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2 PRINCÍPIOS, INTERPRETAÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.4 DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.4.10 A vinculação do poder público e dos particulares aos direitos fundamentais

55. A vinculação tanto do poder público quanto dos particulares aos direitos

fundamentais decorre de interpretação do já aludido artigo 5º, § 1º, da CF. No que concerne ao poder público, o preceito relativo à aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais impele os órgãos estatais a tomarem as medidas necessárias para o cumprimento deste comando276.

56. O Poder Legislativo, por exemplo, deve editar atos normativos tendentes a

conformar os direitos fundamentais previstos na ordem constitucional, sendo, destarte, limitada sua discricionariedade legislativa. Cabe ao Legislador, nesse contexto, a atuação negativa, no sentido de se abster de produzir normas contrárias aos direitos fundamentais, mas, igualmente, no aspecto positivo, incumbe-lhe o estabelecimento de normas conformadoras dos mencionados direitos fundamentais277.

A Administração Pública, por sua vez, também deve ter sua conduta em conformidade com os direitos fundamentais no duplo aspecto (negativo e positivo) retro citado. Com efeito, os atos administrativos editados pelo Executivo devem aplicar e interpretar as leis infraconstitucionais em consonância com os direitos fundamentais278.

Enfim, no que concerne à vinculação dos órgãos públicos aos direitos

276 Ibid., p. 366; MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. IV. Op. Cit. p. 311-327; FREIJEDO, Francisco J. Bastida et al. Teoría General de los Derechos Fundamentales en la Constitución

Española de 1978. Op. Cit. p. 179-189. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 438, referindo-se ao já citado artigo 18º, da Constituição da República

Portuguesa. Pode-se fazer menção, ainda, ao artigo 1º, da Lei Fundamental Alemã, a que foi aludida alhures, além do artigo 53º, da Constituição Espanhola: 1. Los derechos y libertades reconocidos en el Capítulo segundo del presente Título vinculan a todos los poderes públicos. Sólo por ley, que en todo caso deberá respetar su contenido esencial, podrá regularse el ejercicio de tales derechos y libertades, que se tutelarán de acuerdo con lo previsto en el artículo 161.1 a). 2. Cualquier ciudadano podrá recabar la tutela de las libertades y derechos reconocidos en el artículo 14 y la Sección 10 del Capítulo segundo ante los Tribunales ordinarios por un procedimiento basado en los principios de preferencia y sumariedad y, en su caso, a través del recurso de amparo ante el Tribunal Constitucional. Este último recurso será aplicable a la objeción de conciencia reconocida en el artículo 30. 3. El reconocimiento, el respeto y la protección de los principios reconocidos en el Capítulo tercero informarán la legislación positiva, la práctica judicial y la actuación de los poderes públicos. Sólo podrán ser alegados ante la Jurisdicción ordinaria de acuerdo con lo que dispongan las leyes que los desarrollen. ESPANHA. Constituição (1978). Disponível em: <http://www.senado.es/constitu/index.html>. Acesso em: 04 mai. 2011, 12:44:18.

277 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 440- 441; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Op. Cit. p. 367-368; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Direitos Fundamentais: tópicos de teoria geral. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Op. Cit. p. 279.

278 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 442- 446; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Op. Cit. p. 369-370; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Direitos Fundamentais: tópicos de teoria geral. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Op. Cit. p. 281-284.

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fundamentais, os tribunais hão de interpretar as normas jurídicas de forma a efetivarem, na maior medida possível, os direitos fundamentais279. Pode-se dizer, ainda, que a “vinculação da jurisdição aos direitos fundamentais” refere-se a três aspectos: verificar a conformidade de leis ou outros atos com os direitos fundamentais; a eficácia das decisões dos Tribunais Superiores em relação às demais instâncias; a delimitação de competências e a definição de atribuições das várias instâncias judiciais280.

57. No que tange à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, o que

alguns chamam de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, não obstante a inexistência de norma expressa nesse sentido, não se pode refutar que tais direitos são aplicáveis nas relações entre particulares, sobretudo quando se analisam alguns dispositivos constitucionais, como o artigo 5º, incisos IV, V e XI (direitos à livre manifestação do pensamento e à inviolabilidade do domicílio), além dos direitos dos trabalhadores (artigo 7º) 281.

No que concerne a esse aspecto, a ordem jurídica lusitana consagra a eficácia das normas pertinentes a direitos, liberdades e garantias282.

Pode-se dizer que existem duas teorias sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: “eficácia direta ou imediata” e “eficácia indireta ou mediata”.

De acordo com a primeira teoria — a teoria da eficácia directa —, os direitos, liberdades e garantias e direitos de natureza análoga aplicam-se obrigatória e directamente no comércio jurídico entre entidades privadas (individuais ou colectivas). Teriam, pois, uma eficácia absoluta, podendo os indivíduos, sem qualquer necessidade de mediação concretizadora dos poderes públicos fazer apelo aos direitos, liberdades e garantias. Para a teoria referida em segundo lugar

279 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Op. Cit. p. 372-373; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Direitos Fundamentais: tópicos de teoria geral. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Op. Cit. p. 284.

280 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 447. 281

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Op. Cit. p. 376-377. Sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, vide: DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos

Fundamentais. Op. Cit. p. 104-115. Sobre a eficácia horizontal dos direitos sociais e o princípio da

solidariedade, vide: SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Op. Cit. p. 288- 309. Vide, ainda: SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: direitos fundamentais nas relações entre particulares. Op. Cit. p. 66-106: o autor afirma que a concepção de eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas é minoritária na doutrina, fazendo uma crítica a esse posicionamento e defendendo a eficácia indireta.

282 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 1286. O autor alude ao já citado artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa. Vide, ainda: MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. IV. Op. Cit. p. 320-327.

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— a teoria da eficácia indirecta —, os direitos, liberdades e garantias teriam uma eficácia indirecta nas relações privadas, pois a sua vinculatividade exercer- se-ia prima facie sobre o legislador que seria obrigado a conformar as referidas relações obedecendo aos princípios materiais positivados nas normas de direitos, liberdades e garantias (grifos do original) 283.

E CANOTILHO arremata, defendendo que a Constituição de Portugal, no mencionado artigo 18º, diferentemente da Lei Fundamental Alemã284, consagrou a teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas285.

Ainda para o constitucionalista português a tendência atual é a da superação dessa dicotomia “eficácia direta ou imediata” e “eficácia indireta ou mediata” no sentido das denominadas soluções diferenciadas. Basicamente, entende-se que as “soluções diferenciadas” devem levar em conta a “especificidade do direito privado” em

283 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 1286-1287. Vide, ainda, acerca da influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado: CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Op. Cit. p. 22 e seq.; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 3ª. Ed. Rev. Ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010; CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los Limites de los Derechos Fundamentales en

las Relaciones Entre Particulares: La Buona Fe. Madrid: Boletín Oficial del Estado, 2000. p. 161-246;

STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004; CRORIE, Benedita Ferreira da Silva Mac. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Coimbra, Almedina, 2005. Para estudos relativos à eficácia dos direitos humanos na esfera privada nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, vide: CLAPHAM, Andrew. Human Rights in the Private Sphere. New York: Oxford University Press, 2002. Parte II. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais Sociais, “Mínimo Existencial” e Direito Privado: Breves Notas Sobre Alguns Aspectos da Possível Eficácia dos Direitos Sociais nas Relações Entre Particulares. In: SARMENTO, Daniel e GALDINO, Flávio (Orgs.).

Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Op. Cit. p. 551-602;

FREIJEDO, Francisco J. Bastida et al. Teoría General de los Derechos Fundamentales en la Constitución

Española de 1978. Op. Cit. p. 189-195.

284 ALEMANHA. Constituição (1949). Op. Cit. Artikel 1 [Menschenwürde, Grundrechtsbindung der staatlichen Gewalt]. (1) 1Die Würde des Menschen ist unantastbar. 2Sie zu achten und zu schützen ist Verflichtung aller staatlichen Gewalt. (2) Das Deutsche Volk bekennt sich darum zu unverletzlichen und unveräußerlichen Menschenrechten als Grundlage jeder menschlichen Gemeinschaft des Friedens und der Gerechtigkeit in der Welt. (3) Die nachfolgenden Grundrechte binden Gesetzgebung, vollziehende Gewalt und Rechtsprechung als unmittelbar geltendes Recht. Tradução livre: Artigo 1 [Dignidade humana, caráter obrigatório dos direitos fundamentais para o poder público]. (1) 1 A dignidade humana é intangível. 2 Todos os poderes públicos têm a obrigação de respeitá-la e de protegê-la. (2) Por conseguinte, o povo alemão reconhece que os direitos humanos são invioláveis e intangíveis enquanto base de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo. (3) Os direitos fundamentais seguintes vinculam o poder

legislativo, o executivo e o judicial enquanto direito diretamente aplicável (grifou-se). Este último

dispositivo é explícito em estabelecer a eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais em relação ao Estado, mas não em relação aos particulares.

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 1288. Vide, ainda: CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Op. Cit. p. 28-37: o autor recusa uma eficácia apenas mediata dos direitos fundamentais sobre a legislação de direito privado. Entendendo que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas é indireta, vide: HESSE, Konrad.

Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Op. Cit. p. 284-286; HESSE,

Konrad. Significado dos Direitos Fundamentais. In: ALMEIDA, Carlos dos Santos; MENDES, Gilmar Ferreira; e COELHO, Inocêncio Mártires (seleção de textos e tradução). Temas fundamentais do Direito

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contraposição ao sentido dos direitos fundamentais na ordem jurídica286.

Nesse sentido, no que tange à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, alude- se à possibilidade de a própria constituição, de forma expressa, determinar a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas287.

Ainda, a eficácia horizontal pode estar atrelada à “mediação do legislador no âmbito da ordem jurídica privada”, caso em que o órgão público (legislador) é vinculado direta e imediatamente pela norma consagradora de direito fundamental; vale dizer, o legislador deve adensá-la (a norma fundamental), não podendo restringi-la, a não ser quando for autorizado por ela própria288.

O legislador, quando da regulamentação das relações privadas, deve ter em consideração o princípio da igualdade, sendo-lhe vedado atribuir “regimes jurídicos discriminatórios”, salvo quando exista “fundamento material” para a desigualdade de tratamento289.

Nesta seara, pode-se mencionar que a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares podem seguir o seguinte caminho: a aplicação do direito privado deve seguir de acordo com uma interpretação em conformidade com a constituição, mais especificamente, com os direitos fundamentais; em todo caso, os tribunais, quando dessa interpretação, poderão considerar a lei inconstitucional por violar direitos fundamentais e não aplicá-la ao caso concreto; a norma de decisão deverá considerar os direitos fundamentais em cotejo com a situação a ser resolvida290.

Ainda nesse quadro da eficácia horizontal afiguram-se duas situações: a primeira condiz com a aplicação dos direitos fundamentais nas relações particulares naquelas situações em que há manifesta desigualdade entre as partes, porquanto uma delas é detentora de esferas de poder social (exemplo: relação de emprego); em outro sentido existem as relações particulares marcadas pela igualdade, fora, portanto, das relações de poder. No primeiro caso há consenso quanto à eficácia horizontal dos direitos

286 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 1289. 287 Ibid., p. 1290. Citam-se os seguintes artigos da CRP: Artigo 26º (Outros direitos pessoais). 2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. Artigo 34º (Inviolabilidade do domicílio e da correspondência). 1. O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis. PORTUGAL. Constituição (1976). Lei Constitucional n. 1/82, de 30 de setembro (Primeira Revisão). Op. Cit.

288 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. Cit. p. 1291. 289 Ibid., loc. cit.

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fundamentais. Já, quanto ao segundo, existe dissenso291. De qualquer forma, como este estudo insere-se no primeiro contexto, não será o caso de se expender maiores argumentos em relação à segunda situação explanada acima.