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Com açúcar, com afeto: representações femininas na escrita memorialística autobiográfica de Magdalena Antunes (1880-1959)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

GENILSON DE AZEVEDO FARIAS

COM AÇÚCAR, COM AFETO:

REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA ESCRITA MEMORIALÍSTICA AUTOBIOGRÁFICA DE MAGDALENA ANTUNES (1880-1959)

NATAL – RN 2019

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GENILSON DE AZEVEDO FARIAS

COM AÇÚCAR, COM AFETO:

REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA ESCRITA MEMORIALÍSTICA AUTOBIOGRÁFICA DE MAGDALENA ANTUNES (1880-1959)

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial à obtenção do título de doutor em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Laudelina Ferreira Gomes

NATAL – RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Farias, Genilson de Azevedo.

Com açúcar, com afeto: representações femininas na escrita memorialística autobiográfica de Magdalena Antunes (1880-1959) / Genilson de Azevedo Farias. - Natal, 2019.

292f.: il. color.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Laudelina Ferreira Gomes. 1. Magdalena Antunes (1880-1959) - Tese. 2. Rio Grande do Norte - Tese. 3. Oiteiro - Tese. 4. Escrita de si - Tese. 5. Representações femininas - Tese. I. Gomes, Ana Laudelina Ferreira. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.7-055.2(813.2)

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GENILSON DE AZEVEDO FARIAS

COM AÇÚCAR, COM AFETO:

REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA ESCRITA MEMORIALÍSTICA AUTOBIOGRÁFICA DE MAGDALENA ANTUNES (1880-1959)

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial à obtenção do título de doutor em Ciências Sociais.

Aprovado em ____ de ____ de 2019.

Banca Examinadora

________________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Laudelina Ferreira Gomes – Orientadora (PPGCS/UFRN)

________________________________________________________________ Prof. Dr. José Antônio Spinelli Lindoso – Examinador interno (PPGCS/UFRN)

________________________________________________________________ Prof. Dra. Karlla Christine Araújo Souza – Examinadora interna (PPGCS/UFRN)

________________________________________________________________ Prof. Dra. Tania Elias Magno da Silva – Examinadora externa (PPGS/UFS)

________________________________________________________________ Prof. Dra. Maria da Conceição Crisóstomo de Medeiros Gonçalves Matos Flores –

Examinadora externa

NATAL – RN 2019

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À minha mãe, Francisca das Chagas de Azevedo Farias, para sempre a mulher mais importante da minha vida e meu maior amor.

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AGRADECIMENTOS

“Relembrar! Não há prêmio maior que recordar, nem castigo pior que esquecer [...]”. (Magdalena Antunes)

Tal como é sugerido por Magdalena Antunes acima, feliz daquele que é lembrado, pois isso denota a sua importância para aquele que dele ou dela se lembra. O não ser esquecido, nesse caso, tem o mesmo peso de um prêmio, sobretudo se pensarmos nos moldes da nossa sociedade atual em que tudo, incluindo as relações humanas, se torna obsoleto e descartável num piscar de olhos. Com isso em mente, é notório que Magdalena Antunes refletia sobre tudo isso e seu esforço, a meu ver, não foi outro que fazer-se lembrada ao produzir uma escrita de si onde premia tantas pessoas queridas que saltam das páginas de seu Oiteiro para reviver nesta tese. Tendo seu exemplo como inspiração, eis que é chegada a hora de premiar as minhas pessoas queridas, as quais, de uma forma ou de outra, foram fundamentais para que esta trajetória que culmina neste trabalho fosse realizado.

À professora Ana Laudelina Ferreira Gomes, que me orienta desde o mestrado e com quem muito aprendi sobre o como pesquisar sobre a trajetória de mulheres nos oitocentos. E aqui saliento o nosso grupo de pesquisa, Mythos-Logos: ciência, imaginação e religião, e em especial a nossa linha de pesquisa, Trajetórias, narrativas e poéticas de mulheres, artistas e intelectuais, por ela coordenado, notabilizando-se pessoas inesquecíveis tais como Danielle Sousa, Mirian Flávia de Araújo, Danielle Lago. Do grupo geral destaco: Karla Daniele, Rodrigo Viana, Ozaias Batista, Isabel Cristine Carvalho, Raimundo Paulino, Marcelo Augusto e Analis Costa. Agradeço também a professora Karlla Christine Araújo Souza que, ao entrar para o nosso grupo, trouxe com ela vida e entusiasmo colaborando, através do seu olhar sensível e atento, para o aprimoramento desta tese de cuja banca também fez parte.

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, nas pessoas de seus secretários Otânio Revorêdo e Jeferson Lopes, que de forma muito prestativa me ajudaram e acolheram sanando dúvidas e esclarecendo questões ao longo de seis anos entre mestrado e doutorado. Agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelo financiamento deste trabalho ao longo de dois anos.

Ao professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, que me orientou no âmbito do estágio docente na disciplina “História, Gênero e Sexualidade”, na qual tive a oportunidade de aprender ainda mais e me apropriar de debates da área, muitos dos quais se fazem presentes

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ao longo deste trabalho. Agradeço-lhe por todas as sugestões, comentários e orientações que me deu na minha banca de pré-qualificação. Agradeço também aos professores José Antônio Spinelli Lindoso e Tânia Elias Magno da Silva, que juntos fizeram parte das minhas bancas de qualificação e de defesa dando-me sugestões valiosas, verdadeiras pedras verdes conforme Magdalena descreve em seu texto, e com as quais pude ir constelando as páginas deste trabalho doutoral. Sou grato também aos professores Maria da Conceição Crisóstomo de Medeiros Gonçalves Matos Flores e Hermano Machado Ferreira Lima por terem feito parte da minha banca de defesa trazendo novos e importantes elementos.

À professora Maria Arisnete Câmara de Morais e seu grupo de pesquisa História da Educação, Literatura e Gênero, que me acolheu durante quase dois anos e cujas discussões me ajudaram sobremaneira a pensar o meu próprio trabalho. Nesse espaço, o debate sobre questões que para mim são caras era bastante profícuo, e nele tive a oportunidade de fazer algumas amizades especiais, entre as quais saliento Valdenice Resende, Ana Paula Cavalcanti, Débia Suênia e Janaína Morais, além de estreitar outras, tais como Nanael Simão de Araújo e Francisco Anderson Tavares de Lyra Silva.

Os caminhos que percorri na feitura desta pesquisa me levaram até a Academia Norte-Riograndense de Letras, onde tive a oportunidade de conhecer e contar com os préstimos de Manoel Onofre Junior, Thiago Gonzaga e do cordelista cearamirinense Manoel Berradeiro. Ainda no âmbito desta instituição, tive a feliz “coincidência” de conhecer o acadêmico Paulo de Tarso Correia de Melo, que me concedeu, com muito entusiasmo, uma entrevista relatando-me sobre a convivência que teve com Magdalena Antunes. Ainda em Natal também pesquisei no Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, onde contei com o acolhimento incondicional de sua diretora, a senhora Daliana Cascudo Roberti Leite.

Destaco também a colaboração de Abimael Silva, que me concedeu material raro de sua biblioteca particular, além de ter me dado pistas que me fizeram chegar até o escritor acreano Antônio Stélio, estudioso da trajetória de Juvenal Antunes, irmão de Magdalena Antunes. Seu contato foi de suma importância pois, além de ter colaborado com informações adicionais sobre a família Antunes, não mediu esforços até que eu chegasse até a senhora Ignês Antunes de Lemos Santos, sobrinha de Magdalena Antunes por parte de Etelvina que, por sua vez, me concedeu uma valiosa entrevista onde discorre sobre a relação que teve com a tia.

Em Pernambuco gostaria de agradecer às irmãs da Congregação Nossa Senhora da Glória nas pessoas bastante estimadas da sua madre geral, a irmã Graça Rodrigues, e a superiora do convento em Recife, Fátima Xavier, uma vez que abriram as portas do convento

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feminino de quase 300 anos para que eu pudesse ficar hospedado durante uma semana enquanto pesquisava. Também devo bastante às irmãs da Congregação de Santa Doroteia, que se animaram desde o início com a minha pesquisa e não mediram esforços para colaborar, cedendo-me material inédito dos arquivos privados da instituição, além de orientações adicionais. Aqui saliento a atuação da diretora geral da FAFIRE – Faculdade Frassinetti do Recife, Maria das Graças Soares da Costa, e as irmãs Mércia Alves dos Santos e Gilma Souza Sales, diretoras do Colégio de São José. Em Pernambuco ainda gostaria de deixar minha gratidão à Fundação Joaquim Nabuco, onde também tive o prazer de pesquisar.

Agradeço ao Instituto de Estudos Brasileiros e a Biblioteca Florestan Fernandes, ambos da Universidade de São Paulo. No Rio de Janeiro saliento a Fundação Biblioteca Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Biblioteca do Museu Nacional e a Biblioteca da Universidade Federal Fluminense. Agradeço o cuidado e a atenção a mim dispensados no período em que pesquisei nessas instituições. Desta última gostaria de mencionar a iniciativa das professoras Sueli Gomes Costa e Rachel Soihet, que me acolheram na disciplina “Micro-história, memória e história oral: estudos de gênero em foco”, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e ministrada por elas.

A vida universitária pode por vezes se mostrar árida e por outras se mostrar florida. Em meio à primavera da vida acadêmica, tive a sorte de conhecer pessoas cujo carinho e parceria intelectual se estenderam para a vida. A Kênia Almeida agradeço o estímulo que me deu para que eu desse continuidade aos estudos e me submetesse à seleção do doutorado, e a Gilcerlândia Almeida, pela parceria acadêmica e amizade a mim dispensadas ao longo desse tempo. O meu muito obrigado a Thiago do Nascimento Torres de Paula, que discutiu comigo pontos da tese e que me apresentou tão entusiasticamente o teórico Norbert Elias, o qual se faz presente neste texto.

Ao amigo e ex-professor de ensino médio Daniel Bertrand, que me ajudou em relação ao debate sobre patrimônio histórico a partir de sua dissertação cedendo-me, inclusive, mapas antigos e atuais do vale do Ceará-Mirim. A Daiane Crystine da Luz, por ter me apresentado, a partir da entrevista que me concedeu, um importante panorama sobre o ensino da história local em Ceará-Mirim. Por fim, e não menos importante, agradeço ao meu amigo e irmão José Ricardo Marques Braga, cuja presença ultrapassa os debates teóricos e se espraiam para além. Sou grato por todas as indicações de leituras e apontamentos feitos no meu texto, mas, sobretudo, sou grato pelo companheirismo firmado ao longo desses anos.

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Agradeço ao amigo Rafael Oliveira pelas orientações de como pesquisar com fontes orais, as quais me foram bastante úteis. A Priscilla Farias, que discutiu comigo sobre a relação entre suicídio e a história do Ocidente, sobretudo em face do catolicismo, alertando-me para pontos que eu desconhecia. A Arlan Eloy que se tornou um grande parceiro em minhas pesquisas junto à Biblioteca Central Zila Mamede, disponibilizando-me livros e fontes desta instituição tão logo eu precise acessá-los. A Gabriela de Siqueira, que colaborou comigo disponibilizando informações e direcionando fontes sobre a intelectualidade potiguar do século XX. A Avohanne de Araújo, que me direcionou na pesquisa junto ao site da Fundação Biblioteca Nacional, onde encontrei material inédito e indispensável sobre a história de Magdalena Antunes. A Andry Freitas, que me socorreu com calma e atenção nas diversas vezes em que o meu computador deu problema. A Samara Tayana e Antônio Lázaro Barbosa Júnior que fizeram as correções finais deste trabalho bem como a Ana Cecília Nóbrega que fez o desenho da capa.

Fora dos muros da universidade, rememoro aqui algumas pessoas que me são bastante especiais e que foram verdadeiras companheiras, cedendo-me suas forças quando, por vezes, as minhas vacilaram. Através de atitudes, gestos e palavras fizeram a diferença na minha caminhada fortemente marcada pelo falecimento de minha mãe em fevereiro de 2017. Nesse sentido, agradeço a todas as mulheres da minha vida e em especial às minhas duas “avós”, Francisca Francinete de Azevedo Mulatinho e Raimunda Barbosa Alves, exemplos de força e coragem que ao longo da vida lutaram e lutam em prol de suas famílias. Que privilegiado sou por tê-las junto a mim.

Também não poderia deixar de salientar a importância dos meus primos e primas; cada um, a seu modo, se torna especial exatamente naquilo que os particulariza. Todavia, é com afeto, gratidão e amor que destaco a presença das irmãs de coração Roseane, Rosimá, Rivânia, Maria Rosângela e Rivaneide Alves, que lutaram ao meu lado com toda garra de que são detentoras no momento mais difícil de toda a minha existência. Ouso dizer que nunca me abandonaram, fazendo-se sempre presentes em minha vida. Dedico também um abraço apertado para Maria Rita e Maria Clara, por todos os momentos de carinho e cumplicidade. Agradeço a Danilo de Farias Silva que prontamente se dispôs a ir comigo a Ceará-Mirim percorrendo o Vale dos Engenhos e se envolvendo com atenção na minha pesquisa de campo.

A José Paulo de Araújo Sobrinho, Emanuel Augusto Alves e Larissa Caroline Silva, agradeço o companheirismo firmado já há bastante tempo e que se tornou mais frequente nos últimos anos, ao ponto de firmarmos uma verdadeira irmandade. Agradeço também a Maria Margarene de Lima, minha amiga desde a infância, que colaborou sobremaneira com este

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trabalho, abrindo portas para mim em Recife e me cedendo informações importantes ligadas ao universo do catolicismo, dadas as suas vivências em diferentes grupos da Igreja, bem como no seio da Congregação Nossa Senhora da Glória, por ter atuado durante muito tempo na Congregação Nossa Senhora da Glória, enquanto uma irmã juniorista de votos simples.

Paralelo à vida acadêmica, outra paixão exerce bastante força sobre a minha personalidade, e essa paixão é o mundo junino. Agradeço a todos os que fizeram e fazem parte da Junina Juventude, onde dancei durante anos; ao grupo Dança Nordeste, do qual atualmente faço parte; ao grupo Noivos Juninos do Brasil, os meus irmãos de branco; e muito especialmente agradeço a Hálison Santana, Sammy Passos, Marcos Sousa, Pedro Severiano e Bruno Farias. A vocês, que se tornaram presentes em minha vida, ensinando-me que para além da vida acadêmica e do mundo junino pode sim existir amizade, cumplicidade e acima de tudo companheirismo, mesmo estando a quilômetros de distância física.

A todos que fazem parte da Escola Estadual As Marias, espaço este onde atuo como docente, e em especial quero deixar registrado meu carinho e admiração aos seus diretores Ilden Rocha e Antônio Felix, homens atuantes e comprometidos com o que fazem e que sempre me deram apoio em todos os momentos, inclusive quando por vezes precisei me ausentar para cumprir alguma exigência da vida acadêmica. Sou grato por todo o respaldo a mim destinado.

E por último agradeço aos meus pais, notadamente à minha mãe, que não se faz mais presente neste plano, mas cuja trajetória de vida e exemplo de doação ao próximo foram as principais tintas que utilizei para escrever cada letra e cada palavra contida nesta tese. Foi o seu apoio e doação aos meus sonhos as principais engrenagens que me fizeram chegar até aqui e, muito embora fisicamente não esteja mais presente, em espírito e em lembrança sinto que está a povoar a minha memória e a de muitas outras pessoas. A sua glória é o fato de nunca ser esquecida, o que também a faz eterna, prêmio do qual nos fala brilhantemente Magdalena Antunes em seu texto memorialístico autobiográfico.

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“Nada morre dentro de nós. O pensamento registra o passado. Só deixamos de existir quando na terra não há mais quem nos recorde”.

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RESUMO

Na passagem do século XIX para o século XX, a região que progressivamente passou a ser denominada de Nordeste começou a perder visibilidade econômica e política no contexto geral do Brasil. Se, de um lado, o Nordeste entrava em declínio por causa da baixa produtividade do açúcar, simultaneamente o Sudeste ascendia em decorrência da industrialização. Visando sanar tais problemas, foram introduzidas as usinas, no sentido de modernizar a produção que tradicionalmente era realizada através dos engenhos, os quais, com seus métodos rudimentares, já não atendiam às expectativas do mercado internacional. Essas transformações foram sentidas, reclamadas e problematizadas por vários intelectuais da época que, ligados a esse passado dos engenhos no Nordeste, reclamavam que a inserção das usinas nesse cenário estava agindo de forma a engolir territórios, modificando antigas relações sociais, destruindo inclusive formas de vidas há décadas consolidadas. O sentimento de finitude desse passado ligado ao mundo da aristocracia canavieira ecoou nas escritas de intelectuais tais como José Lins do Rêgo, Gilberto Freyre, Mario Sette e Julio Bello, cujas obras, sobretudo romances e memórias, foram tecidas sob o olhar saudosista de quem queria eternizar através da escrita seus valores e tradições. Atrelada a esse movimento, eis que se destaca a escritora norte-rio-grandense Magdalena Antunes (1880-1959), que, tendo sido filha de senhores de engenho do vale do Ceará-Mirim (RN), já na condição de dona das propriedades que herdou da família, viu seu passado entrar em decadência com a progressiva queda da produção açucareira e a inserção das usinas. Além de ter participado da vida cultural de seu estado através da colaboração com a imprensa, Magdalena Antunes também fez parte do grupo intelectual de Câmara Cascudo e Nilo Pereira, produzindo e publicando sob seus auspícios Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça em 1958, obra esta de teor memorialístico e autobiográfico, onde todo o sentimento saudosista dos intelectuais acima referenciados também se faz presente, entremeando o relato que ela fez de sua infância, salvando igualmente do esquecimento espaços, pessoas e momentos que lhe eram caros, algo que é característico da escrita de si enquanto narrativas que dão vazão ao eu. O presente trabalho tem por objetivo central observar algumas representações femininas que foram construídas e se manifestaram a partir da trajetória de vida e da escrita que Magdalena Antunes fez de si em seu Oiteiro. Visitando o passado dos engenhos em Ceará-Mirim através de sua obra, além de tantos outros personagens que fazem parte desse cenário patriarcal, aristocrático e escravista, despertou-me a atenção figuras de mulheres, entre elas professoras, escravas, freiras e colegiais, todas oitocentistas, e que fizeram parte da vida da escritora em sua infância e que,

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conforme ela mesma deixou claro, mereceram ser eternizadas nas narrativas que fez da sua própria história. Assim, pergunto: o que essas representações são capazes de mostrar em relação ao espírito de uma época e em relação à condição feminina nesse contexto? A partir de uma perspectiva qualitativa, tomo a escrita desenvolvida por Magdalena Antunes como fonte central, mas, seja para tratar da sua trajetória ou para dar realce às representações de mulheres por ela desenhadas, optei por fazer o confronto do Oiteiro com outras fontes tais como cartas, fotografias, entrevistas e obras literárias de traço memorialístico e autobiográfico, sobretudo de autoras e autores brasileiros. A partir da escrita desenvolvida por Magdalena Antunes, apresento um panorama da situação feminina no Nordeste brasileiro do século XIX fazendo a problematização do contexto socio-histórico e cultural da época.

Palavras-chave: Magdalena Antunes (1880-1959). Rio Grande do Norte. Oiteiro. Escrita de

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ABSTRACT

In the passage from the nineteenth century to the twentieth century, the region that progressively became known as the Northeast, began to lose economic and political visibility in the general context of Brazil. On the one hand, the Northeast was declining because of the low productivity of sugar, while the Southeast was due to industrialization. In order to remedy such problems, mills were introduced in order to modernize the production that was traditionally carried out through mills, which with their rudimentary methods no longer met the expectations of the international market. These transformations were felt, challenged and problematized by several intellectuals of the time who, in connection with this past of the engenhos in the Northeast, complained that the insertion of the mills in this scenario was acting in order to swallow territories, modifying old social relations, destroying even forms of lives for decades.The sense of finitude of this past linked to the world of the sugar cane aristocracy echoed in the writings of intellectuals such as Jose Lins do Rêgo, Gilberto Freyre, Mario Sette and Julio Bello whose works, especially novels and memories, were woven under the nostalgic look of those who wanted to perpetuate through writing their values and traditions.Linked to this movement, here stands out the North American writer Magdalena Antunes (1880-1959) who, having been the daughter of planters in the valley of Ceará-Mirim-RN, already in the position of owner of the properties she inherited from her family, saw its past fall into decay with the progressive fall of sugar production and insertion of the mills.In addition to having participated in the cultural life of her state through her collaboration with the press, Magdalena was also part of the intellectual group of CâmaraCascudo and Nilo Pereira, producing and publishing under her auspices Oiteiro: Memories of a Sinhá-Moça in 1958. This work has a memorialistic and autobiographical content where all the nostalgic sentiment of the above referenced intellectuals is also present, interspersing the account she made of her childhood, also saving from oblivion spaces, people and moments that were dear to her, something that is characteristic of writing itself as narratives that give vent to the self.The main objective of the present work is to observe some feminine representations that were constructed and were manifested from the life trajectory and writing that Magdalena made of herself in her Oiteiro.Visiting the past of the mills in Ceará-Mirim through his work, in addition to many other characters that are part of this patriarchal, aristocratic and slave-like scenario, I was attracted to the attention of women, including teachers, slaves, nuns and schoolgirls, all of them eighteenth-century writers who were part of the writer's life in her childhood and who, as she herself made clear, deserved to be eternalized in the narratives she

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made of her own history.So I ask: what are these representations capable of showing in relation to the spirit of an age and the female condition in this context? From a qualitative perspective, I take the writing developed by Magdalena as a central source, but, either to deal with her trajectory or to highlight the representations of women she designed, I chose to make the confrontation of the Oiteiro with other sources such as letters, photographs, interviews and literary works of autobiographical and memorialistic trait, mainly of Brazilian authors and authors.From the writing developed by Magdalena, I present an overview of the female situation in the Brazilian Northeast of the nineteenth century, making problematic the sociohistorical and cultural context of the time.

Keywords: Magdalena Antunes (1880-1959). Rio Grande do Norte. Oiteiro. Writing itself.

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RESUMEN

Enelpasodelsiglo XIX al siglo XX, laregión que progresivamentepasó a ser denominada Nordeste, empezó a perder visibilidad económica y política enel contexto general de Brasil. Si por un lado, el Nordeste entrabaen declive debido a la baja productividaddelazúcar, simultáneamente, el Sudeste ascendía como consecuencia de laindustrialización. Conelfin de sanar tales problemas se introdujeronlas usinas para modernizar laproducción que tradicionalmente se realizaba a través de losingenios, loscualescon sus métodos rudimentariosya no atendíanlas expectativas del mercado internacional. Estas transformacionesfueron sentidas, reclamadas y problematizadas por variosintelectuales de la época que, ligados a esepasado de losingeniosenel Nordeste, reclamaban que lainserción de las usinas eneseescenarioestabaactuando de forma a tragar territorios, modificando antiguas relaciones sociales, destruyendo incluso formas de vidas desde hace décadas consolidadas.El sentimiento de finitud de esepasadoligado al mundo de la aristocracia caña de azúcarresonóenlas escrituras de intelectuales tales como José Lins do Rêgo, Gilberto Freyre, Mario Sette y JulioBellocuyas obras, sobre todo romances y memorias, fuerontejidas bajo la mirada saludita de quienquería eternizar a través de la escritura de sus valores y tradiciones. Junto a esemovimiento, se destacóla escritora norte-riograndense Magdalena Antunes (1880-1959) hija de señores de ingeniodelvalle de Ceará-Mirim-RN, yaenlacondición de dueña de laspropiedades que heredó de lafamilia, viosupasado entrar endecadenciaconlaprogresiva caída de laproducciónazucarera e inserción de las usinas. Además de haber participado enla vida cultural de su estado a través de lacolaboraciónconla prensa, Magdalena tambiénformó parte del grupo intelectual de Cámara Cascudo y Nilo Pereira, produciendo y publicando bajo sus auspícios Oiteiro: memorias de una sinhá-muchacha en 1958. Obra esta de contenido memorialístico y autobiográfico donde todo elsentimiento saudoso de losintelectuales arriba referenciados también se hace presente, entremezclandoel relato que ellahizo de suinfancia, salvando igualmente del olvido espacios, personas y momentos que leeran caros,algo que es característico de la escritura de sí como narrativas que danflujo al yo. El presente trabajotiene por objetivo central observar algunasrepresentacionesfemeninas que fueronconstruidas y se manifestaron a partir de latrayectoria de vida y de la escritura que Magdalena hizo de síensuOitero. Visitando elpasado de losingeniosen Ceará-Mirim a través de su obra, además de tantos otrospersonajes que forman parte de eseescenario patriarcal, aristocrático y esclavista, me despertólaatención figuras de mujeres, entre ellas, profesoras, esclavas, monjas y colegiales, todas lasochocientas, y que formaron parte de la vida de la escritora ensuinfancia

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y que, como ellamismadejó claro, merecen ser eternizadas enlasnarraciones que hizo de supropia historia. Así, pregunto: ¿quéeslo que estas representacionessoncapaces de mostrar enrelación al espíritu de una época y enrelación a lacondiciónfemeninaenese contexto? A partir de una perspectiva cualitativa tomo la escritura desarrollada por Magdalena como fuente central,pero, para tratar de sutrayectoria o para dar realce a lasrepresentaciones de mujeres por elladibujadas, opté por hacer la confrontación del Oiteiro conotrasfuentes tales como cartas, fotografías, entrevistas y obras literarias de rasgo memorialístico y autobiográfico, sobre todo de autoras y autores brasileños. A partir de la escritura desarrollada por Magdalena, presento un panorama de lasituaciónfemeninaenel Nordeste brasileñodelsiglo XIX haciendolaproblematizacióndel contexto socio-histórico y cultural de la época.

Palabras-clave: Magdalena Antunes (1880-1959). Río Grande del Norte. Oiteiro. Escritura

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Medalha de Santa Paula Frassinetti ... 22

FIGURA 2 - Magdalena Antunes na década de 1940, aos 60 anos ... 38

FIGURA 3 - Imagem de satélite com a distribuição espacial dos engenhos do vale do Ceará-Mirim ... 42

FIGURA 4 - Imagem de satélite com a localização das ruinas do engenho Oiteiro ... 45

FIGURA 5 - Árvore genealógica da família Antunes Oliveira ... 46

FIGURA 6 - Etelvina Antunes ... 49

FIGURA 7 - Jornal manuscrito O Sonho... 52

FIGURA 8 - Texto escrito por Magdalena Antunes na coluna Cartas Litorâneas ... 66

FIGURA 9 - Magdalena Antunes e Olympio Varella Pereira ... 71

FIGURA 10 - Árvore genealógica da família após o casamento da escritora ... 74

FIGURA 11 - Magdalena Antunes e Olympio Varella Pereira com os cinco filhos... 76

FIGURA 12 - Juvenal Antunes, irmão de Magdalena Antunes ... 85

FIGURA 13 - Magdalena Antunes em 1955 ... 98

FIGURA 14 – Magdalena Antunes e Lúcia Helena Pereira em 1955 ... 105

FIGURA 15 - Edição do Oiteiro (1958) ... 116

FIGURA 16: Galeria de amigos intelectuais ... 117

FIGURA 17: Edição do Oiteiro (2003)...120

FIGURA 18 - vista da janela lateral do sobrado da família Antunes ... 129

FIGURA 19 - Sobrado dos Antunes visto pelos fundos ... 132

FIGURA 20 - Ruínas da casa-grande atualmente ... 134

FIGURA 21 - Ruínas do engenho Oiteiro atualmente ... 134

FIGURA 22 - Ruínas da casa-grande do engenho Guaporé atualmente ... 136

FIGURA 23 – Mãe-preta contando histórias ... 161

FIGURA 24 - Estatutos do Colégio de São José (capa) ... 194

FIGURA 25 – Prédio do Colégio de São José em Recife ... 200

FIGURA 26 – Pátio interno do Colégio de São José no bairro da Soledade (Recife) ... 201

FIGURA 27 - Madre Paula Frassinetti na maturidade (1809-1882) ... 206

FIGURA 28 - Livro de matrículas do Colégio de São José (1866 - 1919) ... 212

FIGURA 29 - Cartão postal (1905) ... 216

FIGURA 30 - Amélia Portugal ... 220

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FIGURA 32 – Parlatório do Colégio Sagrado Família ... 223

FIGURA 33 – Refeitório do Colégio Sagrada Família ... 226

FIGURA 34 – Recreio no Colégio Sagrada Família ... 228

FIGURA 35 – Piano do Colégio de São José no Convento da Soledade ... 234

FIGURA 36 - Estátua de São José no pátio central do convento da Soledade... 243

FIGURA 37 - Menina de família patriarcal em dia de primeira comunhão ... 246

FIGURA 38 - Medalha da Pia União das Filhas de Maria ... 252

FIGURA 39 – Nome de Magdalena no livro de Atas da Pia União das Filhas de Maria ... 255

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...22

2 MAGDALENA ANTUNES (1880-1959): CONHECENDO A ESCRITORA ... ...38

2.1 A Província do Rio Grande do Norte e Ceará-Mirim nos Oitocentos: o primeiro cenário ... 40

2.2 Uma trajetória de vida ligada à imprensa ... 45

2.3 O casamento, os filhos e a escrita pública ... 67

2.4 Cartas de Juvenal a Magdalena: o afeto codificado em escritas ... 83

3 O CREPÚSCULO DE UMA VIDA E A AURORA DE UMA OBRA ... 96

3.1 Os anos de maturidade ... 99

3.2 Um novo projeto: uma escrita de si ... 109

3.3 Oiteiro: as memórias de uma sinhá-moça ... 122

3.4 Do passado em ruínas à tessitura de uma eternidade através da literatura ... 131

4 MULHERES DE CEARÁ-MIRIM: DA CASA-GRANDE AO INTERNATO CATÓLICO ... 145

4.1 A mãe: do analfabetismo à subversão ... 146

4.2 Patica: a mãe-preta e o lugar da afetividade ... 158

4.3 Tonha: a companheira nas brincadeiras da infância e o lugar da projeção ... 166

4.4 Saindo da casa-grande para o espaço público: a professora Dona Maria Alves .. 170

4.4.1 As Escolas Normais e a feminização do magistério ... 180

4.5 Dona Yayá, Dona Carlotinha, tia Melânia, Leopoldina e Helena: modelos de educação e bons modos ... 192

5 PARA ALÉM DA ORAÇÃO: MULHERES DO COLÉGIO DE SÃO JOSÉ ... 200

5.1 O Colégio de São José: a Congregação das Irmãs de Santa Doroteia em Recife .. 203

5.2 As freiras do Colégio de São José ... 218

5.2.1 Madre Portugal: a grande mãe ... 219

5.2.2 Madre Barisione: uma cultura afrancesada ... 231

5.2.3 Madre Barreto: as noções de civilidade e as práticas devocionais ... 235

5.3 A primeira comunhão: um rito de passagem para a vida adulta ... 245

5.4 As amigas do Colégio ... 247

5.4.1 Tequinha: a Pia União das Filhas de Maria ... 249

5.4.2 A Cearense: “a mentalidade mais destacada do Colégio” ... 257

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REFERÊNCIAS ... 273 ANEXO A – Conto de Diniz e Rosina ... 288

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1 INTRODUÇÃO

Sua autobiografia, portanto, pode ser lida como uma escrita da saudade, como um exercício de desnudamento do coração, como a necessidade de expressar uma memória de sentimentos e ressentimentos diante da vida. Trata-se de uma escrita afetiva (CARDOSO, 2009, p. 300; grifos meus).

FIGURA 1 – Medalha de Santa Paula Frassinetti

FONTE: Arquivo pessoal do autor, 2016.

Quando decidi escrever um projeto de doutorado, tendo como objeto de estudo a escritora cearamirinense Magdalena Antunes (1880-1959) e sua memorialística e submetê-lo à seleção do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, jamais imaginaria aonde os caminhos da pesquisa iam me levar. Ao me debruçar sobre tantas fontes que foram por mim encontradas ao longo desses anos em que desenvolvi o presente trabalho, e mais precisamente sobre o livro Oiteiro: memórias de uma sinhá moça (ANTUNES, 2003), tal exercício me fez reportar à minha própria infância, momento em que eu ouvia muitas histórias que minha mãe contava dos seus tempos de

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escola, sobretudo quando esta fora aluna no Colégio Paula Frassinetti em Natal, no início da década de 1980.

Hoje lamentavelmente falecida, minha mãe não teve a oportunidade de fazer comigo essa reflexão sobre o seu passado enquanto aluna da instituição, mas me recordo que ela me falava com bastante saudade de suas vivências tidas nessa escola. Rememoro ela falando que o Colégio Paula Frassinetti era uma ala filantrópica do Colégio Imaculada Conceição que, em parceria com o Governo do Estado, oferecia o curso ginasial (o atual ensino médio) para moças pobres por um valor bem abaixo do pago pelas alunas do Colégio Imaculada Conceição1.

Pelos fios da memória, lembro minha mãe falando das suas amigas, da ansiedade na véspera das provas e de quão complicado era conseguir acompanhar as aulas noturnas, devido ao cansaço após o dia de trabalho e cuidado com os sobrinhos pequenos. Recordo-me também dela me falando de quão se sentia diminuída ao perceber o olhar das alunas “ricas” do turno diurno (matutino e vespertino) quando estas iam ao colégio à noite para as aulas de educação física, mas sobretudo me lembro muito especificamente dela falando sobre a severa e ao mesmo tempo amável Madre Cunha, freira que dirigia a escola naqueles idos e que, após regressar de uma viagem a Roma, trouxera para cada aluna do Colégio Paula Frassinetti uma pequena medalha dourada tendo ao centro uma freira de hábito negro e circundada por pequenas estrelas2.

Confesso que na minha infância eu não sabia apreciar a importância daquelas narrativas trazidas por minha mãe, muito menos fazia ideia do papel social desempenhado por uma freira e de uma congregação religiosa dentro de uma sociedade. Mas sabia que o sonho de juventude de minha mãe foi ser freira, tal como Paula Frassinetti e Madre Cunha, sonho este nutrido desde a sua infância, quando ela teve convívio direto com Monsenhor Expedito em São Paulo do Potengi3. No entanto, o destino a levou para o casamento com meu pai em 1984.

1

Ambas as instituições encerraram suas atividades na cidade do Natal em 2012 restando apenas o prédio na Avenida Deodoro da Fonseca, bairro Cidade Alta, que hoje pertence ao grupo FACEX. Esta instituição oferta ensino básico e superior e como forma de homenagear a escola centenária optou por manter a estrutura original do prédio intacta e funcionando sob a denominação de Campus Imaculada Conceição.

2

Em meio ao arquivo pessoal deixado por minha mãe encontrei entre fotos, cartas e cartões de natal, algumas carteiras de estudante suas da época da escola. Uma delas, datada de 1981, apresenta o timbre do Colégio Paula Frassinetti e a assinatura a próprio punho de sua diretora: Irmã Cunha.

3

Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros (1916-2000) foi um sacerdote católico ligado à Arquidiocese de Natal e que atuou ao longo de 56 anos em São Paulo do Potengi, cidade esta do interior potiguar. Ficou conhecido devido os seus esforços em prol da democratização dos recursos hídricos entre as populações sertanejas fato este que o popularizou como “Monsenhor das águas” ou “Profeta das águas” (AZEVEDO, 2000).

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A freira que aparece em primeiro plano na medalha da imagem é a italiana Santa Paula Frassinetti, fundadora da Ordem Religiosa de Santa Doroteia, a mesma congregação a que pertencia o Colégio Imaculada Conceição, o Colégio Paula Frassinetti, onde minha mãe estudou nos anos oitenta do século passado, e o Colégio de São José em Recife, onde Magdalena Antunes estudou no final do século XIX. A medalha que menciono é a que se encontra fotografada na página que abre esta tese e que, pelo cruzamento de informações, veio de Roma para as mãos de minha mãe na época em que a santa freira foi canonizada pelo Papa João Paulo II a 11 de março de 1984 (PASSARELLI, 2012).

Outra lembrança bastante forte que me veio à mente foi a melodia do hino do Colégio Paula Frassinetti, que minha mãe cantava e de cuja letra não me recordo por inteiro, só da seguinte passagem: “[...] Flor da Itália que a mão dadivosa, do senhor sustentou sobre o hostil, enviaste, ó mãe carinhosa, vosso odor e perfume ao Brasil [...]”. Desse momento restou a lembrança de uma estrofe do hino e, na palma da minha mão, a medalha que faz alusão à fundadora da instituição, e que hoje me fazem refletir sobre o meu próprio passado articulando-o com minha pesquisa doutoral. Hoje posso dizer que, devido ao fato da minha mãe ter sido muito católica e aluna da instituição, tive a oportunidade de receber uma educação religiosa com influências da Congregação das Doroteias. Posso dizer também que antes mesmo de intencionar cursar uma pós-graduação, meu destino já estava ligado ao objeto de pesquisa a que hoje me dedico, haja vista que desde minha infância as mulheres sempre foram meu foco de admiração.

Meu olhar sobre elas partia da observação que eu fazia a minha mãe, avós, tias, primas e amigas e se estendia para os filmes que eu assistia e para os livros que eu lia. O protagonismo feminino sempre foi minha grande paixão4. Eu ficava fascinado em observar como as mesmas mulheres que figuravam enquanto encarnação de docilidade e afetividade eram, por vezes, tão enérgicas e determinadas em suas ações. Foram diversos os perfis de mulheres que durante toda a minha vida estiveram a povoar meu cotidiano e imaginário, servindo-me de inspiração.

4 Lembro-me que entre a minha infância e adolescência tive a oportunidade de ler o livro O jardim secreto de Frances Hodgson Burnett (1993), cuja protagonista da narrativa é a menina Mary Lennox. O cerne da obra é fazer uma crítica, mesmo que velada, ao imperialismo britânico e a sua influência sobre a economia e, sobretudo, sobre a cultura indiana nos idos do século XIX. Posteriormente esse texto foi adaptado para o cinema. Outro livro que também fez parte da minha adolescência foi Mulherzinhas (ALCOTT, 2005) da escritora estadunidense Louise May Alcott (1832-1888), que tomando como cenário a Guerra Civil norte-americana traz para o centro do enredo quatro irmãs com características bem diferenciadas uma das outras. São elas: Meg (17 anos), Jo (16 anos), Beth (14 anos) e Amy (13 anos). Anos depois Mulherzinhas também foi adaptado para o cinema sob o título Adoráveis mulheres.

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A ideia de fazer esta pesquisa surgiu logo após a defesa da minha dissertação de mestrado desenvolvida sobre a poeta Auta de Souza (1876-1901)5. Após a minha defesa, fiquei sem saber o que pesquisar e, ao mesmo tempo, sentia que meu compromisso em discutir a questão da afrodescendência de Auta de Souza já havia sido finalizado. Ao longo do processo de escrita da dissertação, o desejo de continuar pesquisando sobre mulheres escritoras do Rio Grande do Norte foi sendo fortalecido, sobretudo pelo contato que tive com leituras e documentos que se remetiam à produção intelectual de algumas dessas mulheres do final do século XIX e início do século XX.

A única coisa certa nesse momento é que eu queria continuar pesquisando sobre mulheres e sua relação com a sociedade e com a cultura. Nesse ínterim, uma amiga e também professora, Evaneide Maria de Melo, me fala sobre o livro Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça, apresentando-o de forma sucinta, o que me causou bastante interesse. Comecei então uma busca pela obra indicada em algumas bibliotecas, em sebos e sites especializados e não a encontrava em lugar algum, até porque ela só teve duas edições: a de 1958 e a de 2003.

A minha busca encerrou-se no dia 12 de setembro de 2013, data do 137º. aniversário da poeta Auta de Souza, com quem a minha relação sentimental já existia6. O livro de Magdalena Antunes me veio às mãos em uma das salas de pesquisa do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e, ao abrir o velho livro de páginas amareladas, eis que vou passando os olhos sobre as linhas da página 56, na qual a memorialista aparece narrando sua viagem para o colégio em Recife a bordo do navio Una, que fazia a navegação costeira de passageiros e cargas entre os portos da “Parahyba, Natal, Macaó, Mossoró, Aracaty e Ceará” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Recife, 14 de jun. 1893).

A bordo do navio Una ocorre um encontro interessante:

Passamos quase dois dias em Cabedelo. A bordo minha mãe fez amizade com uma simpática senhora, a dona Silvina, de trato agradável e bem educada. Tenho vaga recordação de seu físico que hoje se me afigura pequenino e esguio. Guardo, porém, nítido o sentimento de uma bondade que jamais se apagou de minha imaginação. Insensivelmente aproximava-me dela que me recordava a tia Melânia. O respeito à

5

A referida dissertação foi intitulada Auta de Souza, a poeta de “pele clara, um moreno doce”: memória e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte (FARIAS, 2013). Essa contou com a orientação da professora Ana Laudelina Ferreira Gomes do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN. Aos interessados nos estudos sobre esta escritora, sobretudo no que tange às relações de gênero e etnicidade em que sua trajetória de vida esteve atrelada, indico a leitura dessaobra que foi publicada em livro em formato digital no ano de 2018 com o nome Auta Negra: uma voz feminina no Rio Grande do Norte oitocentista. 6 Esse vínculo se fortaleceu ainda mais na iniciação científica em 2010 quando, orientado pela professora Ana Laudelina Ferreira Gomes, trabalhei em um projeto que tratava da trajetória de Auta de Souza a partir da pesquisa em uma documentação inédita referente à empresa Paula Eloy & CIA, empresa esta de sua família. Esse material faz parte do Instituto Tavares de Lyra, coordenado pelo historiador Francisco Anderson Tavares de Lyra Silva.

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velhice e admiração pelas pessoas modestas e boas se iniciavam para fazer parte da minha natureza. Em conversa com minha mãe a dona Silvina contou-lhe algo de sua vida. Morreu-lhe a única filha deixando cinco crianças entre as quais uma menina. Ela fora encarregada de guiá-las pelo resto da vida. Os meninos estudavam em Recife e a menina no Colégio da Estância, onde era conhecida pelo nome de “lírio do colégio”, tal sua angelical conduta e aplicação aos estudos. Eu escutava aquela história pesarosa por não conhecer a “menina lírio”. Mais tarde, no camarote, pedi a minha mãe que me pusesse no Colégio da Estância em vez de no outro. Queria ser um lírio também, Ela, porém, respondeu-me – Não! O teu colégio é o São José, o colégio da dona Yayá. Estava escrito: Lírio – Auta de Souza. Eu seria apenas a haste espinhosa de planta rasteira. (ANTUNES, 2003, p. 56-57).

A distinta senhora de nome Silvina com quem Magdalena se encontrou a bordo do navio Una era a avó de Auta de Souza, aquela que se tornaria a escritora mais aclamada do Rio Grande do Norte e cuja trajetória havia sido problematizada em forma de dissertação por mim anos antes. A partir dessa leitura, que trazia um trecho da história de Auta de Souza se entrelaçando com a história de Magdalena Antunes, se tornava claro que esse deveria ser o objeto de estudo de minha pesquisa doutoral. Fazendo uma comparação entre elas, observo que muitas escritoras do passado ainda permanecem silenciadas, uma vez que, enquanto a primeira alcançou (re)conhecimento para além do Brasil, a segunda ainda não é tão conhecida, inclusive em Ceará-Mirim, sua terra natal.

Dentro desse processo, saliento que a trajetória, a memória e também a obra de muitas mulheres intelectuais do passado precisam ser retiradas do ostracismo em que ainda se encontram7. Outras autoras, entre as quais destaco Etelvina Antunes, irmã caçula de Magdalena Antunes, também merecem ser pesquisadas e terem suas obras problematizadas a partir de diferentes perspectivas, haja vista a infinidade de possibilidades que um mesmo objeto pode suscitar, dependendo das questões que o pesquisador compreende como importantes. A obra literária e jornalística de Magdalena Antunes é um desses casos que precisam ser vislumbrados a partir de outras lentes. Ao voltar o meu olhar para essa escritora, observei que existem poucos trabalhos ao nível acadêmico que se debruçaram sobre sua vida e obra.

O primeiro é uma monografia defendida no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, intitulado Oiteiro: o lugar nas memórias de uma sinhá-moça de Suzete Câmara da Silva na área da Geografia (SILVA, 2013). O segundo é uma dissertação defendida no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, na área de

7 Vale ressaltar que os caminhos para tais pesquisas já foram abertos no Brasil, conforme é visível nas coletâneas História das mulheres no Brasil, organizada por Mary del Priore (2010) e Nova história das mulheres no Brasil, organizada por Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro (2013). Além de escritoras, nessas coletâneas são apresentadas e discutidas as trajetórias de jornalistas, “loucas”, operárias, escravas urbanas, mulheres negras, indígenas, professoras, freiras, lésbicas, militares etc.

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concentração Literatura Comparada, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, intitulada A construção autobiográfica e memorialística em Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça, de autoria de Gercleide Gomes da Silva Ferreira Nascimento (NASCIMENTO, 2015). Além desses trabalhos, encontrei resenhas em páginas eletrônicas de memorialistas, sobretudo de Ceará-Mirim, além de textos publicados em antologias literárias entre elas a de Conceição Flores (2014) e a de Constância Duarte e Diva Macêdo (2013).

Magdalena Antunes foi uma escritora norte-rio-grandense, filha de senhores de engenho da região do vale do Ceará-Mirim - RN e que viveu na transição do século XIX para o século XX. Nasceu em 25 de maio de 1880 no engenho Oiteiro, de propriedade de seu pai. A menina passou sua infância nesse espaço com seus pais e irmãos menores. Aos onze anos foi levada, a contragosto, para a cidade do Recife, onde teve a oportunidade de aprofundar os estudos no Colégio de São José, escola católica destinada ao ensino de meninas da elite, onde permaneceu de 1891 a 1896.

Ao regressar, após ter concluído os estudos, Magdalena casou-se com Olímpio Varella Pereira, com quem teve cinco filhos. Paralelo às funções de esposa, mãe e dona de casa, Magdalena dedicou-se à leitura, à escrita e à publicação em periódicos, participando da imprensa local e fazendo parte de grupos de discussões intelectuais em sua casa em Ceará-Mirim e posteriormente em Natal. Concomitante a essas atividades, por volta de 1920, com aproximadamente 40 anos de idade, Magdalena Antunes começou a se dedicar à escrita de um texto de teor memorialístico autobiográfico. Todavia, mesmo tendo encerrado sua escrita em 1947, ela esperaria mais onze anos para tornar seu texto público, o que só veio a acontecer em 1958, um ano antes de sua morte. O livro foi, portanto, escrito entre as décadas de 1920 e 1940, e publicado na década de 1950.

Acredito que o livro Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça está inserido dentro de um projeto de construção e eternização de uma memória e de uma história oficial para a região Nordeste do Brasil. Conforme afirmou Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2011), essa região passou a ser gestada através das artes, da literatura e dos discursos produzidos por uma elite intelectual que perdia poder e visibilidade com a queda dos antigos métodos de produção dos engenhos e a progressiva modernização da economia açucareira que dava lugar às usinas. A escritora Magdalena Antunes se enquadrava nesse contexto histórico, social e cultural, pois ela foi filha de senhores de engenho e herdou as propriedades de seu pai, as quais viu entrar em decadência nas primeiras décadas do século XX. O tema do livro por ela escrito é a sua infância e adolescência que se passa em um contexto rural, aristocrático,

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patriarcal e escravista do final dos Oitocentos8. Todo esse cenário certamente foi visto como campo fértil aos olhos dos intelectuais potiguares de seu tempo, os quais estiveram alinhados ao grupo acima descrito, tanto que foi sob o incentivo deles que a autora ganhou fôlego para escrevê-lo e publicá-lo.

É importante destacar também que nesse mesmo contexto histórico (dos anos 1920, 1930 e 1940) outras mulheres escreviam e publicavam no Brasil; no entanto, a partir das pesquisas realizadas por mim, apenas Magdalena Antunes se autointitulou sinhá-moça e adotou esta identidade já no subtítulo de seu livro. Acredito que, com sua obra, Magdalena Antunes intencionou ir além das expectativas que se tinham para as mulheres de seu tempo, sobretudo para as idosas, envoltas em outras expectativas e discriminações. Com a publicação do Oiteiro, Magdalena Antunes firmou-se no mundo das ideias como escritora, só que agora trazendo a público um texto literário que a inseriu no movimento de mulheres brasileiras que, a partir do século XIX começaram a participar da imprensa e da literatura9.

Trajetórias como a de Magdalena Antunes revelam que as escritoras potiguares também pareciam desejosas de se fazerem presentes junto a esse grupo, sendo que a trajetória de muitas delas foi problematizada por pesquisadoras e pesquisadores, inclusive no Rio Grande do Norte, ao longo dos anos10. Magdalena Antunes publicou uma obra literária que é

8 Segundo Lana Lima e Suellen Souza (2015), o patriarcado refere-se a uma forma de organização familiar e social em que um homem, o patriarca, submete os demais membros dessa organização ao seu poder. Por aristocracia entendo que ela seja uma forma de organização social e política em que o poder é centralizado em torno de uma classe privilegiada, cuja posição é garantida em função do domínio econômico. Além disso, seu prestigio é reforçado socialmente a partir de diferentes rituais, símbolos e titulações nobiliárquicas. Segundo Cintia Santos Diallo (2015), a escravidão é uma forma de trabalho na qual um ser humano é submetido à condição de propriedade de outro ser humano, por meio de coerção física e/ou psicológica.

9 Como indicativo disso ressalto a história de mulheres tais como a potiguar Izabel Gondim (1839-1933), a são-joanense (de São João da Barra-RJ) Narcisa Amália (1852-1924), as baianas Inês Sabino (1853-1911) e Adelaide de Castro Alves (1854-1940), a maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a porto-alegrense Luciana de Abreu (1847-1880), a carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), a santista Priscilliana Duarte de Almeida (1867-1944), a mineira Helena Morley (1880-1970) e tantas outras que podem ser conhecidas melhor a partir da consulta à antologia Escritoras brasileiras do século XIX, coletânea esta que se divide em três volumes e que foi organizada por Zahidé Lupinacci Muzart (2000; 2002) e publicado pela Editora Mulheres. Tal trabalho reúne estudos realizados na década de 1980 por um grupo de pesquisadoras brasileiras filiadas à linha de pesquisa “Mulher e Literatura” vinculada à Associação Nacional de Pós-Graduação em Língua e Literatura (ANPOLL), as quais se empenharam em resgatar, ao longo de suas carreiras, a memória de escritoras do passado que se encontravam imersas num silêncio forçado.

10 Em relação a essas pesquisas que vêm dando ênfase à trajetória de mulheres intelectuais ao longo de mais de uma década no Rio Grande do Norte, elenco os trabalhos realizados e orientados pela pesquisadora Ana Laudelina Ferreira Gomes, professora colaboradora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN que pesquisou e publicou livro e artigos sobre a poeta Auta de Souza (1876-1901), e coordena a linha: “Trajetórias, narrativas e poéticas de mulheres, artistas e intelectuais brasileiras” no Grupo de Pesquisa Mythos-Logos: ciência, religião e imaginário/PPGCS-UFRN, onde este trabalho que desenvolvo está inserido. Desta linha apresento Farias (2013), Eustáquio (2015), Sousa (2016) e Araújo (2017). Destaco os estudos da professora colaboradora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN, Maria Arisnete Câmara de Morais. Saliento também a pesquisa da professora Constância Lima Duarte (UFMG) sobre Nísia Floresta (1810-1885), que em parceria com a professora e poeta Diva Cunha (UFRN) organizou trabalhos na

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tida como rara por Cascudo (2003) sendo igualada por ele ao livro Minha vida de menina, da escritora mineira Helena Morley (2012) e sendo possivelmente o livro de Magdalena Antunes o primeiro do gênero memorialístico feminino no Nordeste brasileiro (DUARTE; MACÊDO, 2013).

É importante colocar que, para além de uma inserção no espaço público, até porque Magdalena Antunes não transpôs tanto assim o espaço da domesticidade, o mais importante nisso tudo é perceber o quanto ela consegue olhar para o seu interior e se colocar a partir do que escreveu. Vale pensar na própria produção de uma escrita de si, na sua autorrealização, no exercício de olhar para o seu passado e se perceber enquanto mulher que, diferentemente de tantas outras, pôde escrever e registrar seus sentimentos, além de expor e criticar algumas situações que não a contemplavam. Possivelmente, Magdalena Antunes sofreu as mesmas dificuldades e cobranças para que se adequasse aos padrões vigentes comuns às mulheres de sua classe social. Isso transparece através de queixas que são visíveis em sua obra memorialística.

O Oiteiro é uma fonte de estudo rica para o pesquisador, ainda mais por ele trazer o ponto de vista de uma mulher acerca de si mesma e do mundo à sua volta. Nesse sentido, chamaram-me a atenção diversas representações de gênero que podem ser observadas permeando toda a extensão da obra. A partir de um respaldo teórico e metodológico que articula a história cultural, os estudos sobre mulheres, de gênero e a história da educação, o objetivo deste trabalho é trazer à tona as representações do feminino, levando em consideração o olhar que Magdalena Antunes direcionou em sua escrita de si. É importante destacar que, além das representações presentes no Oiteiro, aqui também serão discutidas as representações da vida dela, a partir do olhar que direcionei sobre as suas vivências em diferentes espaços.

É preciso ter em mente que a escrita de si, conforme salientou Ângela de Castro Gomes (2004), é feita através da escolha de elementos que, para o sujeito que escreve, precisam ser lembrados, registrados e eternizados, dando sentido à sua história e à do grupo ao qual pertence. É importante também atentar para o modo como o seu autor disse que experienciou as coisas, o que sentiu e como foi tocado por elas. Nesse processo, na medida

linha de resgate da trajetória de escritoras oitocentistas. É válido realçar que as pesquisas da professora Constância Duarte começaram quando ela ainda era docente da UFRN no Núcleo que havia chamado Mulher e Literatura, onde já atuava com Diva Cunha. Indico as pesquisas da professora Conceição Flores, que durante anos foi docente da Universidade Potiguar (UnP) onde, além de outros trabalhos, organizou a coletânea Mulheres e literatura: ensaios (2013). Por fim, é importante também salientar, dentro desse processo, a atuação da Editora Azymuth que tem publicado obras de escritoras norte-rio-grandenses do passado.

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em que se exalta algumas experiências, relega-se outras, propositalmente, ao silêncio e ao esquecimento (CARDOSO, 2009). Por fim, uma escrita de si tem muito mais relação com um processo de autoedição do que com uma autoria; em outras palavras, escrever sobre si mesmo é construir-se (GOMES, 2004).

Foi exatamente esse exercício que acredito que Magdalena Antunes fez em seu Oiteiro, ou seja, construiu uma versão para/de si na qual me parece que o açúcar do engenho agiu metaforicamente adoçando essa escrita. O afeto, por sua vez, também agiu em meio a esse processo uma vez que as memórias de Magdalena Antunes são todas muito afetuosas, fruto de escolhas, tanto é que ela não quis tratar de coisas que fossem conflituosas ou dolorosas, silenciando-as. Magdalena Antunes fez a opção de resgatar em suas memórias escritas as coisas que para ela eram de fato mais doces de serem lembradas e, nisso, surgem pessoas, lugares e vivências. O açúcar e o afeto são ingredientes muito presentes em sua memorialística, o que me fez usá-los no título e em toda a extensão desta tese. Vale ressaltar que, ao fazer uma paráfrase com o nome da música “Com açúcar e com afeto”, do compositor Chico Buarque de Holanda, aqui emprego estas palavras com um sentido diferente do da canção.

Neste trabalho, penso o conceito de representação tal qual o pensaram Roger Chartier (1990) e Denise Jodelet (2001). Articulando a fala desses dois historiadores, entende-se que as representações sociais são versões da realidade compostas por imagens ou solidificadas por palavras carregadas de significações e, nestas, as representações expressam os indivíduos ou os grupos que as elaboraram, definindo o objeto por elas retratado. Ou seja, as representações sociais, compostas por imagens e discursos, falam muito mais daqueles que as constroem do que dos objetos sobre os quais se propõe a falar, mostrando também como pensa uma determinada sociedade. Refletir sobre representações na obra Oiteiro é pensar numa imagem aristocrática que Magdalena, e o grupo a que ela estava ligada, parecia querer eternizar através da literatura11.

Neste estudo, me direciono às representações de gênero presentes na escrita que Magdalena Antunes fez de si e para as representações sobre a vida dela, não me restringindo ao estudo das mulheres, mas buscando ampliar o estudo das relações entre elas e os homens. Isso se tornou possível a partir da emergência da categoria de gênero, quando as mulheres e os

11 Com a progressiva derrocada da aristocracia ao final do século XIX e primeiras décadas do XX em face da ascensão capitalista que elevava a burguesia, era necessário eternizar seus hábitos e modos de vida. Para tanto, vários autores, entre eles Gilberto Freyre (1998), José Lins do Rêgo (2010, 2011a, 2011b), Julio Bello (1985), Mário Sette (2005), dentre outros, se utilizaram da escrita de textos memorialísticos de cunho saudosista e elogioso firmando para si uma imagem duradoura.

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homens passaram a ser definidos em termos recíprocos não se podendo, “[...] compreender um dos sexos por meio de um estudo inteiramente separado” (SCOTT, 1995, p. 72). Gênero é outra categoria que norteia toda a discussão que estou realizando nesta pesquisa, sendo ela fruto do embate de algumas teóricas do feminismo em meados da década de 1980. Tal categoria surgiu para dar conta de explicar as relações socialmente construídas entre homens e mulheres12. Além de verificar as atribuições e expectativas ligadas a cada sexo, a categoria gênero colocou por terra as contraposições e hierarquias ligadas a eles a partir do fator biológico, ou seja, se as desigualdades entre os sexos existem é porque elas foram construídas e não porque lhes são natas (MATOS, 2000).

No caso do objeto de pesquisa aqui proposto, entendi que é preciso analisar as representações de gênero dando ênfase à trajetória de vida de Magdalena Antunes, bem como aos perfis femininos que se fazem presentes no livro Oiteiro, levando em consideração a época e os lugares onde os acontecimentos se passam. A escrita de si desenvolvida por Magdalena Antunes permite a visualização de diferentes perfis de mulheres em seus embates com o sexo oposto, mas também com outras mulheres de outras classes, etnias e raças. Neste trabalho, não pretendo tratá-las de forma isolada nem tampouco pelo viés da vitimização, mas a partir do estabelecimento de relações com os outros sujeitos pois, como afirmou Joan Scott (1995), gênero é uma categoria relacional.

Será enfatizado neste trabalho um grupo de mulheres a partir da obra memorialística de Magdalena Antunes, grupo este que faz parte de uma figuração ligada ao mundo dos engenhos do Nordeste no final do século XIX. São elas: Joana Soares de Oliveira, sua mãe, que de forma autodidata, e contra a vontade de seus pais, se esmerou em fazer-se alfabetizada.

12 A historiadora Joan Scott (2011) afirmou que os estudos de gênero são resultantes de uma evolução epistemológica que partiu da história do feminismo. Para ela, esse campo de estudos é fruto de um movimento social, o que corrobora Michelle Perrot, quando esta afirma que “[...] o desenvolvimento da história das mulheres acompanha em surdina o „movimento‟ das mulheres em direção à emancipação e à libertação” (PERROT, 2015, p. 15). Segundo Céli Pinto (2010), o movimento feminista é tradicionalmente dividido em duas ondas. A primeira aconteceu a partir de meados do século XIX, tendo como linha de frente mulheres da burguesia europeia e da nobreza em decadência, cujas lutas giravam em torno do direito a educação, do voto e do acesso ao trabalho assalariado. No Brasil, o feminismo do século XIX e início do XX não se configurou como um movimento organizado; era muito mais um conjunto de vozes espalhadas pelo País com dificuldades de comunicação entre si e que se utilizava de publicações em periódicos como estratégia de luta (ROCHA, 2015). Na segunda onda, que surgiu na década de 1960, a principal demanda das mulheres girou em torno do direito delas decidirem os rumos de seus próprios corpos. Essa geração tomou como principal embasamento teórico as proposições de Simone de Beauvoir (2009) em sua obra O segundo sexo. Ao afirmar que ninguém nasce mulher, e sim, torna-se uma, a filósofa afirmou que a mulher se forma como tal mediante as características que a cultura de uma determinada sociedade elabora e que incide sobre suas mentes e corpos, definindo quais os papéis que elas devem desempenhar para que sejam aceitas nos círculos sociais. Hoje se fala em movimentos feministas, uma vez que se entende que não existe um movimento de mulheres unificado (SOIHET, 2015). As mulheres do século XXI ainda estão lutando por demandas da segunda onda que não foram completamente alcançadas por elas, “[...] ainda reivindicam o direito ao corpo, denunciam a violência, o estupro e a acusação de que elas o provocam com suas roupas e comportamentos” (PEDRO, 2015, p. 33).

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Dona Yayá e Dona Carlotinha serviram de inspiração, em termos de educação, cultura e bons modos, para que os pais de Magdalena Antunes a matriculassem no Colégio de São José, onde elas haviam estudado anos antes.

Todos esses nomes femininos dão exemplos claros dos papéis esperados, dos papéis rejeitados, ou dos papéis representados: a escrava Patica, a mãe-preta dos Antunes, aparece nas narrativas de Magdalena sempre em atividades de serviço aos donos da casa de forma mansa e submissa e, por tal motivo, era muito estimada. Diferentemente de Patica, a menina Tonha era filha de escravos e morava aos fundos do engenho com a avó ainda cativa. Tonha era tida como mal educada e insolente refletindo assim, o antimodelo daquilo que Magdalena Antunes deveria se espelhar. A professora primária, por sua vez, aparece nas narrativas sempre acolhedora e paciente, exercendo na escola a extensão da maternidade, perfil este potencializado junto às freiras do internato doroteiano em Recife, sobretudo em relação à sua madre superiora. As moças do colégio também são descritas por Magdalena Antunes como “virtuosas”, “inteligentes” e até mesmo “indisciplinadas”.

O estudo ora apresentado deve também ao desenvolvimento da historiografia, sobretudo após o movimento dos Annales a partir de 1929, o que possibilitou uma abertura no campo dos estudos das ciências humanas. Esse movimento foi tão profícuo que rompeu com a hegemonia dos enfoques meramente econômicos e políticos, distanciando-se, em grande medida, da visão centrada na trajetória dos “grandes homens”, centralizando esforços na pesquisa em torno de pessoas marginalizadas, entre as quais destaco as mulheres (BURKE, 1991)13.

A nova forma de abordagem lançou as bases para a interdisciplinaridade, tornando possível a união de conceitos, discussões e autores de diferentes áreas, tais como História, Antropologia e Sociologia, permitindo conexões, debates e diálogos entre várias áreas do saber humano (BURKE, 1991)14. A partir de então também foi possível (re)conhecer uma determinada realidade social através da história cultural, fazendo com que todos os indícios de

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Em relação às abordagens voltadas para o estudo das mulheres, ela é iniciada, principalmente, a partir da terceira geração dos Analles, e nisso merecem destaque os estudos desenvolvidos por Michelle Perrot e Georges Duby, cujo trabalho resultou na organização da coleção História das mulheres no Ocidente. Para fins desta pesquisa, destaco o volume 4 da referida coleção, pois este se volta para a análise da trajetória das mulheres no século XIX, incluindo as leitoras e escritoras (PERROT; DUBY, 1990).

14 É importante ressaltar que antes do surgimento da Escola dos Annales já havia intelectuais que adotavam em seu fazer científico alguns fundamentos, tais como a interdisciplinaridade e o confronto de distintas fontes, que os Annales só adotariam no século XX. Entre eles, destaco o alemão Karl Marx (1818-1883) que, segundo Mueller e Bianchetti (2017), passeava com habilidade pelos campos da filosofia, do cálculo, da economia, da matemática, da física, dos estudos demográficos, da história, da maquinaria, da tecnologia e dos estudos bancários, mas pode-se dizer que também pela literatura.

Referências

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