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4.4 Saindo da casa-grande para o espaço público: a professora Dona Maria Alves

4.4.1 As Escolas Normais e a feminização do magistério

Nesse contexto em que as mulheres estão progressivamente aspirando por outros espaços de atuação que não somente o doméstico, cabe enfatizar aqui a criação das primeiras Escolas Normais no Brasil (NEVES; MACHADO, 1999). Nos idos do século XIX, as províncias brasileiras sentiam-se abandonadas em diversos setores, entre eles a educação. O clamor por melhorias estruturais, inclusive nesse setor, pode ser percebido ao analisar os

Relatórios de Presidente de Província do Rio Grande do Norte. Desde o estabelecimento do Império em 1822, havia uma dificuldade sentida por parte de seus administradores em unificar um Estado-nação nas dimensões geográficas do Brasil cujas províncias estavam ligadas apenas pelo idioma e pelo governo de teor autocrático (BARMAN, 2012).

O governo central ainda tinha outras dificuldades igualmente complicadoras. Entre elas, a dificuldade de comunicação resultante da vastidão territorial, o deslocamento entre as províncias que se fazia através da demorada navegação costeira, a economia nacional que não estava estruturada e a riqueza que se centrava nas mãos de um pequeno grupo (BARMAN, 2012). Além disso, em relação à sua população, Roderick Barman (2012) salienta que esta era pequena em contraposição ao tamanho do território, racialmente diversificada, escravista e predominantemente analfabeta.

Quando da separação política do Brasil de Portugal, havia muito a ser feito (BARMAN, 2012). Não havia Constituição nem códigos de leis e, dentre outras tantas coisas, não havia um sistema de educação que atendesse a esse Império que se formava. Quando da instalação da primeira lei da educação no Brasil em 1827, foi estabelecido que ficava sob a responsabilidade das dezenove províncias então instauradas a instalação e a manutenção das escolas públicas de nível primário. À sede do império cabia apenas a fixação dos currículos, tal como estabelecia o decreto imperial, desobrigando-se assim de uma série de demandas onerosas, sobretudo no que tange a parte financeira (BARMAN, 2012).

O quadro da instrução pública no Brasil oitocentista era bastante penoso, devido a diversos fatores, entre os quais a falta de profissionais com qualificação suficiente para lecionarem nas escolas de primeiras letras, o que era constantemente denunciado nos documentos oficiais (BARMAN, 2012). Abaixo, o quadro que foi desenhado pelo presidente da Província do Rio Grande do Norte, Luiz Barboza da Silva, em seu Relatório da Instrução pública de 23 de janeiro de 1867, mostra essa realidade:

É bem pouco lisonjeiro o estado da instrucção primaria nesta província. A pouca aptidão da maior parte dos professores, a negligência de muitos no cumprimento de seus deveres, a falta de uma inspecção regular e severa, a incúria de alguns pais, e a mingoa de recursos de muitos são em minha opinião as causas que determinão esse estado lamentável em que por nossa infelicidade jaz todo o centro da província, e até esta capital em seus subúrbios (RIO GRANDE DO NORTE, 1867 [2001b], p. 3; grifos meus).

Como visto acima, os professores que porventura ocupavam as cadeiras de mestres nas escolas primárias da província, tanto da capital quanto do interior, eram constantemente questionados e criticados. Além da falta de recursos do próprio governo para investir na educação da população, os pais eram acusados de se omitirem quanto à educação dos filhos e

de não possuírem condições financeiras suficientes de mantê-los estudando, bem como a inexistência de uma fiscalização eficaz capaz de reparar as principais arestas no processo de funcionamento das escolas (RIO GRANDE DO NORTE, 1862 [2001b]).

Nos Relatórios de Presidente de Província do Rio Grande do Norte, fonte oficial da época, os professores são responsabilizados por negligenciarem, não raras vezes, o posto que ocupavam e não possuírem conhecimentos teóricos e empíricos suficientes para trabalhar com seus alunos em sala de aula (RIO GRANDE DO NORTE, 1862 [2001b]). Em outros momentos, eles também eram criticados por “perderem tempo” resolvendo questões pessoais, tornando-se assim alheios, deixando de lado as obrigações relativas com a sua própria profissão (RIO GRANDE DO NORTE, 1862 [2001b]).

A partir de 1834, o Ato Adicional estruturou o que seria o projeto das Escolas Normais no Brasil. De forma geral, estas escolas tinham por principal objetivo habilitar professores dotando-os com capacidades suficientes para ocuparem as cadeiras de mestres nas escolas de ensino primário (NEVES; MACHADO, 1999). A primeira instituição fundada com esse perfil no Brasil foi sediada na cidade de Niterói em 1835 e, a partir desta, muitas outras foram sendo criadas ao longo das províncias do Império, entre as quais destaco a do Rio Grande do Norte, fundada em 1873 com sede em Natal (NEVES; MACHADO, 1999)48.

Segundo Jane Soares de Almeida (1998), o magistério primário foi monopólio dos homens durante décadas, havendo muitos professores lecionando nas escolas normais para moças e para rapazes. Progressivamente, as mulheres começaram a adentrar este espaço atendendo às reinvindicações da Igreja Católica, que ansiava pelo fim da coeducação entre meninos e meninas, modelo este herdeiro das práticas jesuíticas trazidas para o Brasil no momento da colonização. Fazia-se necessário então que as mulheres fossem instruídas para atuarem como regentes nas classes femininas.

Foi nas Escolas Normais que moças tiveram acesso ao conhecimento necessário com o qual passaram a se fazer presentes nas escolas primárias na condição de docentes. As Escolas Normais apareceram como a primeira via de acesso à instrução pública escolarizada a que as mulheres brasileiras tiveram acesso, visando a obtenção de um grau de profissionalização (ALMEIDA, 1998)49

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Sobre a Escola Normal de Natal indico o trabalho de doutorado de Francinaide de Lima Silva (2013). Consultei também o livro Auta de Souza: noiva do verso de Ana Laudelina Ferreira Gomes (2013).

49 Vale salientar que ao longo da história do Brasil as mulheres pobres sempre estiveram no espaço público trabalhando. A professora Maria Odila Leite da Silva Dias trouxe, em estudo pioneiro de 1995, a trajetória de algumas delas, umas escravas, outras já libertas (DIAS, 1995). São elas: vendedoras de tabuleiros, escravas de ganho, lavadeiras de rios e chafarizes, mulheres que circulavam em busca do sustento de cada dia, enfrentando, por diversas vezes, violências de diferentes ordens no espaço público da cidade de São Paulo no século XIX.

Dentre as atividades profissionais que estavam reservadas às mulheres, entre elas governanta, parteira ou costureira, ser professora naquele contexto, de virada do século XIX para o século XX, representava uma possibilidade de ascensão social (ALMEIDA, 1998). “Além disso, permitia sair desacompanhada para ir lecionar e possibilitava adquirir conhecimentos, além das prendas domésticas como era usual. Enfim, significava uma chance de igualar-se aos homens em termos culturais” (ALMEIDA, 1998, p. 71-72).

Ser professora primária, por mais baixo que fosse o ordenado na época, para muitas moças acabava sendo uma oportunidade de sair da situação difícil pela qual passavam (ALMEIDA, 1998). As mulheres de classe elevada sempre poderiam ter uma garantia de futuro através dos casamentos arranjados pelos pais. Mas havia aquelas moças que, sem possibilidades de contrair matrimônio, só tinham a perspectiva de viver na dependência de familiares e de amigos ou se resignar ao papel de governantas na casa de famílias ricas (ALMEIDA, 1998)50

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Em Orgulho e preconceito (AUSTEN, 2006), observei a valorização dada ao matrimônio no interior da Inglaterra na passagem do século XVIII para o XIX a partir do dialogo entre a Senhora Bennet e seu marido, pais de cinco filhas, ambas com idades favoráveis ao casamento: “- Se eu tivesse uma de minhas filhas instaladas e feliz em Netherfield – disse Mrs. Bennet para o marido – e todas as outras igualmente bem casadas, nada mais teria a desejar” (AUSTEN, 2006, p. 18). Segundo Catherine Reef (2014), o tema do casamento não raras vezes se resumia a uma questão econômica; no entanto, todas as heroínas das obras literárias de Jane Austen casaram-se com pretendentes por quem realmente eram apaixonadas. Todavia, naquela época, “[...] para muitas pessoas, escolher o marido ou a mulher certa tinha mais a ver com obter um rendimento do que com o amor. As opções para as mulheres eram limitadas. O casamento dava a elas segurança social e financeira [...]. Uma mulher solteira, sem proventos, tinha pouca liberdade, porque dependia da família para abrigo e sustento” (REEF, 2014, p. 23).

Para as mulheres brasileiras, o exercício do magistério surgiu como uma porta aberta a uma profissão, ficando assim resguardadas de ficarem à sombra de algum parente que as

50 A realidade das governantas inglesas foi representada pela escritora Charllotte Brontë (1816-1855) em sua obra literária Jane Eyre (BRONTË, 2014). Nela, a autora conta a história de Jane Eyre que, sendo órfã, foi criada por uma tia. Após um desentendimento com esta, a moça é levada para um colégio interno feminino, onde permaneceu durante oito anos, enquanto aluna e posteriormente enquanto professora. Após transcorrida essa temporada, passou a atuar como preceptora na mansão Thornfield Hall, cuidando da filha de Edward Rochester, homem por quem se apaixona ao longo da trama (BRONTË, 2014). O livro de Charlotte permite pensar, a partir do caso de Jane Eyre, que as mulheres inglesas pobres naquele contexto tinham sim uma possibilidade, ainda que não tão feliz, de ocuparem um lugar no mundo do trabalho assalariado.

sustentassem, livres dos encargos a que estariam submetidas na profissão de governantas ou das insatisfações de um matrimônio indesejado (ALMEIDA, 1998). Receber um salário, por menor que ele fosse, representava a possibilidade de ser mais livres do que então elas eram, liberdade esta adquirida através do salário recebido, das possibilidades abertas que o dinheiro poderia proporcionar e da circularidade no espaço público que a profissão requeria.

Ou seja, através do trabalho assalariado, era possível alcançar uma certa independência financeira, ao mesmo tempo que liberdade e autonomia (ALMEIDA, 1998). Muitas moças brasileiras viam na profissão “[...] uma realização social que a posição invisível ou subalterna no mundo doméstico lhes vedava, submetidas que estavam à sombra masculina todo-poderosa que ali também exercia seu poder” (ALMEIDA, 1998, p. 71). A partir do magistério, as mulheres poderiam inserir-se socialmente no espaço público com mais facilidade, sendo respeitadas e influentes, atuando como agentes de mudanças junto aos alunos e a seus pais.

A escritora mineira Helena Morley, contemporânea de Magdalena Antunes, foi uma dessas moças brasileiras que ainda nos fins do século XIX viveram a experiência de estudar em uma Escola Normal na cidade de Diamantina, Minas Gerais. Devido à escassez das lavras de diamantes na região, a moça, juntamente com sua família, vivia passando por dificuldades, uma vez que seu pai era minerador que insistia em seu ofício, mas sem sucesso. Essa situação fazia com que a família de Helena vivesse constantemente na dependência da ajuda financeira da estimada avó, cujos bens eram administrados pelo tio materno, uma vez que a amada senhora era analfabeta.

Na nota introdutória da primeira edição do livro Minha vida de menina, de 1942, assim escreveu Helena, já sexagenária, acerca dessas dificuldades: “Agora uma palavra às minhas netas – Vocês que nasceram na abastança e ficaram tão comovidas quando leram alguns episódios de minha infância, não precisam ter pena das meninas pobres, pelo fato de serem pobres, nós éramos tão felizes!” (MORLEY, 2012, p. 14). É interessante observar, em contrapartida, o discurso libertador que o título de professora incutia na mentalidade de Helena ainda nos tempos de menina. Abaixo ela apresenta suas expectativas em relação a isso:

Estou convencida de que, se vovó dirigisse o dinheiro dela, nós não passaríamos necessidade e mamãe e meu pai não ficariam tão amofinados como ficam às vezes, por falta de um pedaço de papel sujo, a que a gente tem de dar maior valor do que muita coisa boa na vida. Meu pai vive sempre esperando dar num cascalho rico: mas é só esperança, esperança, toda a vida. Quando ela dá no lavrado, como desta vez, lá se vai todo o dinheiro e ainda fica devendo. Eu, tirando meu título de normalista, sei que tudo vai melhorar, pois irei até para o fim do mundo dar minha aula. Já fiz meus planos, tão bem assentadinhos, que até poderemos guardar dinheiro. Mas

deixar meu pai nesta peleja, furando a terra à espera de diamantes que não aparecem, é que não deixarei (MORLEY, 2012, p. 71; grifos meus).

No entanto, nem tudo eram flores como Helena idealizava. Segundo Jane Soares de Almeida (1998), as primeiras professoras, para que pudessem se efetivar no campo profissional, tiveram que enfrentar algumas dificuldades, entre elas o fato de os homens também controlarem esse campo de atuação. Sendo eles detentores do poder econômico e político, logo se apropriaram do controle educacional, ocupando os cargos de liderança de onde “[...] passaram a ditar as regras e normatizações da instrução feminina e limitar seu ingresso em profissões por eles determinadas” (ALMEIDA, 1998, p. 35).

O magistério de crianças era um locus onde o domínio masculino também se fazia interessante aos homens, pois poderiam elaborar leis e decretos, criar escolas e liceus femininos, compor currículos, bem como escrever os livros didáticos e manuais escolares que seriam utilizados (ALMEIDA, 1998). Além disso, puderam habilitar-se para a docência nas cátedras de maior prestígio, legando às professoras as disciplinas ligadas ao “mundo da casa”, tais como Economia Doméstica e Culinária, Etiqueta, Desenho Artístico, Puericultura e Trabalhos Manuais (ALMEIDA, 1998).

A educação feminina continuava sendo uma extensão da educação familiar e, enquanto estavam estudando, as jovens aguardavam aquele que deveria ser o momento mais importante de suas vidas: o casamento. A partir da educação pensada para as jovens, mas com vias a atender às expectativas masculinas, esperava-se que as mulheres deixassem de ser as esposas ignorantes para se tornarem versadas nas artes de entreterem satisfatoriamente seus maridos e criarem com amor, zelo e dedicação os seus filhos. “Deixaram de ser as procriadoras incultas para tornarem-se as futuras esposas educadas, conhecedoras das necessidades dos maridos e dos filhos, alicerces da moral e dos costumes, fiéis guardiãs do lar cristão e patriótico” (ALMEIDA, 1998, p. 35).

Nos Relatórios de Presidente de Província do Rio Grande do Norte que consultei esse ideário aparece quando, em documento da instrução pública datado de 23 de janeiro de 1867, são reivindicadas melhorias em relação à “[...] educação do sexo de que depende a felicidade do homem, e direi mesmo, o bem estar futuro das nações” (RIO GRANDE DO NORTE, 1867 [2001b], p. 4). Nesse mesmo documento, é colocado o caráter de urgência no investimento por parte do poder público em efetivar um modo mais eficaz de “esclarecer o espírito” das mulheres para o bom desempenho de suas funções de filhas e mais tarde de esposas e mães, a

que estão ligados a felicidade do consorte, e os destinos de filho” (RIO GRANDE DO NORTE, 1867 [2001b], p. 4).

Nem todas as moças que estudavam nas Escolas Normais saíam em direção a um casamento, como era pretendido por muitas e supervalorizado socialmente. Muitas delas estavam destinadas ao exercício da profissão de professoras nas escolas de ensino primário, processo que se intensificou na primeira metade do século XX, mas que já no século XIX o fenômeno era um fato consolidado (ALMEIDA, 1998).

Este movimento se deu especificamente por causa da expansão do campo educacional em termos quantitativos, ampliando assim a demanda por docentes, como também dos impedimentos morais de os professores homens em educarem meninas, limitações estas oriundas da recusa à coeducação dos sexos levada a cabo pelo conservadorismo da Igreja Católica à época (ALMEIDA, 1998). No texto abaixo, Magdalena Antunes, ao narrar o medo que possuía da palmatória, denominada pelas crianças de “Dona Marocas”, compara o instrumento punitivo da mestra Dona Maria Alves com o do professor Duarte de Ceará- Mirim, com quem também teve aulas. Assim ela diz:

Ao sentar-me na primeira fila das pequenas, observei logo sobre a mesa da mestra uma palmatória. A “Dona Marocas” era pretinha e esguia. Já conhecia uma – a da escola do professor Duarte. Mas, era diferente, antipática, gorda e vermelha. A madeira não brilhava... Aquela, porém, luzia no envernizado elegante e na finura do pescocinho delicado, que parecia quebradiço. A Cícera dizia a Tonha que a palmatória da escola do professor cantava nas mãos dos meninos que acompanhavam a cantiga berrando... Eu não tirava os olhos da “Dona Marocas”. O Zé da Penha, sentado no banco de trás, notando o meu nervosismo, procurou tranquilizar-me: - Não tenhas medo; pedirei a mamãe para não dar bolo em você. Olhei-o contritamente agradecida e quase chorando. A minha companheira do lado, uma sertanejinha de faces coradas e olhar inteligente, acrescentou: - A minha mestra só bate nas crianças malcomportadas. Por lição errada, não, ela tem paciência e ensina (ANTUNES, 2003, p. 290).

Ao fazer esse registro, Magdalena Antunes permitiu observar o cotidiano de uma sala de aula onde certamente, devido à presença de meninos e meninas tal como ela descreve, funcionava o modelo de coeducação tão combatido pelo catolicismo da época. E, além disso, a autora permite visualizar a repressão que fazia parte do então sistema educacional através do uso do dispositivo da palmatória para disciplinar os estudantes, visando forçá-los a estudar, uma vez que deveriam cumprir as tarefas solicitadas demonstrando essas competências adquiridas publicamente frente aos demais alunos da sala. Além do cumprimento com as atribuições escolares, o recurso da palmatória também era acionado quando a disciplina na sala de aula era corrompida.

Da forma como Magdalena Antunes descreveu sua professora, Dona Maria Alves, parece-me que, para o ideário da época, as mulheres na função de professoras tinham mais aptidão para a função de mestras do que os homens. Investida com atributos positivos e até maternais, Dona Maria Alves, nas narrativas de Magdalena Antunes, agregava em si características próprias ao que era esperado de uma professora dos anos iniciais, tal como a paciência e a tolerância, em contraposição ao professor Duarte em cujas aulas, como Magdalena Antunes nos leva a pensar, os castigos através dos chamados “bolos” eram frequentes e intensos ao ponto de fazer as crianças chorarem.

A representação feita por Magdalena Antunes da sua professora primária se coaduna com a que Graciliano Ramos desenhou sobre sua professora Dona Maria. Embora esta tivesse poderes suficientes para interrogar e castigar os alunos pela rebeldia, preferiu silenciar em relação ao aparecimento do objeto não identificado na gaveta de sua mesa. Seria o tal pedaço de madeira um objeto fálico? Mas o fato é que o inquérito foi encerrado na própria sala de aula não ganhando as devidas proporções para que as medidas corretivas fossem ampliadas e aplicadas caso chegasse no gabinete do diretor da escola. Assim Graciliano Ramos narrou:

Felizmente d. Maria encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso mundo, aí vivia farejando pequenos mistérios nas cartilhas. Tinha dúvidas numerosas, admitia a cooperação dos alunos, e cavaqueiras democráticas animavam a sala. Certo dia apareceu na gaveta da mesa um objeto com feitio de lápis. Lápis graúdo, alvacento numa extremidade, escuro na outra. Que seria? Toda a aula foi interrogada, examinou o pedaço de madeira, apalpou-o, mordeu-o, balançou a cabeça e estirou o beiço indecisa. D. Maria recolheu-se, ponderou, afinal sugeriu que talvez aquilo fôsse medida para seu Antônio Justino cortar fumo. Seu Antônio Justino cortava sem medida o fumo de corda. E a raspadeira de borracha, imprestável e sem ponta, ficou sôbre a mesa, a desafiar-nos a argúcia, a inspirar-nos humildade, junto à palmatória. A escola exigia palmatória, mas não consta que o modesto emblema de autoridade e saber haja trazido lágrimas a alguém. D, Maria nunca o manejou. Nem sequer recorria às ameaças. Quando se aperreava, erguia o dedinho, uma nota desafinava na voz carinhosa – e nós nos alarmávamos. As manifestações de desagrado eram raras e breves. A excelente criatura logo se fastigava da severidade, restabelecia a camaradagem, rascunhava palavras e algarismos, que reproduzíamos (RAMOS, [19-], p. 123-124; grifos meus).

A narrativa feita por Graciliano Ramos abre a possibilidade para a reflexão de outra questão bastante importante no ambiente escolar: o desenvolvimento da sexualidade entre os alunos. Sendo ela uma identidade que estaria ligada à forma como o indivíduo experiencia o desejo e o prazer com seu próprio corpo e com o corpo de outras pessoas, era prerrogativa da escola, como de fato ainda o é, saber se equilibrar sobre um fio tênue: de um lado estimular a sexualidade “normal”, ao produzir nos alunos a identidade heteronormativa, e de outro saber habilmente contê-la (LOURO, 2014). Com o intuito de coibir o avanço da sexualidade entre os jovens, sobretudo das sexualidades consideradas desviantes, estes se tornavam alvo de