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PARTE II A UNIÃO EUROPEIA ENQUANTO ACTOR GEOPOLÍTICO

2.6. A União Europeia como actor normativo

A concepção da União Europeia sob o ponto de vista normativo apresenta-se, desde logo, como uma inovação disruptiva, quando comparada com as demais concepções, mais tradicionalistas, que também abordamos no presente capítulo.

Esta concepção alternativa da U.E encontra as suas raízes no modelo de potência normativa proposto por Ian Manners, o qual caracteriza a U.E com base na acção e difusão de um conjunto de normas, postas em prática através de diversos meios e instrumentos. Segundo Manners, potência normativa é aquela que “detenha a capacidade para determinar ou modificar aquilo que é considerado como normal na estrutura específica das relações internacionais.” (MANNERS, 2000:32, trad. livre do autor) Daqui se extrai uma capacidade efectiva para moldar e influenciar o conjunto de valores que rege o SRI.92

Também sobre esta matéria Helen Sjurdsen avança com uma definição de poder normativo que, no seu entendimento, “[…]seria aquele que busca superar a política do poder através de um reforço da lei não só internacional, mas cosmopolita, enfatizando os direitos dos indivíduos e não apenas os direitos dos Estados de igualdade soberana.”93 Por outras palavras, a mesma autora esclarece que: “Seria um poder que está disposto a vincular-se a si próprio, e não só os outros, a regras comuns.”94

De acordo com a perspectiva normativa as relações internacionais são concebidas como um sistema que engloba uma multiplicidade de actores de diversa natureza, que concorrem directamente com os actores Estados pela relevância internacional. Deste modo, a quantidade de recursos, bem como a autonomia em determinadas áreas revelam-se factores mais determinantes do que a própria soberania, no que ao reconhecimento do estatuto de actor relevante na cena internacional diz respeito. É uma perspectiva que vai, também, ao encontro da corrente democrática do interesse nacional, segundo a qual a variável da política externa pode, e deve, ser interpretada e avaliada de formas distintas pelos decisores nacionais, de acordo com um padrão normativo dinâmico e passível de modificação.95 Isto porque se encontra

92Ferreira, 2005, p.88. 93Sjurdsen, 2006, p. 237. 94Idem, ibidem.

95Para um conhecimento mais aprofundado ver: Maria João Ferreira; A Política Externa Europeia,

Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa 2005, pp.88-89.

dependente da posição ocupada pelo Estado no SRI, bem como do entendimento que a comunidade nacional tenha do contexto internacional envolvente.96

Esta abordagem, fundada por Manners, enquadra-se, igualmente, num novo entendimento do conceito de poder no âmbito das relações internacionais, intimamente ligado à introdução do conceito de soft power por Joseph Nye,97 que, segundo as palavras de Maria João Ferreira, o define como “a utilização de recursos não coincidente com os factores inerentes ao uso da força.”98

Relativamente à realidade europeia, para que a sua compreensão normativa se torne efectivamente possível é inevitável ir ao encontro do acquis communautaire99 da U.E, e que, de acordo com Manners, constitui o âmago da sua base normativa. O mesmo é dizer, segundo o próprio, que a compreensão normativa da Europa:

“[…]reside na discussão em torno de uma ideia-chave, “o poder sobre a opinião”, o “poder ideológico”, ou o “poder simbólico” e o desejo de ir mais além do debate sobre a projecção do actor como um Estado através da compreensão da identidade internacional da U.E.” (MANNERS, 2000:29, trad. livre do autor)

A sua abordagem normativa assenta numa opção comum por uma análise que permite responder às limitações dicotómicas inerentes ao intergovernamentalismo e ao supranacionalismo. Traduz-se, assim, numa análise que rejeita a ideia estatocêntrica da integração europeia e que exorta a uma maior autonomia da identidade internacional e da acção externa da U.E por comparação com os seus EM. De acordo com Manners, a base normativa da União já existe e reside no seu aquis communautaire. O mesmo é dizer, num conjunto de princípios, valores e direitos fundamentais que forjam a identidade de toda a construção europeia e que têm sustentado toda a sua evolução desde a sua génese. O quadro 2, que abaixo

96Ferreira, 2005, p.91.

97Professor da Universidade de Harvard (E.U.A), Joseph Nye foi o primeiro a utilizar e a

desenvolver este conceito em 2004, no seu livro intitulado “ Soft Power: The means to success in world politics.”

98Ferreira, 2005, p.93.

99Expressão francesa que encontra tradução na língua portuguesa na expressão “acervo comunitário”

ou” adquirido comunitário”. É utilizada para se referir ao conjunto de direitos e obrigações produzidos pela U.E e que vinculam todos os EM. Para um conhecimento mais aprofundado ver: Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 96-98.

apresentamos, ilustra, precisamente, todo esse conjunto de princípios, valores e direitos que constituem a base normativa da U.E, e que são parte integrante do seu direito originário. Entre eles destacam-se o respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, o direito à liberdade, à dignidade, à justiça e à igualdade, entre tantos outros.

Quadro 2 – Base Normativa da U.E segundo Manners

Valores/Princípios Fundamentais Missões e Objectivos Instituições Estáveis Direitos Fundamentais Liberdade Democracia Respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais Estado de Direito Solidariedade social Não discriminação Desenvolvimento Sustentável Garantia da Democracia Estado de Direito Direitos Humanos

Protecção das Minorias

Dignidade Liberdades Igualdade Solidariedade Cidadania Justiça Direito Originário – Art. 6º TUE (versão 2002) Direito Originário – Art.2º TUE (versão 2002) e Arts. 6º e 13 TCE Critérios de Copenhaga – (estabelecidos pelo Conselho Europeu em Junho de 1993 Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia

Para colocar em prática toda a sua base normativa, a U.E dispõe de um conjunto de instrumentos de acção, particularmente no âmbito das suas relações externas, que lhe permitem afirmar-se como um actor normativo reputado e reconhecido internacionalmente. De acordo com o Quadro 3, abaixo apresentado, eles são o resultado de seis factores, segundo os quais se difundem as normas da U.E à escala global. São eles: o contágio, a informação, a institucionalização, a transferência, a abertura e o filtro cultural. O mesmo quadro apresenta, não só uma descrição mais

Fonte: Adaptado de MANNERS, I. (2000); Normative Power Europe: A Contradiction in terms?, Copenhagen Peace Research Institute, Copenhagen, p.33

detalhada desses factores, como menciona, ainda, alguns exemplos concretos dos instrumentos que garantem a difusão global da base normativa da U.E.

Quadro 3 – Factores de difusão das normas da U.E segundo Manners

Contágio Informação Institucionalização Transferência Abertura Filtro Cultural Descrição Difusão não intencional de normas a terceiros Difusão de normas através de Comunicações declaratórias e estratégicas Institucionalização de relações entre a U.E e terceiros Troca de bens, serviços, ajuda, assistência técnica entre a U.E e terceiros Presença física da U.E em organizações e Estados terceiros Difusão cultural e aprendizagem política em países terceiros Exemplos Tentativas de integração regional no Mercosul Recomendações da presidência da UE e da Comissão Europeia Acordos de cooperação regional; adesão a uma Organização Internacional; negociações de adesão à U.E Programas PHARE e TACIS para os países da Europa de Leste; FDE para os países de Lomé Delegações da Comissão e das embaixadas dos EM; deslocações e visitas do Presidente da Comissão Difusão de normas democráticas na China e dos direitos humanos na Turquia

Fonte: Adaptado de MANNERS, I. (2000); Normative Power Europe: A Contradiction in terms?, Copenhagen Peace Research Institute, Copenhagen, p.35

Outro dos motivos que também contribui para explicar a relevância da U.E enquanto actor normativo diz, precisamente, respeito ao facto da sua acção normativa abranger uma multiplicidade de áreas e domínios, o que lhe confere um carácter quase universal. Destaque, também, para a proclamação da CDFUE que, proseguindo a lógica de Manners, nos permite concluir que veio reforçar fortemente a relevância e o carácter normativos da União.100 Deste modo a U.E consegue perfilar-se como muito mais do que um projecto de integração regional e económica para se afirmar como um verdadeiro exemplo e um verdadeiro projecto multidimensional de alcance e relevância mundiais.

Já relativamente à forma de reconhecer e identificar o poder normativo da U.E como elemento distintivo do dos demais actores internacionais é pertinente recordar

100Esse carácter saiu, ainda a mais, reforçado após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa que

as palavras do antigo Alto Representante para a PESC, Javier Solana quando afirmou num dos seus discursos que:

“A forma mais distinta que a U.E exerce o poder, seja ele civil ou militar é cada vez mais colocada em termos de uma “maneira europeia” de conduzir as relações internacionais, o que implica a existência de uma sistema emergente de valores europeus que determina as regras que regem a acção externa.” 101

É essa “maneira europeia” de conduzir as relações internacionais que hoje encontra eco na actuação externa da União sob o ponto de vista normativo. A U.E não só procura uma permanente actualização das suas normas, como procura, sobretudo actuar de modo a que elas sejam difundidas a todo o SRI.102 É por isso que Solana reitera que: “O conceito de “Europa normativa” é uma tentativa de sugerir que a U.E não é apenas construída a partir de um base normativa, mas ainda mais importante, que se predispõe a agir de forma normativa na política mundial.”103 Assim, deve ser entendido como um paradigma civilizacional, resultante da soma de três grandes eixos, traduzidos na figura 2, e que nos permite, desde logo, responder à questão “o que é o Sistema das Comunidades Europeias e da União Europeia?”

Alargamento + Aprofundamento + Utopia da Conclusão = UNIQUE POWER

101Solana, Speech S013/05, Brussels, 24 January 2005, trad. livre do autor. 102Idem, ibidem, p.252. 103Idem, ibidem. Paradigma Civilizacional Utopia da Conclusão Alargamento Aprofundamento

Figura 2 - A U.E como Paradigma Civilizacional

Fonte: Adaptado de LOPES RODRIGUES, E. R. (2010), Instituições e Políticas de Regulação incluindo o Quadro Institucional do Tratado de Lisboa; Instituto Superior de

a) O alargamento, que diz respeito à adesão de novos EM ao SCEUE, mediante a

aceitação prévia dos seus valores e normas de funcionamento, bem como do cumprimento de um conjunto de critérios e objectivos definidos para o efeito. Este é, igualmente, o eixo que permite aferir a capacidade de expansão e atracção do SCEUE no que a novos EM diz respeito. É, também, o eixo do alargamento que determina o alcance dos valores, dos princípios e das normas do SCEUE, e, em particular, a sua capacidade de aceitação externa por parte de terceiros. Com efeito, este é um eixo que encontra alguns obstáculos particularmente sensíveis, nomeadamente a definição dos limites geográficos da própria Europa, que, como se sabe, é uma questão que está longe de ser consensual, mas também os processos negociais de adesão ao SCEUE que, não raras vezes, são longos e difíceis.

b) O aprofundamento, é, porventura, o eixo mais complexo e delicado, na

medida em que diz respeito à densificação do poder do SCEUE. É este eixo que determina o grau de envolvência e de abrangência dos seus mecanismos de integração política e na vida quotidiana dos cidadãos europeus, bem como o grau de afectação da soberania dos EM. No fundo, é o eixo responsável pela dialéctica entre a lógica supranacional e a lógica intergovernamental, com o intuito de visar a convergência em torno de um modelo de integração político e económico identificável e consolidado.

c) A Utopia da conclusão em si mesma, ou seja, a definição de qual será ou

deverá ser o fim último para o SCEUE. Em bom rigor trata-se da utopia sempre inacabada de dar por totalmente consumado o projecto de construção europeia segundo um modelo de sociedades policêntricas, que permita a identificação, nas suas várias dimensões (política, económica e social), de um conjunto de denominadores comuns aos olhos dos demais actores e agentes internacionais.

É, portanto, com base nestes três eixos que o SCEUE tem feito, desde a sua génese, a sua progressão e o seu desenvolvimento futuros. Da sua soma resulta, então,

aquilo que podemos designar por “Unique Power”. Um poder normativo singular, autónomo e independente, com externalidades coercivas, transversais e prevalecentes, sobre outras geografias concorrenciais. Por outras palavras, uma verdadeira fonte de políticas multidisciplinares, cujo impacto externo se projecta muito para além das fronteiras do SCEUE, e que exercem o seu poder de influência junto dos demais actores agentes internacionais.

Porventura o exemplo que melhor traduz este ”Unique Power” é nos dado pela política comunitária de concorrência,104 que veio permitir a afirmação, à escala global, daquilo que é hoje comummente reconhecido como “regime de concorrência não falseada”. Um conceito de matriz europeia que permitiu a consolidação e o reconhecimento externos de um paradigma concorrencial inédito, sólido e de alcance mundial. Um paradigma que, ao estabelecer uma nova ordem jurídica concorrencial comunitária aplicável a diversos protagonistas, desde Estados, agentes empresariais e consumidores, logrou conquistar o respeito e a credibilidade de diversos actores e agentes políticos, económicos e sociais, não só europeus, como também internacionais.105 Assim o demonstra a competência atribuída à Comissão Europeia para sancionar directamente empresas sediadas, não apenas no território da U.E, como também em países terceiros. Facto que é, desde logo, comprovado pelas sanções pecuniárias aplicadas pela Comissão Europeia às gigantes norte-americanas Microsoft e Intel por abuso de posição dominante.106

Há, no entanto, que reconhecer que a interaccção e a interdependência entre estes três eixos aportam consigo um grau de complexidade crescente ao funcionamento e evolução de todo o SCEUE.107 A ocorrência de derivas letais é, apesar de tudo, um

104A política comunitária de concorrência surgiu em 1957, aquando da entrada em vigor do Tratado

de Roma. De acordo com Eduardo Lopes Rodrigues surgiu “como a área onde os Estados Fundadores da então Comunidade Europeia transferiram uma maior parcela substantiva da sua Soberania para instituições supraestaduais – a Comissão Europeia, a tal ponto que o Valor que essa política promove é assumido como a Quinta Liberdade Estrutural de todo o processo da Construção Europeia, a apar das restantes Quatro que são obrigatoriamente referidas nos livros introdutórios das questões europeias: Mercadorias, Serviços, Capitais e Pessoas.” Lopes Rodrigues, 2007, p.332.

105Não é por acaso que Eduardo Lopes Rodrigues considera o surgimento da Política Comunitária de

Concorrência como “um momento que, até à data, não teve paralelo comparável em qualquer outra latitude em termos das Relações Internacionais.” Lopes Rodrigues, 2010, p.337.

106Ver resumo das decisões 2009/C 166/08 e 2009/C 227/07 da Comissão Europeia. 107Lopes Rodrigues, 2010, p.141.

risco real, tendo não só em conta a tensão permanente existente entre a lógica supranacional e a lógica intergovernamental, bem como a multiplicidade de actores e agentes que, directa ou indirectamente, intervêm em todo o processo orgânico- funcional do SCEUE. Com efeito, o desafio e a chave do sucesso devem residir na extracção das sinergias a partir destes três eixos, pois a sua diversidade representa, inequivocamente, um activo de valor acrescentado e sem paralelo no quadro normativo internacional.108

Por tudo a que aludimos, somos levados a concluir que a U.E é hoje, indiscutivelmente, um actor normativo por excelência, não só pelo facto de se fundar, desde a sua génese, numa base normativa (acquis communautaire), que tem sabido preservar como nenhum outro actor, mas, acima de tudo, pelo facto de agir enquanto tal no contexto geopolítico internacional, através da difusão e prevalência multidimensional dessa mesma base normativa, num claro exercício demonstrativo da validade e capacidade do seu Unique Power. O que não deixa de ser curioso e, no mínimo, paradoxal tendo em conta que como nos recorda Rosecrance: “[…] um continente que outrora dominou o mundo através de imposições físicas imperialistas esteja agora a definir padrões mundiais em termos normativos”.109