da verdade.

O que podemos ler de modo mais plausível no tratamento de Tarski – embora, vale lembrar, não seja implicado por ele – é um tratamento da verdade metafisicamente minimal. Um tal tratamento pode ser de três formas: uma denomina-se a si mesma “minimalismo” e afirma que o conjunto das sentenças-T esgota o que há para ser dito acerca da verdade; um tratamento minimal mais antigo é a teoria da “redundância”; e uma versão mais recente é a chamada teoria “prossentencial”. Dentre essas três formas, vamos ver agora a segunda e a terceira.

De acordo com a teoria da correspondência, o predicado- -verdade é um predicado-substantivo, que atribui uma proprie- dade relacional a proposições. Em virtude de sua correlação com fatos, proposições verdadeiras têm uma propriedade real, uma propriedade que as distingue das proposições falsas. Isso é negado pela teoria da redundância. Ela diz que verdade é redundante no sentido que predicar verdade a uma proposição não diz nada além da asserção da própria proposição. Vejamos um exemplo: “‘Matilda é sensível e brilhante’ é verdadeira” não é, de acordo com a teoria da redundância, e apesar das aparências, uma afir- mação acerca de uma proposição, atribuindo-a a propriedade da verdade. Antes ela seria uma afirmação acerca de Matilda, dizendo que ela é sensível e brilhante. Ela diria nada além ou aquém do que a proposição “Matilda é sensível e brilhante”. Nenhuma teoria da verdade é necessária, pois não haveria uma tal coisa como a verdade. As sentenças-T de Tarski são verda- deiras porque seus lados direito e esquerdo são essencialmente idênticos – diferem apenas notacionalmente.

O que significa dizer que verdade não é uma propriedade real? O exemplo filosófico mais comum de uma recusa desse tipo é da noção de existência, que veremos em algum detalhe no Capítulo 5. A versão de Descartes do argumento ontológico da existência de Deus afirma que, posto que existência é uma perfeição e Deus tem todas as perfeições, Deus deve existir. A resposta de Kant foi que perfeições são propriedades (propriedades que tornam aquele que as possui melhor de algum modo) e existência não é

uma propriedade, logo o argumento falha. Posto que não existe diferença alguma entre, digamos, um Deus e um Deus existente, ou entre uma mesa e uma mesa existente, existência não é uma propriedade. Se a mesa não existe, não há mesa alguma. Para ter quaisquer propriedades, aquilo que possui as propriedades deve existir. Logo, a existência não pode ser uma propriedade.

Nem sempre podemos confiar na linguagem. Considere a sentença “Está chovendo!”. Perguntar “O que é isso que está a chover?” revela uma ignorância do português ou estupidez filosófica. Sem dúvida, uma resposta pode ser produzida, mas na verdade a sentença não serve para predicar “chuva” de alguma coisa. Ela significa que há chuva, que a chuva está caindo. Gramaticalmente, a sentença tem a forma sujeito-predicado, mas não há sujeito algum. Do ponto de vista lógico, há apenas um predicado.

A predicação da verdade é enganadora de modo similar. Se nós afirmamos uma proposição, nós a afirmamos como verda- deira. Logo, dizer que ela é verdadeira nada acrescenta. é isso o que as sentenças-T nos mostram. Mas as sentenças-T não são apenas uma condição mínima para testar uma teoria da verdade substancial. Antes, elas nos mostram que não há substância alguma na noção de verdade.

Por que então a linguagem tem um predicado-verdade? Se tudo o que pode ser feito com ele pode ser feito sem ele, qual é a utilidade de um predicado-verdade? Dizer que verdade não é uma propriedade real, e que a noção de verdade não é substantiva, não é o mesmo que dizer que a noção de verdade não tem utili- dade, nem que tudo o que pode ser feito com ela pode ser feito sem ela. O predicado-verdade permite que façamos afirmações gerais que não poderíamos fazer sem ele. Considere a frase “o que John disse é verdade”, e suponha primeiro que o que John disse foi “Oswald matou Kennedy”. Assim, podemos reformular a frase como “‘Oswald matou Kennedy’ é verdadeira”, e então

descartar o predicado-verdade, redundante, obtendo “Oswald matou Kennedy”. Temos a mesma afirmação feita por John.

Mas suponha que nós não sabemos o que John disse – nós estamos endossando sua frase não porque sabemos o que ele disse e também acreditamos nisso, mas talvez porque sabemos que John nunca mente, ou porque alguém nos disse para acreditar nele. O predicado-verdade nos habilita a endossá-lo sem repetir o que ele disse. Nossa frase inclui a generalidade: “o que quer que John tenha dito (naquela ocasião)...”, isto é, “para toda propo- sição, se John proferiu tal proposição (naquela ocasião), então tal proposição é verdadeira”. Um dos primeiros proponentes da teoria da redundância foi Frank Ramsey. Ele fez uma observa- ção interessante. Suponha que todas as proposições tivessem a forma aRb – por exemplo, “Oswald matou Kennedy”. Então, poderíamos dizer “para todos os nomes e predicados a, R e b, se John disse que aRb, então aRb”. Em particular, se John disse que Oswald matou Kennedy, então Oswald matou Kennedy. Aqui, no consequente do condicional (a parte depois do “então”) existe um verbo (R). Portanto, não precisamos acrescentar “é verdadeira”. Mas nem todas as proposições são da forma aRb

– há um número ilimitado de diferentes formas de proposições.

é impossível percorrer todas as formas de proposições possíveis. Logo, dizemos “o que quer que John disse...”, e agora precisamos de um verbo no consequente; nós não podemos simplesmente concluir “...essa proposição”. O predicado-verdade cumpre o papel de um tal verbo: “...essa proposição é verdadeira.”

Em que sentido, então, a verdade é redundante? Não é que tudo o que pode ser feito com o predicado-verdade pode também ser feito sem ele. Nesse sentido, ele não é redundante. Do ponto de vista gramatical ele é requerido, como um “falso verbo”. Mas do ponto de vista lógico e metafísico ele é redundante. O predicado-verdade não adiciona coisa alguma à sentença à qual é acrescentado. Não existe uma condição que possa comple- tar o critério “proposições verdadeiras são aquelas que...”.

Seguindo Tarski, podemos tomar casos particulares: “‘Oswald matou Kennedy’ é verdadeira se e somente se Oswald matou Kennedy.” Seguindo Ramsey, podemos generalizar parcial- mente: “proposições verdadeiras da forma ‘aRb’ são aquelas que aRb.” Se tentamos generalizar completamente, tudo o que obtemos é “proposições verdadeiras, p, são aquelas que...” – p? Não, não podemos dizer isso, não é gramaticalmente correto: “é verdadeira” deve ser adicionado, como um “falso verbo”. Mas isso, certamente, não ajuda muito e é trivial: “proposições verdadeiras p são aquelas em que p é verdadeira.”

A teoria da redundância tem um ponto importante e benéfico. Ela evita a procura por uma metafísica da verdade em termos de objetos, a busca por uma propriedade real das proposições verdadeiras. Mas há mais acerca da verdade do que a mera repe- tição – o ponto sobre generalidade mostra isso. E mais: a simples repetição do que outra pessoa falou perde o caráter de endosso. é isso que o tratamento prossentencial acrescenta à teoria da redundância. Dizer que uma proposição é verdadeira é fazer mais do que repeti-la, é endossá-la também. A teoria da redundância está correta em negar que a verdade é uma propriedade real; ela erra ao insistir que o predicado-verdade é realmente redundante. Isso é mostrado já pelo ponto acerca da generalidade. Mais importante, entretanto, é a natureza anafórica da predicação de verdade. Dizer “isso é verdade” ou “o que John disse é verdade” é essencialmente se referir a outra afirmação – mas não predicar uma propriedade real a tal afirmação.

O epíteto “prossentencial” é um neologismo, uma palavra criada por analogia com “pronominal”. Pronomes anafóri- cos servem para nos referirmos a outros nomes, e obtermos a referência de tais nomes. Por exemplo, em “Peter abriu a porta, ele pegou a correspondência”, “ele” se refere ao uso de “Peter” na primeira sentença. De modo similar, em “Peter pegou sua correspondência”, “sua” (se usado anaforicamente) se refere a “Peter”. Nesses casos, temos o que se chama de

pronomes-por-preguiça; seu sentido é dado essencialmente ao se colocar no lugar de um nome. Deixando de lado a falta de estilo, poderíamos substituí-los pelo antecedente, por exemplo: “Peter pegou a correspondência de Peter” – temos de ignorar a sugestão, produzida pelo uso repetido de “Peter”, de que estamos nos referindo a duas pessoas diferentes. Note que o antecedente de um pronome (não definimos essa noção precisamente) pode vir após o pronome, por exemplo: “Quando ele abriu a porta, Peter pegou sua correspondência.” O antecedente de “ele” na primeira oração (subordinada) é “Peter” na segunda oração (principal).

Nem todos os pronomes anafóricos são pronomes-por- -preguiça. Por exemplo, em “Alguém abriu a porta. Ele pegou a correspondência”, não podemos, preservando o sentido, substituir “ele” por “alguém”. Gareth Evans chamava casos desse tipo de “pronomes tipo-E”. Para substituí-los por um termo nominal, temos de construir uma expressão em função do contexto: “Alguém abriu a porta. A pessoa que abriu a porta pegou a correspondência.” Aqui também tais pronomes servem para se referir a algo que já foi referido antes, mas eles não podem simplesmente ser substituídos pela expressão antecedente. Um terceiro tipo de pronome anafórico é o uso quantificacional. Considere a proposição “todo estudante trouxe a sua foto do passaporte”: “sua” é anafórico, mas não pode ser substituída pelo antecedente, nem existe uma sentença ou oração anterior que permita a construção de um termo nominal. A proposição não significa “todo estudante trouxe a foto do passaporte de todo estudante”, logo “sua” não é um pronome que esteja no lugar de um nome. Ele se refere ao quantificador “todo” e extrai dele sua referência (outros quantificadores são “algum”, “nenhum”, “cada”, “qualquer” etc.).

A verdade tem uma função anafórica similar. “‘Oswald matou Kennedy’, disse John. ‘Isso é verdade’, respondeu Mary.” Nós poderíamos primeiro identificar “isso” como um pronome anafórico, mas podemos ir além. A frase inteira “isso é verdade”

pode ser substituída pelo seu antecedente. Tudo o que Mary diz é “Oswald matou Kennedy”. Mas ao fazê-lo, ela endossa o que John havia dito. Isso é o que escapa à teoria da redundância. O acréscimo do elemento anafórico completa o tratamento da verdade. Outros usos prossentenciais da verdade são do tipo-E: “John disse alguma coisa. Se isso era verdadeiro, então...” – aqui nós não podemos substituir “isso” por “alguma coisa”, nem podemos reduzir “o que John disse era verdadeiro” ao que John disse. “Isso era verdadeiro” é uma prossentença por meio da qual designamos a referência do que John disse. Outros usos são quantificacionais, por exemplo: “nada do que John diz é verdadeiro” – isto é, para toda proposição p, se John disse p, então p não é verdadeira. Nós não podemos substituir “p” em “p não é verdadeira” por qualquer antecedente aqui, ainda que “p não é verdadeira” se refira ao seu antecedente quantificacional, “tudo o que John disse”.

A verdade não é uma propriedade. Nós não podemos caracte- rizar as proposições verdadeiras, pois não há uma característica comum compartilhada pelas proposições verdadeiras. As senten- ças-T nos mostram que predicar a verdade de uma proposição é equivalente a asserir essa proposição. O que o predicado-verdade acrescenta é a generalidade: nos torna capazes de fazer afirmações gerais abstraindo das particulares; e o endosso: o papel anafórico da verdade ao responder e comentar outras afirmações.