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Diferentemente da obra de Gilberto Freyre (1998), que tratou vastamente da hipersexualização do corpo negro, sobretudo das mulheres, no texto de Magdalena Antunes essa temática não é abordada, nem sequer sugerida. Mas em consonância com a obra de Freyre, em Oiteiro aparece uma série de vultos de negros circulando e fazendo parte da realidade da casa-grande. Na narrativa feita por Magdalena Antunes, aparecem escravos atuando nas atividades diárias do engenho: são criaturas sem rosto e muitas vezes sem identidade que se movem em atividades auxiliares. No espaço doméstico, é possível observar várias mulheres trabalhando sob a coordenação de Joana Soares: Emília, Virginia, Rita e Quitéria, as escravas da cozinha.

Todavia, as mulheres que mais ficaram em evidência foram Patica e Tonha, às quais Magdalena Antunes dedicou um capítulo inteiro em seu Oiteiro. Além do capítulo, as duas aparecem em diversos outros momentos da memorialística, fazendo parte das vivências da menina e, sobretudo, de suas lembranças quando ela encontrava-se no colégio interno de Recife. Assim Magdalena escreveu: “A Tonha vinha-me sempre à memória, como uma figura imprescindível e querida” (ANTUNES, 2003, p. 163). Ao longo da memorialística, Patica e Tonha são alvo de um forte sentimento saudosista e investidas de atributos valorativos positivos para Magdalena, pois, afinal de contas, ambas eram alvo do seu afeto.

A primeira de quem falarei é a mãe-preta da menina Magdalena Antunes tal como esta a denominou em sua obra. Seu nome de batismo era Francisca, Chica para Joana Soares e enfim Patica após as primeiras palavras pronunciadas por Magdalena quando era criança de berço (ANTUNES, 2003). A escrava Patica, juntamente com outros escravos, fez parte do dote de Joana Soares que, por sua vez, era filha do tenente Onofre José Soares, um rico senhor de engenho e escravos na região canavieira de Maxaranguape. Sendo a negra de confiança de seus novos senhores, sobretudo de sua sinhá, quando “[...] vindo ao mundo a primeira filha destes, destinaram-na para minha „mãe-preta‟” (ANTUNES, 2003, p. 77). No texto abaixo, ao descrever a escrava, Magdalena Antunes deu destaque aos seus traços diacríticos, associando- os a elementos positivos que a enobreciam. Assim Magdalena Antunes escreveu:

Era alta e corpulenta, pele de ébano, descendente de africanos. Os cabelos negros e pixains, presos ao casco da cabeça, semelhavam um maço de linha de crochê desmanchando. A fronte estreita sumia-se dentro de rosquinhas miudinhas a brilharem após o banho, quando os pingos d‟água ficavam presos àquelas semelhantes a arame. Ao sorrir, os lábios escuros pareciam uma cortina de veludo negro, entreabrindo-se para deixar ver ao fundo um mostruário de pérolas. O nariz achatado lembrava pequena borboleta palpitante e cinzenta, de asas abertas e espalmada sobre as faces angulosas. Os olhos retintos, porém, de expressão cismadora e cândida dos olhos do Fiel, de Guerra Junqueiro. Derramavam tonalidades brandas pela lustrosa e carrancuda fisionomia, tal como as águas caídas do céu refrescam a dureza dos rochedos. Tinha na voz dolente e arrastada a tristeza do banzo africano. Feíssima! Diziam todos. Linda! Dizia eu... Cheirava a murta e a manjericão (ANTUNES, 2003, p. 76-77).

Além dos cuidados com a ordem doméstica, ainda ficava ao seu cargo os cuidados com as quatro crianças, sobretudo de Magdalena Antunes, a filha primogênita do casal. Segundo a autora, Patica era “[...] de gênio bom e serviçal, conquistou cedo a estima e complacência dos senhores” (ANTUNES, 2003, p. 77). Diariamente Patica se encontrava penteando os cabelos da menina, vestindo-a, alimentando-a, zelando por seu asseio corporal e passando muitas noites em claro quando ela adoecia.

A antropóloga Fátima Quintas, em seu trabalho sobre as representações de gênero na obra de Gilberto Freyre, afirmou que as mães-pretas despontavam na casa-grande como verdadeiras mães de criação, ocupando posições de destaque na família patriarcal. A posição ocupada por essas mulheres tinha por base a contribuição dada à manutenção do sistema doméstico e a diferentes rituais inerentes a ele, o que contribuía para o estabelecimento de vínculos afetivos das escravas com seus senhores. Assim escreveu a antropóloga:

Gordas, pachorrentas, embalavam bebês, acariciando-os como filhos seus. O exercício da maternagem acabou por incutir-lhes algumas prerrogativas de muito bom alvitre para o patriarcalismo. Quando alforriadas, permaneciam em seu papel regulador, os meninos tomavam-lhes a bênção, os escravos tratavam-nas de senhora, os boleeiros andavam com elas de carro. Nos dias de festa, comandavam a cerimônia, dando ordens e aparentando senhoras bem-nascidas. Imbuíram-se de tal maneira da posição de mãe “postiça” que defenderam ardorosamente os ímpetos da criançada. O que teria sido da infância na casa-grande sem a africana a distribuir promessas de felicidade? Sem as narrativas noturnas que ninaram devaneios? Sem as histórias de bicho ou de monstros com a cara de gente? Sem o seu espírito também infantil? (QUINTAS, 2008a, p. 129-130; grifo da autora).

A escrava Patica nas narrativas de Magdalena aparece de fato enquanto a “mãe postiça” de que nos fala a antropóloga e cuja morte foi deveras lamentada, sendo ela sepultada ao lado do coronel José Antunes, dada a importância que ela tinha para a família, mesmo sendo escrava. Assim escreveu Magdalena Antunes: “Em 1919 perdi minha inesquecível Patica. Não lhe faltaram, na hora extrema, os cuidados e carinhos de que era merecedora, num justo tributo ao arraigado amor da minha parte. Pus-lhe, nos últimos momentos, a vela na mão. [...] ao perdê-la, na idade madura, sentia-me órfã pela segunda vez, [...]” (ANTUNES, 2003, p. 93). Nessa época, Magdalena Antunes tinha trinta e nove anos.

Todavia, a despeito de todo esse amor, é importante ponderar que Patica continuava sendo escrava e, na escrita de Magdalena, algumas situações relacionadas a essas demarcações de lugar aparecem com nitidez. A obediência às vontades senhoriais do patriarca se estendia também às vontades de sua esposa e às de seus filhos, que enquanto herdeiros de toda a estrutura davam claras demonstrações de que já sabiam o poder de mando que tinham desde tenra idade. Isso aparece em diversos momentos do Oiteiro, sobretudo em relação à escrava Patica.

Contando com a aceitação de Joana Soares, a escrava Patica passou a chamar a menina de “Sinhá Lica” e que, por sua vez, não gostou do apelido que lhe foi dado. Durante anos, Magdalena foi assim chamada pela escrava, até que nas férias do colégio que veio passar em casa a menina, então empoderada, se voltou contra a escrava demonstrando seu desagrado pelo cognome. Assim escreveu: “Ao perceber meu dissabor, a bondosa escrava nunca mais

usou daquele tratamento, passando a chamar-me de “Pequena”. Isso é que era amor!” (ANTUNES, 2003, p. 78). Embora gostasse deveras da escrava, Magdalena não hesitou em tornar conhecido por Patica seu desagrado pelo apelido que a escrava tanto gostava.

Na condição de escrava, o que competia a Patica era apenas acatar a ordem personificada em pedido da menina, que também era sua senhora; todavia, a resignação e obediência da escrava foram interpretadas por Magdalena Antunes como demonstração de amor. Parece-me que Magdalena Antunes não tinha consciência da relação opressora entre senhor e escravo, mesmo já madura, pois naturalizava a dominação movida por ela contra a escrava que dizia amar.

É também como contadora de histórias que Patica ganhou realce na narrativa de Magdalena Antunes que, por sua vez, deixou claro a influência da mãe-preta para a sua formação intelectual. O escritor José Lins do Rêgo (2010) em Menino de engenho também trouxe para sua narrativa a figura de Totonha que, igualmente negra e escrava, tinha o dom de contar histórias para as crianças. Assim o autor escreveu:

A velha Totonha de quando em vez batia no engenho. Era um acontecimento para a meninada. Ela vivia de contar histórias de Trancoso. Pequenina e toda engelhada, tão leve que uma ventania poderia carregá-la, andava léguas e léguas a pé, de engenho a engenho, como uma edição viva das Mil e uma noites. Que talento ela possuía para contar histórias, com um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e com uma voz que dava todos os tons às palavras. [...]. A velha Totonha era uma grande artista para dramatizar (RÊGO, 2010, p. 71).

Na obra Casa-Grande & Senzala em quadrinhos, é feita a reprodução visual da mãe- preta contadora de histórias que fez parte da infância de muitos meninos e meninas de engenho. Veja-se a figura abaixo:

FONTE: Freyre (2000, p. 27).

Patica, por sua vez, era cativa e analfabeta, mas conhecedora de um amplo repertório de histórias que embalava a imaginação das crianças. Devido às lendas, fábulas e histórias de Trancoso que eram contadas ao luar sob o alpendre da casa-grande do engenho, a escrava chegou a ser equiparada em termos de erudição à irmã Barreto, uma das professoras do Colégio de São José. “Uma era serva do Senhor, culta e de família ilustre. A outra, humilde, descendente de africanos. Mas, o que expressavam e diziam, na essência, era igual. Tinha igual beleza e sedução” (ANTUNES, 2003, p. 73).

O conhecimento demonstrado por Patica certamente não era aquele agenciado pelas instituições oficiais de ensino, mas aquele absorvido pela oralidade e transmitido de uma geração para outra também de forma oral. No repertório da escrava constavam histórias como Moura Torta, Maria Borralheira, Príncipe Encantado, a Novela dos três cavalos: “Rompe ferro”, “Rompe Nuvens” e “Corre-mais-que-o-vento”. Muitas delas tinham cunho disciplinador para as crianças visando inculcar em suas mentes a obediência e a prudência, trazendo desfechos mágicos e inacreditáveis, entre elas, a história preferida de Magdalena Antunes: a história dos príncipes Diniz e Rosina, conto este que, no leito de morte da escrava, Magdalena Antunes solicitou que fizesse pela última vez a narrativa, enquanto sua senhora transcrevia tudo para um caderninho (ANTUNES, 2003).

Anos mais tarde, a referida história faria parte do Oiteiro onde a escritora eternizou a fala da velha escrava no capítulo 7, intitulado “AS LENDAS”, conforme já situei anteriormente. Magdalena Antunes lançou também o seguinte questionamento em relação à origem da história que tanto admirava: “Não seria absurda a ideia de que a história que passo a narrar tenha sido produção sua... Jamais a li ou a ouvi narrada por outrem” (ANTUNES, 2003, p. 103).

O momento da contação de histórias, segundo mostra Magdalena Antunes (2003), acontecia sempre à noite, no alpendre da casa-grande do engenho, momento em que Patica sentava-se no chão acomodando o menor dos meninos no seu colo e os demais em torno dela. Magdalena Antunes, de forma muito romanceada, fala desse momento de interação entre o grupo mas, por outra via, observei também que este era um momento de clara demonstração de poder das crianças, quando cada uma se arvorava sobre sua escrava, que precisava saber conciliar e agradar a vontade de quatro crianças opiniosas e que também eram seus senhores. Cada uma delas interrompia a fala da escrava em momentos distintos, demonstrando suas preferências por esta ou por aquela história e, após longa negociação, a contenda era resolvida por Magdalena Antunes, que se fazia imperativa e decidia a história a ser contada por Patica, justificando o fato de ser a mais velha entre os quatro irmãos. Assim ela escreveu: “Pois não será nenhuma dessas; a Patica vai contar a dos Príncipes Diniz e Rosina, que é a história mais bonita dentre as muitas que ela sabe” (ANTUNES, 2003, p. 80).

Em uma dessas contações de história, Patica confidenciou às crianças que, antes de ser trazida para o engenho da família Antunes, ela havia servido a outra família onde também teve outra sinhá-moça chamada Quinotinha (ANTUNES, 2003). Entre uma história e outra, Patica inseria de forma até receosa algo do seu passado. Afinal de contas, o que poderia interessar a história de vida de uma escrava aos seus senhores, ainda mais sendo eles crianças? Esse foi um dos raros momentos em que a sua própria história de vida se entrelaçou com as “histórias maravilhosas” que contou, conforme aparece no texto de Magdalena Antunes.

Por sua vez, Magdalena Antunes tinha o hábito de contar histórias para as escravas da casa, histórias estas que retirava dos livros de leitura com os quais estudava, atitude esta semelhante à de Auta de Souza, conforme afirmou seu irmão Eloy de Souza em suas Memórias (SOUZA, 1975). Assim Magdalena escreveu: “Com grande dificuldade cheguei ao livro de primeira leitura. Se o folheava é porque continha muitas gravuras e histórias que eu achava lindas!” (ANTUNES, 2003, p. 37). Nesses momentos Magdalena Antunes reproduzia

para as escravas as histórias contidas nos seus livros de leitura por já conhece-las, haja vista que não sabia decifrar as letras corretamente:

As escravas rodeavam-me pedindo que eu lhes contasse. Eu então tomava ares de literata e exibia os meus conhecimentos perante o único auditório que achava que eu sabia ler... Mas eu não sabia... gaguejava, soletrava as palavras e, não sabendo pronunciá-las, pulava trechos inteiros... A negrinha Tonha, já de “ventre livre”, minha companheira permanente nas travessuras e apenas mais velha do que eu dois anos, fazendo trejeitos com o corpo e fitando-me com aqueles olhos de jabuticaba madura, observava: - Sinhá Lica, leia mais devagar que eu não estou entendendo nada! Era só quem falava a verdade. As outras ouvintes, porém, não protestavam e faziam-me crer, até, que estavam entendendo, pra me serem agradáveis (ANTUNES, 2003, p. 37-38).

Entretanto, não era apenas sobre Patica e os demais escravos da casa que as vontades senhoriais incidiam e ganhavam força; elas também eram direcionadas a pessoas simples que tal como os escravos, eram dependentes do senhor e de sua família. Magdalena Antunes narrou uma cena interessante envolvendo o destilador do engenho, Antonio Miolo e sua irmã Sinhá Cosma, que, em uma visita de domingo, foram surpreendidos pelas crianças que estavam no engenho. Segundo Antunes (2003), o engenho Oiteiro também produzia cachaça em paralelo ao açúcar e, naqueles idos, este era o único ramo que ainda se mantinha firme, ajudando a custear os estudos das quatro crianças em Recife. Assim escreveu Magdalena Antunes sobre os trabalhadores do engenho, demonstrando conhecer muito bem o jogo de poder a que estava atrelada e qual a sua posição em relação a ele:

A toleima de ambos aguçava a nossa perfídia; e, então, eu, a mais maldosa do bando, integrado por “Seu Zaquié” e “Seu Jovená”, pedia a Cosma que recitasse uma das poesias que sabia de cor, e ao irmão que cantasse uma modinha. Os dois entreolhavam-se, desconfiados. Mas como negar um pedido a um filho do Coronel? Impossível! E a declamadora começava a recitar, sabe Deus como, um antiquado poemeto, do qual só me recordo dos seguintes versos: “Ricardo! Meu filho! Pega o punhal! Vinga teu pai!...” E Antonio Miolo Cantava: “Teus olhos são negros, negros como as noites sem luar...” Os improvisados atores desfizeram-se em momices antes de aquiescer; mas depois, sob o estímulo dos nossos aplausos, repousavam tranquilos e satisfeitos. Quanta perversidade! Nossos pais nos educavam na escola da caridades, e nós nos divertíamos à custa de duas simplórias criaturas (ANTUNES, 2003, p. 301-302; grifos meus).

Comportamentos como esses são descritos por Gilberto Freyre quando ele fala da infância na casa-grande, onde muitos filhos de senhores de engenho se voltavam contra seus subalternos incidindo sobre eles seus caprichos e sadismos contando, muitas vezes, com a total adesão dos seus pais (FREYRE, 1998). Na citação abaixo, o personagem Brás Cubas do romance de Machado de Assis exerce poder, ainda criança, tal como os irmãos Antunes sobre os seus subordinados. Estes, por sua vez, não mediram esforços para atender às vontades do seu senhor, mesmo ele sendo uma criança. Assim escreveu o romancista:

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino-diabo” [...]”, confessa o herói das Memórias Póstumas de Brás Cubas. “Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito com a travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um muleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô” - ao que eu retorquia: - “Cala a boca, besta!” – Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e as vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos (ASSIS, 2007, p. 24; grifos meus).

Mas, de fato, Patica representava, nas narrativas de Magdalena, a mãe postiça, aquela figura boa que “nos tempos patriarcais, criava menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as primeiras palavras de português errado, o primeiro „padre-nosso‟, a primeira „ave-maria‟, [...], que lhe dava na boca o primeiro pirão com carne e „molho ferrugem‟, ela própria amolegando a comida” (FREYRE, 1998, p. 335-336). Patica figura enquanto metonímia de tantas outras mães-pretas que foram eternizadas pela escrita literária, entre as quais cito a escrava Rita, negra doméstica da confiança da avó de Eloy de Souza (1975), que foi mencionada pelo escritor em sua memorialística.

Patica foi investida por Magdalena de atributos que a ligavam à docilidade, à maternagem, mas também à servidão. Uma servidão romanceada e saudosa, em que o sentimento de submissão era naturalizado e encarado como uma demonstração de afetuosidade. Até mesmo o fato de a escrava ter permanecido na dependência dos Antunes durante toda a vida foi interpretado pela escritora como reflexo desse sentimento da escrava em relação a ela, visão que fez com que Magdalena Antunes fosse de encontro ao texto de Joaquim Nabuco em sua obra O Abolicionismo publicada originalmente em 1883. Assim Magdalena escreveu a propósito do mesmo:

Li algures: “Não vejo nada digno de admiração ou de entusiasmo na conduta desses escravos fiéis pela inércia. Todos sabemos que depois da abolição dos escravos, muitos deles não se quiseram separar de seus amos. Nessa fidelidade não vejo nada que seja realmente humano...” Quem escreveu estas linhas não conheceu, por certo, a dedicação de uma serva como a Patica (ANTUNES, 2003, p. 93-94).

E para revalidar seu argumento em contraposição ao texto de Joaquim Nabuco, Magdalena Antunes enfatizou outra passagem de sua vida, onde trouxe a demonstração do sentimento da escrava em relação a ela. Esse momento é exatamente quando Patica compra um vestido de crochê para a boneca de Magdalena Antunes, retirando das suas parcas

economias 320 réis, contrariando inclusive a sua senhora, a mãe da menina, que não queria comprar o mimo. “Encantada com o objeto, não me atendeu por achar o preço exorbitante. Chorei, implorei, nada! Minha mãe era inflexível em matéria de economia” (ANTUNES, 2003, p. 94). Após ver a situação a escrava suplicou à sua senhora em favor da menina, tendo assim, após relutância, o pedido atendido: “- Chica – Bradou minha mãe – tú estás botando esta menina a perder! – Consinta, Sinhá Moça! – Suplicou com humildade a serva” (ANTUNES, 2003, p. 94-95).

Magdalena Antunes ainda deu ênfase ao gesto da velha escrava, afirmando que ela só recebia algum dinheiro quando seus senhores, num gesto de generosidade, lhe destinavam algum vintém para que ela comprasse fumo. De fato, retirar todo esse dinheiro para comprar um vestido de boneca representava um ônus sem precedentes no limitado pé-de-meia da escrava, tanto que a mãe de Magdalena Antunes se conscientiza do fato e devolve a surrada quantia. No entanto, o gesto da escrava repercutiu na menina: “Eu fiquei perdida! Mas perdida de amor pela Patica” (ANTUNES, 2003, p. 95).