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PARTE II A UNIÃO EUROPEIA ENQUANTO ACTOR GEOPOLÍTICO

2.7. A União Europeia como actor político

Conceber a União Europeia enquanto actor político tem sido, porventura, o motivo de maior debate, entre os mais conceituados teorizadores e analistas políticos ao longo das últimas décadas. É inegável que o peso político de um actor no contexto internacional é o factor que melhor determina a sua relevância, a sua influência e a sua credibilidade no xadrez mundial. E se há actor que se vê hoje, mais do que nunca, confrontado com um conjunto de desafios que só conseguirá superar quando se conseguir afirmar decisivamente enquanto actor politicamente relevante, é indiscutivelmente a U.E.

108Idem, Ibidem.

“A Europa é um gigante económico, um anão político e um verme militar.”110 Esta frase proferida por Mark Eyskens ficou mundialmente celebrizada até aos dias de hoje, e a verdade é que, volvidas mais de duas décadas após a sua profissão, o seu significado permanece pertinente e actual. Isto porque, apesar do estabelecimento de uma Política Externa e de Segurança Comum e de uma Política Comum de Segurança e Defesa, com todas os avanços que lhes fomos conhecendo, a U.E continua a sofrer de um preocupante e manifesto hiato entre as suas expectativas e as suas capacidades políticas e militares. Ao contrário do que acontece, de forma mais evidente, no plano económico, a União tem padecido de uma incapacidade crónica de agir e de se fazer ouvir de forma una, coesa e concertada no contexto geopolítico internacional, sobretudo no que às hard politics111 diz respeito. Esta incapacidade não pode, de modo algum, ser dissociada do facto da União Europeia, ao contrário de outros actores como os E.U.A, a China, a Rússia e os demais actores emergentes, só para mencionar alguns, se caracterizar por uma natureza política indefinida que não permite classificá-la nem como um Estado nacional, nem um Super-Estado, nem, ainda, como uma Federação ou Confederação de Estados. Isto porque não possui uma plena convergência de interesses a nível europeu, nem muito menos um governo próprio e autónomo, ou mesmo uma política externa única. Logo por aqui se torna evidente que não é possível considerar a U.E como um verdadeiro e relevante actor político no contexto internacional.

A este propósito convém, ainda, relevar a posição e o estatuto da U.E no seio das principais OI. Nomeadamente no que à ONU diz respeito, a União não se encontra representada, como entidade única, nos principais órgãos desta OI.112 Ainda que se possa considerar a sua representação indirecta através dos seus EM, a verdade é que nem sempre estes estão de acordo e em sintonia relativamente às matérias em

110A frase foi proferida em 1991 pelo, então, primeiro-ministro belga durante o período em que

decorreu a Guerra do Golfo (2 de Agosto de 1990 – 28 de Fevereiro 1991).

111Deriva da expressão Hard Power, introduzida por Joseph Nye e pode ser entendida como o

conjunto de políticas que permitem o recurso a meios, sobretudo militares e económicos, como forma de influenciar decisivamente o comportamento de outros actores e agentes do SRI.

112Tanto no Conselho de Segurança, como na Assembleia-Geral ou no Conselho de Direitos

Humanos, que constituem os três grandes fóruns da ONU, é cada um dos EM da U.E que está representado e não a União como um todo.

questão, o que, em bom rigor, torna a representação política da União ineficaz, se não mesmo inexistente. Na U.E continuam a prevalecer os múltiplos interesses e identidades nacionais que, apesar de coordenados e concertados, fazem perpetuar a regra da unanimidade em muitas das mais delicadas matérias da construção europeia, constituindo, assim, uma importante força de bloqueio relativamente à tomada de posições e decisões.113 E num sistema onde as decisões, qualquer que seja a sua natureza, sejam tomadas por unanimidade torna bastante difícil a ocorrência de mudança positiva.

A U.E continua, igualmente, sem possuir um documento político oficial que explicite clara e objectivamente quais os seus poderes, as suas competências e particularmente, as suas capacidades e os momentos para agir politicamente em detrimento dos EM. Nem mesmo os Tratados, no conjunto das suas disposições, conseguem satisfazer esta necessidade de forma expressa e sem evitar interpretações e entendimentos dúbios. Como consequência evidenciamos uma quase total ausência de instrumentos políticos que materializem na prática, e de forma eficaz, as aspirações políticas da União. Neste sentido, a política externa postula-se, porventura, como a expressão mais evidente desta lacuna, permanecendo como um domínio exclusivamente intergovernamental, e cuja integração no âmbito geral das políticas comunitárias se perspectiva como um cenário altamente improvável e aparentemente indesejado, num futuro mais ou menos próximo. A falta de uma voz una e coesa, que permita credibilizar e concertar a acção e a posição da U.E no contexto geopolítico internacional, pondo fim a décadas de cacofonia europeia, aparenta perpetuar-se no tempo, agravando celeremente a insignificância e a irrelevância europeias não só enquanto actor político como, também, em parte, enquanto actor global. Como exemplo recente podemos apenas relembrar os acontecimentos revoltosos ocorridos nos últimos anos na vizinhança europeia,114 os quais vieram tão somente comprovar a incapacidade da União se afirmar politicamente pela positiva não só a nível

113Tome-se como exemplo mais evidente a PESC, domínio exclusivamente intergovernamental,

onde a unanimidade é a regra padrão, salvo raras excepções devidamente previstas pelo direito originário.

114Nomeadamente os conflitos e as tensões ocorridos no âmbito da “primavera árabe” entre 2010 e

regional como, sobretudo no contexto geopolítico global. Como consequência desta sua inoperabilidade e inabilidade políticas, a própria capacidade e relevância conquistadas, durante décadas, pela U.E, enquanto promotora de valores, princípios e normas fundamentais vêem-se, igualmente, comprometidas. O mesmo é dizer que o seu estatuto enquanto actor económico, normativo e social se encontra na eminência de ser posto em causa. É por isso que a agudização das ameaças que pairam sobre o futuro da U.E, bem como as teses que vaticinam a sua decadência e a sua imagem de descredibilidade e vulnerabilidade encontram, assim, grande parte da sua razão de ser na concepção e na análise da União sob o ponto de vista político. Com efeito, não se deve sonegar a evolução progressiva e positiva, ainda que demorada, que se tem registado neste domínio da política externa.115

Ainda assim, é um facto, por demais evidente, que a U.E não possui um modelo nem um conceito político claro e definido, tendo em conta que não é um Estado, nem uma federação, nem mesmo uma confederação, apesar de possuir elementos de qualquer uma destas tipologias.116 A complexidade e a singularidade da sua

natureza sui generis fez com que ao longo das suas seis décadas de existência, tenha sido impossível, até hoje, encontrar uma denominação una e consensual que a caracterize e defina sob o ponto de vista político. Não é por acaso que as designações “construção europeia” ou “projecto europeu” são as únicas que vingaram e geraram consenso na opinião pública. Precisamente pelo facto de reflectirem uma realidade não definitiva, inacabada e indefinida em inúmeros aspectos, mas de forma particularmente evidente no plano político. Também a dinâmica de negociação permanente, inerente ao projecto europeu, contribui, activa

115A este propósito Ginsberg e Smith relembram que: “Enquanto a U.E teve certamente a sua quota

de dificuldades, contratempos e fracassos no domínio da cooperação a nível da política externa envolveu-se também num processo contínuo de crescimento institucional neste domínio, cujos mecanismos institucionais produzem “outputs” regulares de política externa, e cujas decisões têm um impacto positivo sobre certos problemas globais” Ginsberg and Smith, 2007, p.1, trad. livre do autor.

116A este propósito Mark A. Pollack recorda-nos as palavras de Moravesik, quando este afirma que:

“A U.E foi concebida, e permanece, essencialmente, como uma instituição internacional limitada para coordenar a regulamentação nacional do comércio a nível de bens e serviços, e os fluxos resultantes de factores económicos. Nesse sentido, o seu âmbito substantivo e as suas prerrogativas institucionais são limitadas. A ordem constitucional da U.E não só não é reconhecida como um estado federal, como é também irreconhecível como um estado na sua plenitude.” Moravesik, 2001, pp.163-164, aqui acitado por Pollack, Wallace and Young, 2010, p.28, trad. livre do autor.

e igualmente, para que toda e qualquer definição ou caracterização política da U.E se torne rapidamente obsoleta.

Não obstante os esforços e as melhorias registadas ao longo das sucessivas revisões dos Tratados, o projecto europeu continua, também, a revelar persistentes dificuldades em combater o défice político-democrático que tem registado, sobretudo a nível da representatividade dos seus cidadãos, e da identificação destes com as diferentes instituições, e agentes europeus. Se, por um lado, o processo decisório e de formulação de políticas foi, progressivamente, transferido do plano nacional dos EM para a esfera supranacional da U.E, por outro, a responsabilidade democrática não seguiu a mesma tendência. O resultado traduz-se, hoje, numa tensão no âmago do sistema político-institucional europeu e, sobretudo, num divórcio dos cidadãos europeus com o seu projecto. Como evidencia um briefing do Centro de Estudos Europeus da Universidade da Carolina do Norte:

“Um “demos” europeu pode evoluir com o tempo, e as mudanças institucionais podem contribuir para tal, mas até agora a abordagem “intergovernamentalista” da U.E argumenta que a melhor forma de resolver o défice democrático da União é pela limitação de poderes da U.E, uma vez que a democratização a nível europeu é um exercício fútil sem um povo europeu.”117

A complexidade e a opacidade do processo decisório europeu, o reforço do papel dos membros do Conselho, do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, indirectamente eleitos ou, simplesmente não eleitos, pelos cidadãos europeus, bem como o papel meramente secundário e consultivo do PE em matérias vitais da construção europeia retratam bem o défice político-democrático na U.E. É esta realidade europeia que hoje testemunhamos e que nos evidencia uma União que permanece como um espaço onde o debate político se encontra fragmentado, sujeito às diferentes tensões nacionais, e onde a existência de uma esfera pública comum não passa de mero whisful thinking.118

117European Union center of Noth Carolina, 2006, p.4, trad. livre do autor. 118Idem, ibidem.

Encontramo-nos, deste modo, perante uma realidade europeia onde o interesse de cada uma das partes continua a prevalecer sobre o interesse do todo, contribuindo, deste modo, para reforçar a tese de que, tanto no plano interno como no plano externo, a relevância política da U.E não é mais do que insignificante. Esta tese torna-se, ainda, mais facilmente corroborável quando se compara a U.E com os demais actores internacionais, particularmente com os E.U.A ou com os BRICS. O mesmo sucede quando se analisa a acção e a posição, não raras vezes desconcertadas, da União perante acontecimentos de expressão internacional. Tomemos apenas como exemplo a interrogação suscitada pela eurodeputada Ana Gomes quando questionava: “Onde está a Europa perante as crises do Sahel à Síria, passando pela Somália, Sudões e Palestina, e da Líbia à Guiné Bissau, passando pelo Mali […]?”119 Por tudo o que referimos até agora, a resposta não se afigura, de todo, difícil. De facto a Europa não tem sido capaz de se afirmar politicamente de forma credível no plano internacional. A própria autora da questão avança com as razões para a indolência política da U.E ao afirmar que “Não é por falta de doutrina estratégica, “hardware” diplomático, económico ou militar ou de recursos humanos qualificados: é por falta de visão, ambição e vontade política da liderança europeia.”120

De toda esta análise resulta, pois, evidente uma clara necessidade de encontrar novas formas e meios capazes de congregar vontades e consensos políticos que permitam, de uma vez por todas, à U.E afirmar-se como um actor com um mínimo de relevância e credibilidade políticas na cena internacional. O grande problema da União é, e continuará a ser, a falta de vontade política dos EM, nomeadamente dos seus chefes de Estado e de governo, para modificar o status quo europeu, segundo o qual continuam a gozar de um papel privilegiado que lhes permite pôr e dispor, consoante os seus respectivos interesses nacionais. Como tal, é possível concluir que a concepção da União Europeia enquanto actor político continua a ser um exercício, essencialmente, académico e um motivo de análise externa, ao invés de se assumir como uma verdadeira inquietação para os europeus e, sobretudo, para os seus líderes políticos.

119Gomes, 2012, p.22. 120Idem, ibidem.

Encerrada a análise em torno desta concepção parece inevitável atribuir à U.E a designação de actor político não identificado, na medida em que carece, de forma substancial, de elementos que a permitam definir enquanto tal. Além do mais, aqueles elementos que, aqui ou ali, já vai conseguindo apresentar, pela sua natureza sui generis, conferem-lhe um carácter indefinido. Com efeito, o que parece não deixar margem para dúvidas é a necessidade de uma profunda reflexão e redefinição em torno do modelo e do grau de aprofundamento políticos da U.E, que deverá evoluir, definitivamente, para uma verdadeira lógica de integração, e não apenas de simples cooperação como até hoje sucede. Só desta forma a União poderá aspirar a uma alteração positiva e efectiva da sua relevância e do seu estatuto políticos, afirmando-se, de uma vez por todas, como um actor político genuíno e naturalmente reconhecido na cena internacional.